III O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, se insere como estrutura regional de proteção à tais direitos. Por óbvio, se difere do sistema global de proteção por se restringir ao âmbito da Organização dos Estados Americanos.
Para que se entenda a real importância do SIDH, bem como suas particularidades, é necessário viajar pelo entendimento histórico e pela própria evolução do ramo dos direitos humanos, em especial no quadro internacional. Se “os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais” (BOBBIO, 1992, p. 30), não se pode pretender compreende-los e aplica-los sem analisar esse mencionado desenvolvimento.
3.1 Internacionalização dos Direitos Humanos
Como Bobbio magistralmente definiu, os direitos humanos são um construído, fruto do processo de evolução histórica. Tal ramo se constrói à partir de diversas concepções axiológicas, no sentido de elaborar marcos, teorias, dispositivos e instrumentos que garantam patamares mínimos de dignidade humana. Ademais, justamente por sua característica histórica, o ramo dos Direitos Humanos evolui para atender novas demandas que, com o passar do tempo, vem sendo constatadas como essenciais, embora anteriormente não fossem assim consideradas, e para combater as novas formas de intervenção àquela dignidade.
Até por isso, e pela própria característica de universalidade do ramo, ou seja, de que esses patamares e demandas, por sua essencialidade, são inerentes a todos, não podendo depender da discricionariedade e da benevolência estatal, para a efetivação dos Direitos Humanos, os mesmos passaram (e passam) por um processo de internacionalização. As Constituições Nacionais, embora consagrem estes direitos, inclusive de forma expressa, frequentemente elencando-os como fundamentais, não deve, em última análise, restringir a sua aplicação. Ou seja, não deve a soberania estatal nem mesmo a hierarquia constitucional de normas pátrias obstaculizarem as garantias internacionais de dignidade humana.
Na visão da Professora Flávia Piovesan: “O Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho situam-se como os primeiros marcos do processo de internacionalização dos direitos humanos” (PIOVESAN, 2013, p. 188).
Todos estes tem, em comum, a noção de que há patamares mínimos a serem observados e respeitados pelos ordenamentos jurídicos nacionais, não obstante a soberania territorial estatal. O primeiro baliza a atuação do Estado nos conflitos armadas, inovando no sentido de que nem mesmo quando da invasão de um Estado por outro podem tais garantias serem desrespeitadas – o Direito Humanitário constitui o componente de direitos humanos da lei da guerra (BUERGENTHAL apud PIOVESAN, 2013, p. 188). A liga das nações por sua vez, estabeleceu, se não de forma efetiva, ao menos paradigmática, limites à atuação estatal, prevendo inclusive, em sua convenção, hipóteses de sanções, econômicas ou militares, em sendo violadas as obrigações dos estados membros perante à comunidade internacional. Por sua vez, a importância da OIT é justamente a de valorização dos direitos subjetivos do indivíduo perante a seu Estado, inclusive com o estabelecimento de patamares a serem proporcionados aos trabalhadores independentemente das peculiaridades entre ordenamentos jurídicos nacionais.
Finalmente, é no pós-guerra que tal movimento adquire contornos mais bem definidos. Após as incontáveis violações a direitos fundamentais durante o nazi-fascismo, o ocidente volta seus olhos à reconstrução do patamar de proteção aos Direitos Humanos como um novo norte ideológico. Não só o a visão de soberania ilimitada do estado passou a ser duramente criticada, como o horror deixado pelas múltiplas máculas perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial fez florescer um novo sentimento de proteção ao próprio conceito de sujeição a direitos.
Nesse contexto inserem-se a Carta da Organização das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal de 1948. Pelo fato de esta última, por si mesma, não possuir força vinculante, devemos também citar o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ambos de 1966 – que instrumentalizam os valores da Declaração.
Como mencionado, do ponto de vista teórico, direitos tão essenciais à dignidade mínima de um ser humano, por sua intrínseca natureza, são adquiridos pela própria condição humana e não por critérios hereditários ou territoriais, muito menos procedimentais. Por outro lado, no âmbito prático, a efetivação de tais direitos encontrou (e ainda encontra), resistência no predomínio do comando estatal.
Para que alcançássemos o patamar atual dessas citadas garantias que, ainda que não o ideal, sem sombra de dúvida representa um nunca antes visto avanço, foi necessário que se flexibilizasse a teoria de soberania total do Estado-nação. Mais ainda, foi necessário que o indivíduo deixasse de ser visto como um objeto jurídico à mercê da legislação positivada, mas, antes, como um verdadeiro sujeito de Direito Internacional.
