A ideia da privacidade e da intimidade exsurge como corolário inalienável da ideia de liberdade. Não há como defender a ideia de uma sociedade livre sem garantir aos seus indivíduos a inviolabilidade dos aspectos de intimidade e privacidade de suas vidas.
Os primeiros lampejos da ideia de necessidade de proteção da intimidade e da vida privada dos indivíduos numa sociedade livre surgem no mesmo instante em que o homem entende que uma sociedade livre somente será viável quando, junto ao direito de livre pensar, for dado ao Homem o direito de discernir livremente sobre se lhe é conveniente revelar aspectos de sua vida íntima e privada a terceiros.
A questão ganha contornos de maior relevância à medida que o homem se percebe como um ser dependente da vida em sociedade e, como tal, dependente da comunicação com seus semelhantes para desenvolver a plenitude de suas potencialidades e assim promover o seu entendimento de busca pelo bem-comum e pela felicidade.
Sendo assim, o desenvolvimento do debate sobre o tema do direito à proteção de dados segue uma dinâmica que acompanha a dinâmica do desenvolvimento das relações humanas em sociedade.
Eventos como a descoberta da escrita, o desenvolvimento da imprensa e da eletrônica contribuíram, cada um, com o avanço exponencial da capacidade de comunicação e armazenamento de informações entre, pelo e sobre o Homem, representando marcos evolutivos que influenciam(aram)(arão) sobremaneira a forma como concebemos a ideia de um ordenamento jurídico protetivo da privacidade e da intimidade.
Atualmente, com a conjugação do grande poder de armazenamento de informações com o poder de comunicação sem barreiras geográficas, a denominada sociedade pós-industrial do sociólogo italiano Domenico de Masi vive na era daquilo que os especialistas chamam de a ‘internet de todas as coisas’, onde de forma inconsciente, involuntária ou, pior, contra a sua vontade, o Homem produz informação e conhecimento que são armazenados em uma “nuvem” de dados com servidores localizados em lugares desconhecidos e sob a jurisdição de ordenamentos jurídicos não vigentes sobre o legítimo proprietário das informações.
Por outro lado, as mazelas das guerras e dos conflitos ideológicos entre povos também são influenciadores da ideia de proteção de dados ao ponto de, em determinados ordenamentos jurídicos, a tortura ser legalmente admitida como o mais violento dos meios empregados para expropriar informações armazenadas no mais recôndito dos arquivos: a memória humana.
É dentro deste contexto que a ideia de preservação da vida privada e da intimidade do Homem vem, ao longo da história, sendo desenvolvida, até tornar-se princípio fundamental de direito consagrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Assim é que, o dever de proteção da privacidade e da intimidade dos indivíduos surge como uma das mais importantes e tradicionais obrigações democráticas numa sociedade livre; sendo, inquestionavelmente, a preservação do indivíduo, o objetivo a ser perseguido.
Mundo afora, países onde o debate encontra-se mais avançado, o tema sobre os limites que devem ser impostos aos entes públicos e privados no que tange a coleta, armazenamento e uso de informações de caráter íntimo e privado dos indivíduos é objeto de intensas e importantes discussões.
A questão sobre como o Estado deve reagir ante o desenvolvimento da tecnologia, de forma a manter-se cumpridor do direito/dever de exercer seu poder de polícia e, ao mesmo tempo, garantir o respeito a incolumidade do direito à privacidade das informações coletadas dos indivíduos, representa problema de grande importância que pode redefinir o nosso entendimento sobre princípios democráticos basilares como a liberdade e a igualdade, redefinindo, consequentemente a sociedade resultante da interação entre estes princípios.
No Brasil, vivemos atualmente uma situação de grande e irresponsável atraso sobre a questão do direito à garantia da proteção de dados.
Embora a Constituição Federal de 1988 tenha assegurado, como fundamentais, os direitos à inviolabilidade da intimidade e da vida privada dos indivíduos, a inviolabilidade do sigilo das correspondências e das comunicações telegráficas, de dados e de comunicações telefônicas; após 30 anos de sua promulgação, praticamente nada mais foi produzido para regulamentar tais princípios e fazer com que o direito/dever de proteção dos dados pessoais deixem de ser uma mera conjectura subjetiva dos direitos à intimidade e à vida privada.
Assim, ainda hoje vivemos em uma sociedade totalmente alheia ao destino que é dado às informações coletadas, por exemplo, por autoridades policiais e fazendárias acerca da vida privada dos cidadãos brasileiros.
Somos quase que absolutamente omissos quanto à imposição de qualquer limite ao Estado para obter informações sobre seus jurisdicionados, deixando à mercê do acaso questões como o mau uso, pelos agentes do Estado, dos recursos de investigação sobre a vida privada dos cidadãos; ou, ainda, sobre a troca de tais informações privadas entre agências estatais sem qualquer respeito aos limites impostos à obtenção destas informações.