Esse processo de internacionalização é necessário para, a um só tempo, segurar aos indivíduos um parâmetro mínimo de garantias individuais a serem respeitadas por seu Estado, bem como para permitir a responsabilização desse Estado quando do desrespeito (ou quando da não efetivação) de tais direitos.
Nesse cenário, a consolidação internacional dos Direitos Humanos representa um grande avanço, sendo atualmente a pessoa, não só detentora daquelas garantias mais ou menos oferecidas pela constituição de sua nação, mas também resguardada por uma sistemática supranacional estabelecedora de patamares de dignidade mínimos a serem respeitados por cada Estado, seja em um âmbito regional ou global. Ademais, violados tais direitos, passível a arguição desta nestes mencionados sistemas, para além do ordenamento interno.
3.2 Os Sistemas Regionais e Global de Proteção aos Direitos Humanos
Se a proteção aos Direitos Humanos passa por um processo de internacionalização, torna-se necessário o estabelecimento de instrumentos garantidores dessa proteção. Cabe ressaltar que, embora haja farta sistemática internacional a fim de que se efetivem tais garantias, a incumbência primária pela proteção dos Direitos Fundamentais – bem como a responsabilização quando de seu descumprimento – ainda pertence ao Estado nacional.
Os sistemas internacionais tem como finalidade, além de influenciar a garantia dos direitos protegidos em seus respectivos instrumentos por parte dos ordenamentos jurídicos internos, servir de anteparo subsidiário aos sujeitos de direito internacional quando de sua violação. Pode-se identificar, outrossim, um Sistema Global e Sistemas Regionais.
No âmbito internacional o lastro normativo se dá, em especial, mas não exclusivamente, a partir de quatro importantes documentos citados no tópico anterior: a Carta das Nações Unidas (1945), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ambos de 1966).
O Sistema Global vem a ser expandido pelo amplo rol de tratados multilaterais de Direitos Humanos. “Diversamente dos tratados internacionais tradicionais, os tratados internacionais de direitos humanos não objetivam estabelecer o equilíbrio de interesses entre os Estados, mas sim garantir o exercício de direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos” (PIOVESAN, 2013, p. 241).
A Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, a Convenção sobre os Direitos da Criança, entre outros, são todos exemplos da manifestação da sistemática normativa global de proteção aos Direitos Humanos.
Tal Sistema encontra-se ancorado profundamente à Organização das Nações Unidas, em especial à Carta de São Francisco, assim sendo, o mesmo pode incidir a qualquer Estado integrante dessa ordem internacional, desde que signatária dos instrumentos supracitados, entre outros.
Paralelamente, pontue-se a existência dos Sistema Regionais, que, do mesmo modo, constituem estrutura suplementar e subsidiária na proteção desses Direitos, porém, em um âmbito mais restrito de comunidades nacionais mais próximas. Atualmente, contamos com a existência do Sistema Europeu, instituído pela Convenção Europeia para a proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais do ano de 1950; o Sistema Africano, trazido pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos (1981); e, finalmente, o Sistema Interamericano, instituído por meio da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969.
Os Sistemas Regionais, muito embora contemplem até certa medida o mesmo rol de direitos, tem como vantagem em relação aquele Global a especificidade, na medida em que, por serem formados por países pertencentes a blocos internacionais próprios, debruçam-se sobre questões particulares. Em assim sendo, tais Sistemas lidam com a proteção, efetivação – e, no caso de descumprimento, responsabilização – especialmente daqueles seus direitos mais característicos.
Repise-se que ambos estes Sistemas, bem como o próprio ordenamento jurídico interno estatal, no que diz respeito aos Direitos Humanos e Fundamentais, são, em última análise, complementares. Se, por um lado, o processo de internacionalização destes direitos influencia o sistema normativo interno, aproximando-o destas garantias internacionalmente consentidas; por outro, a sobreposição entre os sistemas nacionais, regionais e global acabam por resguardar em diversas camadas os Direitos Humanos (e Fundamentais) do popular nacional.
Pode-se, analogicamente, na visão deste autor, imaginar três formas geométricas distintas e sobrepostas. Grande parte da área das figuras estará presente em todas as três camadas, visto que a maior parcela dos Direitos Fundamentais encontrará guarida em todos os sistemas normativos. Por outro lado, uma parcela destes Direitos (os vértices das formas geométricas) poderá estar presente somente em dois dos sistemas, ou em apenas um deles. Conclui-se, como já abordado, que todos estes ordenamentos são complementares, assim, sendo um direito humano violado, caso o mesmo seja previsto não só pela constituição pátria, mas também em convenções regionais e tratados internacionais, comportará, por parte do ofendido, a busca em todos os sistemas (respeitando-se, em qualquer caso, os requisitos e procedimentos próprios) a proteção dos direitos e garantias fundamentais.
3.3 O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos
O Sistema Interamericano é aquele Regional de proteção aos Direitos Humanos no âmbito da Organização dos Estados Americanos, da qual somente Estados membros podem participar. Seu mais importante instrumento é a Convenção Americana de Direitos Humanos, pactuada em San José da Costa Rica, no ano de 1969.
Historicamente, a Convenção interamericana – que embora datada de 1969, entrou em vigor em 78, após o recebimento de suas primeiras onze ratificações – teve a importância de tornar vinculante a obediência aqueles direitos consagrados pela Declaração Americana de Direitos Humanos (1948), a qual não se enquadrava como tratado internacional, e portanto não possuía força vinculante.
A Convenção determina que seus signatários não só respeitem, mas também promovam a efetivação de extenso rol de direitos civis e políticos. Nas certeiras palavras de Buergenthall: “Os Estados têm, consequentemente, deveres positivos e negativos, ou seja, eles têm a obrigação de não violar os direitos garantidos pela Convenção e têm o dever de adotar as medidas necessárias e razoáveis para assegurar o pleno exercício destes direitos” (BUERGENTHAL apud PIOVESAN, 2013, p. 344).
A estrutura do SIDH compreende a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão, com sede em Washington, composta por sete membros com mandato de quatro anos, podendo ser reeleitos uma vez, é o órgão principal do Sistema. A tal órgão competem as funções fiscalizatórias e investigativas, ou seja, a de promover e fiscalizar a atuação dos Estados signatários na efetivação dos direitos previstos na Convenção; a investigação de potenciais violações destes mesmos direitos e a elaboração de relatórios.
Segundo o artigo 41 da Convenção, compete a Comissão:
[...] a função principal de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e, no exercício do seu mandato, tem as seguintes funções e atribuições:
a. estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América;
b. formular recomendações aos governos dos Estados membros, quando o considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos;
c. preparar os estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções;
d. solicitar aos governos dos Estados membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos;
e. atender às consultas que, por meio da Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, lhe formularem os Estados membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que eles lhe solicitarem;
f. atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto nos artigos 44 a 51 desta Convenção; e
g. apresentar um relatório anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.
Por sua vez, segundo o disposto no artigo 45 da CIDH:
Artigo 45
1. Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece a competência da Comissão para receber e examinar as comunicações em que um Estado Parte alegue haver outro Estado Parte incorrido em violações dos direitos humanos estabelecidos nesta Convenção.
Todavia, como veremos, o Brasil deixou de reconhecer especificamente tal competência.
Ramos esclarece as funções deste importante órgão do SIDH:
A partir da entrada em vigor da Convenção, a Comissão passou a ter papel dúplice. Em primeiro lugar, continuou a ser um órgão principal da OEA, encarregado de zelar pelos direitos humanos, incumbido até do processamento de petições individuais retratando violações de direitos humanos protegidos pela Carta da OEA e pela Declaração Americana. Em segundo lugar, a Comissão passou a ser também órgão da Convenção Americana de Direitos Humanos, analisando petições individuais e interpondo ação de responsabilidade internacional contra um Estado perante a Corte (RAMOS, 2017, p. 313).
A Corte Interamericana, por sua vez, é o órgão jurisdicional do SIDH. Composto também por sete membros, os quais serão, segundo o artigo 52 da Convenção:
[...] nacionais dos Estados membros da Organização, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as condições requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do Estado do qual sejam nacionais, ou do Estado que os propuser como candidatos.
Estes, com mandatos de seis anos, reelegíveis uma única vez, tem sua sede em San José da Costa Rica. Tal órgão possui a função de julgar os casos submetidos pela Convenção e Estados membros, podendo inclusive aplicar sanções àqueles que tiverem deixado de observar os ditames da Convenção, sendo delimitada sua competência pelos artigos 61 a 65 da Convenção. Ademais, a Corte possui função consultiva, uma vez que pode emitir entendimento no que diz respeito à interpretação da CIDH.