Diante disto, percebe-se que o debate já travado em outros países sobre o tema da proteção de dados é tanto complexo quanto fundamental; marcado por típicos e inevitáveis confrontos entre as tutelas jurídicas dos interesses privados e dos interesses públicos.
Por outro lado, é preciso reconhecer que a defesa absoluta e incondicional, do direito à intimidade e privacidade, expõe a segurança da vida do homem (outro direito fundamental) à riscos que podem levar ao perecimento do direito ao maior de todos os bens, qual seja, o direito à vida.
Afinal, muitas são as vantagens técnicas, operacionais e estratégicas que podem ser obtidas por aqueles que fazem uso da proteção da privacidade e da intimidade para intentarem de forma criminosa contra a sociedade.
Assim, desde crimes contra o patrimônio de particulares até os crimes contra a fazenda pública, passando pelos crimes individuais contra a vida até os crimes praticados contra a vida de uma coletividade; temos que todos os tipos de afronta a outros direitos fundamentais do Homem podem ser beneficiados diante de uma aplicação fundamentalista, desfocada e absoluta dos direitos à garantia da privacidade e da intimidade em detrimento à garantia do acesso à informação pela mesma sociedade sobre determinados aspectos da vida privada e íntima de seus indivíduos.
É desta contradição que surge a necessidade de desenvolvimento e aplicação de um método segundo o qual direitos e garantias fundamentais, quando em rota de colisão, sejam balanceados para que se obtenha um resultado adequado à garantia da obtenção dos objetivos de ambos os valores para a promoção do bem-comum, em outras palavras aquilo que concebemos por Justiça.
Decidir sobre o que representa o justo, contudo é tarefa que será tanto melhor executada quanto melhor forem compreendidos todos os aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos de uma determinada sociedade, incorporando, ainda, a necessidade desta mesma sociedade em promover o desenvolvimento do bem-comum entre seus integrantes.
Cada sociedade é marcada por sua trajetória peculiar no tempo, seus conflitos, suas conquistas, suas derrotas, seus dilemas; todos estes elementos profundamente marcados por traços da geografia, clima, riqueza e carência de recursos do território que ocupam; e que são formadores da consciência de seu povo e, portanto, influenciadores de como essa população se relaciona e se insere no contexto de uma sociedade global.
É por isso que não se pode pretender que a mesma ideia de justiça seja abraçada, ainda que por meio da defesa intransigente dos mesmos princípios de liberdade e igualdade.
Haverá de existir entre tais nações caracteres distintos entre suas populações que fará com que, tanto o processo de produção de leis, como o processo de interpretação e aplicação destas leis; ainda que buscando contemplar aos mesmos princípios da liberdade e da igualdade, resultem em ordenamentos jurídicos distintos.
A consagração e afirmação de princípios constitui-se pois, apenas no primeiro grande passo rumo à consolidação das ideias que tais princípios inspiram e, dentro da técnica legislativa e democrática, a regulamentação legal é de fundamental importância à garantia de efetividade e segurança jurídica.
No Brasil, o conjunto de normas legais que reproduzem a nossa impressão cultural, econômica e política sobre qual entendemos ser a melhor solução para o conflito existente entre o direito à inviolabilidade da vida privada e da intimidade e o direito à informação/segurança é relativamente recente embora este fato não indique que tal garantia tenha sido negligenciada por nossas cartas políticas desde a Constituição do Império.
No ordenamento jurídico brasileiro ainda que possamos encontrar normas legais que tratam da disciplina da interceptação de comunicações e de dados, quebra do sigilo das informações bancárias e fiscais dos cidadãos e, mais recentemente, a Lei n. 13.709/18 conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD); encontramo-nos ainda em um estágio embrionário de entendimento cultural e construção de um sistema de proteção de dados.
Existe adiante um enorme esforço a ser realizado na estruturação orgânica do sistema, tanto com a instituição de agências de regulação, como também sobre a construção de um entendimento da lei; o que somente virá através do esforço hermenêutico de advogados, juristas e magistrados debruçados sobre os casos concretos que desafiarão o texto legal nos próximos anos.
Por outro lado, embora estejamos atrasados em relação a países com maior tradição na disciplina legal da proteção à privacidade de dados, é fato que vivemos hoje no Brasil um momento sem precedentes, de grande fartura casuística para a consolidação do entendimento sobre o balanceamento adequado entre os direitos à privacidade/intimidade e à informação/segurança; entre o interesse privado e o interesse público, entre a liberdade e a igualdade.
Resta saber até que ponto as recentes instabilidades institucionais a que temos sidos submetidos poderão influenciar para a consolidação de um sistema deturpado de proteção à privacidade de dados.