Necessário acrescentar que, quando da ocorrência de petições individuais perante o Sistema Interamericano, a Comissão é que primeiramente conhecerá do caso, podendo tomar providencias administrativas ou, em estando presentes os requisitos e não sendo satisfatórias as alegações do Estado eventualmente imputado como violador, podendo enviar o caso à Corte. Tal é o que se depreende da própria redação da Convenção Interamericana:
Artigo 61 - 1. Somente os Estados-partes e a Comissão têm direito de submeter um caso à decisão da Corte.
2. Para que a Corte possa conhecer de qualquer caso, é necessário que sejam esgotados os processos previstos nos artigos 48 a 50.
É indispensável que o caso tramite pela Comissão para que, somente então, o mesmo eventualmente seja encaminhado à Corte. A Comissão poderá propor em seu relatório medidas que o Estado deverá adotar a fim de interromper as violações constatadas, as quais, não sendo cumpridas, ensejam tal encaminhamento.
3.4 Adesão do Estado Brasileiro ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos
A jurisdição contenciosa da Corte estende-se tão somente aqueles estados membros que, além de signatários da Convenção Americana, submetam-se à tal competência, por meio de declaração ou convenção especial, nos termos do que dispõe o artigo 62, item 3, da Convenção:
Artigo 62 - 1. Todo Estado-parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção.3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso, relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção, que lhe seja submetido, desde que os Estados-partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração especial, como prevêem os incisos anteriores, seja por convenção especial.
O Estado brasileiro, por sua vez, aderiu ao SIDH, ratificando a Convencao em 07 de setembro de 1992; e aceitou a jurisdição da Corte em 10 de dezembro de 1998. Todavia, o Brasil deixou, até o momento, de se submeter a competência da Comissão, nos termos do artigo 45.
Até o momento, o Brasil recebeu nove condenações por parte da Corte Interamericana, quais sejam caso Vladimir Herzog e outros; caso Povo Indígena Xucuru e seus membros; caso Cosme Rosa Genoveva, Evandro de Oliveira e outros (Favela Nova Brasília); caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde; caso Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia); caso Sétimo Garibaldi; caso Arley José Escher e Otros; e caso Damiao Ximenes Lopes.
3.5 Posição Hierárquica dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos
É notório que os tratados são os principais instrumentos do Direito Internacional, criando, regulamentando, ou modificando direitos dentro da comunidade internacional.
Como consequência da soberania estatal, tais pactos baseiam-se no acordo de vontades entre os sujeitos internacionais, ou seja, em regra, tão somente aqueles Estados que sujeitarem-se por meio da assinatura do instrumento do Tratado vinculam-se às normas presentes no mesmo.
Segundo o conceito da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, do ano de 1969 em seu artigo 2º, 1, a, o “Tratado designa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo direito internacional, quer esteja consignado num instrumento único, quer em dois ou mais instrumentos conexos e qualquer que seja a sua denominação particular".
Já a doutrina conceitua que “por tratado entende-se o ato jurídico por meio do qual se manifesta o acordo de vontades entre dois ou mais sujeitos de direito internacional” (ACCIOLY; SILVA E CASELLA, 2012, p. 155).
A hierarquia dos tratados, por sua vez, determina a posição em que os mesmos ocupam no ordenamento jurídico de seus Estados signatários. Em um primeiro momento, o Supremo Tribunal Federal por meio do julgamento do Recurso Extraordinário n. 80.004, de 1977, optou pelo entendimento de que todos os tratados seriam juridicamente equiparados à hierarquia da legislação federal, portanto, infraconstitucional. Em assim sendo, caberia, em eventual contradição a aplicação do princípio lex posterior derogat priori (lei posterior revoga lei anterior).
Todavia, tal entendimento não se mostrou o mais adequado, uma vez, se o mesmo fosse mantido, haveríamos de esvaziar os tratados de sua imperiosidade. Em outras palavras, estaríamos diante de situação em que compromissos pactuados por procedimento mais complexo, de tratado internacional, poderiam vir a ser inobservados pela simples edição de lei ordinária, cujo procedimento é por demais simples.
Ademais, de acordo com o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados: “Uma Parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar o descumprimento de um tratado”.
Por sua vez, com o advento de nossa atual Carta Constitucional, tal situação sofreu sensível avanço. Os tratados internacionais comuns foram alçados a hierarquia supralegal, proveniente do art. 102, III, b, da Carta Magna.
Ora, se “A Constituição Brasileira de 1988, segundo essa ótica internacional marcadamente humanizante e protetiva, erigiu a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III) e a prevalência dos direitos humanos (art. 4.º, II) a princípios fundamentais” (MAZZUOLI, 2011, p. 28), não se poderia supor que as normas relativas a efetivação desta dignidade fossem ser relegadas à inferioridade hierárquica. Assim, não seria de se supor que os direitos humanos-fundamentais, que como visto, ocupam posição de destaque em qualquer ordenamento democrático, seriam esvaziados de sua efetividade.
Ao contrário, nossa Constituição passa a expandir o âmbito de tal proteção, por meio do artigo 5º, § 2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. De tal modo, “a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente” (PIOVESAN, 2013, p. 113).
Nesse sentido, recorrente lição de José Joaquim Gomes CANOTILHO (1993, p. 982):
O programa normativo-constitucional não se pode reduzir, de forma positivística, ao 'texto' da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o 'bloco de constitucionalidade' a princípios não escritos, mais ainda reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas.
Tal dispositivo constitucional autoriza que sejam albergados, em nosso ordenamento pátrio, os direitos humanos com ele harmônicos, mesmo quando provenientes dos instrumentos de acordo internacional. Segundo Mazzuoli, o exposto equivale a
[...] dizer, se os direitos e garantias expressos no texto constitucional “não excluem” outros provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, é porque, pela lógica, na medida em que tais instrumentos passam a assegurar outros direitos e garantias, a Constituição “os inclui” no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu “bloco de constitucionalidade” (MAZZUOLI, 2011, p. 29).
Infelizmente, a sistemática sofre duro retrocesso, pelo menos no campo teórico, com o advento do artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal; já que segundo tal dispositivo os tratados internacionais – de Direitos Humanos – seriam constitucionais somente quando aprovados pelas duas casas legislativas com quórum qualificado (de três quintos, em duas votações em cada casa) e ratificado pelo Presidente da República, enquanto supralegais nos demais casos.
Entretanto, tal matéria, como abordado, já vinha sendo abarcada como hierarquicamente pertencente ao Bloco Constitucional, devido ao seu caráter material, por força do artigo 5º, § 2º.
Há de se, a principio, rechaçar a ideia de que, com o advento do § 3º do artigo 5º, que estabelece o quórum qualificado como requisito para a constitucionalidade formal, os tratados anteriormente aprovados decaiam à hierarquia de lei federal, por não terem sido aprovados mediante tal procedimento. Tais tratados (aqueles anteriormente aprovados) não podem ser esvaziados de sua força por não terem respeitado um procedimento que, à época de sua aprovação, não existia!
Em nosso sentir, o artigo 5º, § 2º da CF. Ao estabelecer que os “direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, por si só já considera – materialmente – constitucionais os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Por constitucionalidade material, equivale dizer que os direitos fundamentais advindos de tais instrumentos internacionais, adquirem equivalência constitucional, inserindo-se estes na mesma hierarquia que a CF, integrando portanto um bloco constitucional pátrio.
Assim sendo, o § 3º do mesmo artigo 5º, parece ser norma redundante, no sentido de que reafirma o disposto nos dispositivos anteriores, enquanto também retrógada. Ora, a sistemática constitucional de proteção aos direitos humanos necessita ser ampliada e não restringida. Para que se alcance tal ideal, deve ser o § 3º interpretado como uma norma que estabelece tão somente o requisito de formalidade para que estes tratados obtenham hierarquia constitucional, ou o nível constitucional, uma vez que sua natureza de integrante de bloco constitucional (seu status constitucional) provém da própria natureza do § 2º.
Tal também é o entendimento revolucionário de Mazzuoli, para o qual “[...] a cláusula aberta do § 2.º do art. 5.º da Carta de 1988, sempre admitiu o ingresso dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no mesmo grau hierárquico das normas constitucionais, e não em outro âmbito de hierarquia normativa” (MAZZUOLI, 2011, p. 30/31).
Necessário, pela profundidade do estudo realizado, citar novamente o autor, sendo que:
[...] uma vez aprovados pelo quórum que estabelece o § 3.º do art. 5.º da Constituição, os tratados de direitos humanos ratificados integrarão formalmente a Constituição, uma vez que serão equivalentes às emendas constitucionais. Contudo, frise-se que essa integração formal dos tratados de direitos humanos no ordenamento brasileiro não abala a integração material que esses mesmos instrumentos já apresentam desde a sua ratificação e entrada em vigor no Brasil (MAZZUOLI, 2011, p. 55/56)
Decorre dessa bem elaborada interpretação que os tratados de direitos humanos – inclusive a Convenção Interamericana – são, portanto, não apenas hierarquicamente equiparados à Constituição, mas, ainda, que qualquer norma que seja incompatível com estes, é logicamente incompatível com norma de estatura constitucional.
Tal conclusão ensejará, outrossim, além da aferição de inconstitucionalidade também a admissão de hipótese de incompatibilidade.
3.6 Controle de Convencionalidade
Em relação à possibilidade dessa incompatibilidade entre as disposições normativas internas e a sistemática protetiva internacional, deve-se mencionar o Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile, leading case julgado em 26 de setembro de 2006 pela Corte Interamericana:
A Corte tem consciência de que os juízes e tribunais internos estão sujeitos ao ímpeto da lei e, por isso, estão obrigados a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. Porém, quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparato do Estado, também estão submetidos a ela, o que os obriga a velar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam prejudicados pela aplicação de leis contrárias ao seu objeto e fim, e que desde o seu início carecem de efeitos jurídicos. Em outras palavras, o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de ‘controle de convencionalidade’ entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o tratado, senão também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana
Assim, consiste o “controle de convencionalidade” em avaliação pela qual devem passar as normas jurídicas nacionais em face da sistemática de proteção de direitos humanos internacional, levando-se em conta à interpretação dispensada a tal sistemática pelo seu respectivo intérprete. Ademais, a utilização da expressão “devem” indica ser este controle exercido de modo difuso pelo poder judiciário nacional uma obrigação e não uma faculdade do executor jurisdicional. Assim, o controle difuso de convencionalidade, assim como o de constitucionalidade deve ser exercido ex officio pelo poder judiciário pátrio, sob pena de violação de direitos humanos e, eventualmente, responsabilização estatal.
Do exposto, depreende-se a existência, outrossim, de duplo limite vertical, a constitucionalidade e a convencionalidade. Mazzuoli esclarece totalmente a distinção:
[...] a compatibilidade da lei com o texto constitucional não mais lhe garante validade no plano do direito interno. Para tal, deve a lei ser compatível com a Constituição e com os tratados internacionais (de direitos humanos e comuns) ratificados pelo governo. Caso a norma esteja de acordo com a Constituição, mas não com eventual tratado já ratificado e em vigor no plano interno, poderá ela ser até considerada vigente (pois, repita-se, está de acordo com o texto constitucional e não poderia ser de outra forma)– e ainda continuará perambulando nos compêndios legislativos publicados –, mas não poderá ser tida como válida, por não ter passado imune a um dos limites verticais materiais agora existentes: os tratados internacionais em vigor no plano interno (MAZZUOLI, 2011, p. 96).
Ainda segundo o citado autor (MAZZUOLI, 2011, p. 118) pode o operador do direito, levando-se em conta esta dupla compatibilidade vertical, ver-se diante de quatro situações: Incompatibilidade com a CF de lei anterior a esta; incompatibilidade com a CF de lei posterior; incompatibilidade com tratado de lei anterior, e incompatibilidade com tratado de lei posterior a este.
Respectivamente, tais casos solucionam-se pela não recepção; inconstitucionalidade; revogação e invalidade da norma incompatível à Constituição ou ao tratado (seja este comum – supralegal – ou de direitos humanos – hierarquicamente constitucional).
Em outras palavras, com o advento de carta constitucional, toda e qualquer norma existente que não obedecer aos seus novos dispositivos, deixa de ser recepcionada. Por outro lado, advindo nova norma que não observar os preceitos da CF, tem-se esta como inconstitucional. Já aquela norma que vá de encontro ao conteúdo de tratado internacional que se insere no ordenamento pátrio será revogada (uma vez que este será ou supralegal – caso comum – ou integrante do bloco constitucional – caso de direitos humanos – hierarquicamente superior àquela lei, em todo o caso). Norma que adentre o ordenamento jurídico após a vigência de tratado, sendo com este incompatível, terá, imediatamente, paralisada sua validade, e, por conseguinte, será esvaziada de eficácia.
O controle de convencionalidade, assim como se dá com o de constitucionalidade, pode ser exercido seja pela via difusa, como também pela concentrada (enquanto o controle de supralegalidade é sempre difuso).
Neste ponto, pode-se elucidar o tema com a lição da Professora Nathalia Masson:
Exercido por uma pluralidade de órgãos, temos o controle difuso. Originado nos Estados Unidos da América, no notável e muitíssimo conhecido leading case Marbury v. Madison, julgado pela Suprema Cone em 180327, o controle difuso é realizado por qualquer juiz (ainda que não vitaliciado) ou Tribunal. No Brasil referido controle foi inaugurado pela Constituição de 1891 e mantido em todas as subsequentes.
[...]
Também intitulado reservado, devemos a instituição do controle concentrado ao brilhantismo e a genialidade de Hans Kelsen que, em 1920, o consagrou na Constituição da Áustria. O que o caracteriza é a circunstância de somente poder ser realizado por um único órgão (ou por poucos, e previamente determinados, órgãos). Presente na Alemanha e em alguns outros países da Europa continental, o controle concentrado existe no direito pátrio desde que a EC nº 16/ 1965 introduziu, na Constituição de 1946, a representação de inconstitucionalidade (MASSON, 2016, p. 1069).
Ademais, as normas introduzidas pela sistemática do § 2º do artigo 5ºsomente podem vir a ser objeto de controle difuso de convencionalidade, enquanto aquelas aprovadas pelo regramento do § 3º, por equivalerem às emendas constitucionais, podem vir a ser controladas tanto pela via difusa quanto pela concentrada.
Cabe pontuar que este controle jurisdicional de convencionalidade, ao invés de restringir o direito interno, antes, o engrandece, uma vez que, em especial em relação aos direitos e garantias fundamentais, amplia as hipóteses de proteção a estes direitos, promovendo a compatibilização das normas pátrias ao diálogo de fontes entre a Constituição e os tratados internacionais.
Verifica-se, assim, a existência de dupla referência de compatibilidade, quais sejam a Constituição e os Tratados Internacionais, sendo necessário à norma ser compatível a ambos, visto que, uma vez em dissonância com qualquer deles será aquela afastada (seja pela não recepção; inconstitucionalidade; revogação ou paralisação de validade, como visto).
Finalmente, deve-se citar a possibilidade de controle (de constitucionalidade e de convencionalidade) da própria norma constitucional.
Quanto ao tema, pode-se citar como um panorama geral:
Identificam-se duas correntes doutrinárias que informam a tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais: a) corrente que admite a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias; e b) corrente
que admite a inconstitucionalidade de normas oriundas de processo de revisão ou de emenda, sugerindo apenas contradição aparente entre as normas constitucionais originárias. O ordenamento jurídico brasileiro acata a segunda corrente que sustenta que a inconstitucionalidade de normas constitucionais decorre do processo de reforma da Constituiçãopelo constituinte derivado, sempre que haja afronta às chamadas cláusulas pétreas (limitação de ordem material) ou ao próprio processo de reforma (limitação de ordem formal) (NOGUEIRA, 2014).
Embora tenda a doutrina nacional ao posicionamento de que somente as normas advindas de poder constituinte derivado podem sofrer controle de constitucionalidade, deve-se citar, todavia, o completíssimo estudo de Otto Bachof, no sentido de que as cartas constitucionais dividem-se em constituição material e constituição formal (BACHOF, 1994, p. 39).
Em relação a tal construto teórico, pode-se citar:
Resta claro do pensamento do autor analisado que a Constituição Material sobrepuja e subordina a Constituição Formal, que poderá ser considerada “inconstitucional” na medida em que contrariar os preceitos suprapositivos (COLNAGO, 2011, p. 11).
Por esse ângulo, muito mais do que um fim em si mesmo, possuidora de regramentos estáticos, deve a Constituição ser entendida como a materialização de elevadíssimos valores, provenientes não apenas dos anseios de seu povo, mas também de todo um conjunto supranacional de princípios e garantias universais e naturais, constituídas historicamente – os direitos humanos. E, enquanto a constituição formal resume-se naquele documento, a constituição material relaciona-se a valores mais elevados, os quais em grande medida se encontram implícitos.
No brilhante entendimento do Professor Antônio Augusto Cançado Trindade:
Tais princípios marcam presença em ambos os níveis, nacional e internacional. Há princípios fundamentais do direito que se identificam com os próprios fundamentos do sistema jurídico, revelando os valores e fins últimos do ordenamento jurídico internacional, guiando-o, protegendo-o contra as incongruências da prática dos Estados, e satisfazendo as necessidades da comunidade internacional. Esses princípios, como expressão de uma “ideia de justiça” objetiva, têm um alcance universal, exigindo a observância de todos os Estados, e assegurando – como lucidamente assinalado por A. Favre em 1968 – a unidade do direito, a partir da ideia de justiça, em benefício de toda a humanidade (TRINDADE, 2017, p. 185).
Em relação ao conflito entre a disposição de tratado internacional de direitos humanos e norma de poder constituinte derivado, claramente resolve-se tal pelos critérios usuais solucionadores de antinomias; embora ambas as normas conflitantes sejam, no caso, hierarquicamente equiparadas, a especificidade pode adequar ao caso a aplicação de uma ou de outra norma, enquanto a cronologia seguramente gera a prevalência das disposições do tratado.
Por outro lado, subsiste dúvida, como abordado, no que concerne ao conflito destas com normas de poder constituinte originário. Por todo o exposto, nos parece arbitrário restringir a aplicação do tratado de direitos humanos no caso em hipótese. Ora, pela perspectiva de Bachof, e também no sentir do presente autor, a Constituição presta-se, entre outras funções, a constituir importantes metanormas supranacionais, em parte até intangíveis.
Assim:
[...] mais importante do que a incorporação terminológica do direito supralegal é, porém, de novo, o facto de uma norma constitucional que infrinja tal direito não poder reivindicar nenhuma obrigatoriedade jurídica, independentemente da questão de saber se e em que medida o direito supralegal violado foi transformado em direito constitucional escrito (BACHOF, 1994, p. 68).
Esse processo pelos quais aquelas normas de direitos humanos materializam-se em direitos fundamentais busca, como fim máximo, a garantia da dignidade humana. Se, como já visto, os direitos humanos são um construto, produto de uma evolução histórica, não seria lógico admitir, desse modo, que com a evolução dessa proteção – com a evolução histórica fazendo com que fosse estendida essa proteção a valores anteriormente desguarnecidos – deixasse de ser tal evolução aplicada ao direito interno por não prever a Constituição tal proteção.
O próprio Canotilho identifica tal evolução:
A “abertura” do corpus constitucional a regras constitucionais não escritas – quer as derivadas de uma formação/institucionalização consuetudinária quer as derivadas de interpretação do texto constitucional – aponta para uma outra idéia importante. É esta: o direito constitucional é um “direito vivo”, é um “direito em acção” e não apenas um “direito nos livros”. Precisamente por isso, existe um direito constitucional não escrito que embora tenha na constituição escrita os fundamentos e limites, completa, desenvolve, vivifica o direito constitucional escrito (CANOTILHO, 1993, p. 1103).
A Carta seria, nesse sentido, uma fotografia de um momento específico da evolução das metanormas supranacionais de direitos humanos. Olhando-se tão somente para a mesma, deixar-se-ia de perceber a transformação sofrida por aqueles direitos humanos provenientes de uma sistemática internacional que continua evoluindo. Não deve a Constituição ser, assim, interpretada como restrição aqueles princípios que justamente a inspiraram, ao contrário, a interpretação da mesma deve buscar a compatibilização de suas garantias com o desenvolvimento histórico e com os princípios gerais internacionais de proteção à dignidade humana. Em paralelo:
Certamente as normas são as juridicamente vinculantes, mas quando elas se afastam dos princípios, sua aplicação leva a violações de direitos individuais e a graves injustiças (e.g., discriminação de jure), e se incorre então em distorções, e em violações graves do próprio ordenamento jurídico (TRINDADE, 2017, p. 186).
Por essa razão, e também pela aplicação do princípio pro homine, ou seja, da norma mais favorável in casu à dignidade do sujeito em jogo, constata-se a legislação nacional passível de regulação por parte dos tratados internacionais de direitos humanos, e ainda, por parte das próprias metanormas suprapositivas formalizadas constitucionalmente. Autoriza-se ainda, a depender do conflito, que ceda a norma constitucional originária em favor da norma hierarquicamente constitucional de tratado de direitos humanos.