4. A RESPONSABILIDADE CIVIL E FAMILIAR
A norma pátria optou por dar certa prioridade à proteção da vida privada. Ao que parece que há certo receio do legislador em prejudicar a utilização das técnicas de reprodução, caso haja expressa possibilidade de flexibilização do sigilo do doador. A falta de socorro normativo leva não só a dúvida da prevalência de um direito em relação ao outro, como também do tipo de responsabilidade a ser apurada nos casos de violação de um ou outro instituto.
Neste sentido, há de ser lembrado os diferentes tipos de responsabilidade que envolvem a problemática jurídica narrada. Inicialmente, é importante mencionar que responsabilidade civil e a familiar em nada guardam relação. A primeira é o dever de reparar o dano em razão de um ato ilícito praticado contra outrem, observados certos requisitos e a outra encontra relação com a existência de uma conexão sócioafetiva entre um indivíduo e outro capaz de gerar vínculo familiar e, portanto, responsabilidade.
No entanto, ambas as espécies de responsabilidade trazidas necessitam preencher certos requisitos afim de que seja apurada se de fato há o dever de reparar no caso da responsabilidade civil e de subsistência, afeto e guarda como no caso da responsabilidade familiar, para isso necessário é realizar, de forma preliminar, a conceituação dos dois institutos de forma individual, afim de que as peculiaridades de cada um sejam devidamente observadas.
4.1 A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS CLÍNICAS
Em um paralelo com o que é objeto de pesquisa deste trabalho, busca aqui não só conceituar o instituto da responsabilidade civil, mas também traçar relações deste com a responsabilidade e dever da clínica de manter o sigilo do doador.
De forma diversa do Direito argentino, o qual contem de forma expressa em sua legislação civil, como nos já mencionados artigos 583 e 584 do referido diploma da Argentina, o Direito civilista brasileiro não legislou sobre a possibilidade do interessado, ou mesmo do próprio indivíduo gerado através de reprodução assistida heteróloga requerer de forma administrativa os dados suficientes para indicar a identidade de seu doador de DNA, afim de gozar do seu direito ao histórico familiar e à identidade genética.
Diante disto, constatou-se a impossibilidade deste mesmo indivíduo obter de forma administrativa as respostas que precisa. Em uma análise secundária, desprendeu-se ainda de que as recentes alterações do Conselho Federal de Medicina implicaram em maior segredo nas transações envolvendo o gene dos doadores de gameta, visto que impera agora a norma técnica médica de que as clínicas devem manter dados suficientes para identificar tão somente as características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores[25].
Neste cenário, o que se espera após a realização do procedimento por parte das clínicas de reprodução é que a mesma tenha coletado tão somente os dados essenciais determinados pela Resolução nº 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, salvo nos casos de autorização expressa por parte do doador, e que mantenha em segredo os dados coletados, tendo em vista que não há previsão legal de quebra do sigilo administrativamente. Neste seguimento, o presente capítulo visa esclarecer se diante do descumprimento de uma destas obrigações, quais sejam a coleta e manutenção de dados além dos definidos pelo Conselho Federal de Medicina e a disponibilização destas informações para terceiro interessado, possui o condão de ensejar a reparação de danos através da responsabilidade civil das clínicas de reprodução.
De acordo com o artigo 927 do Código Civil Brasileiro de 2002 “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
Trata-se da norma que fundamenta a responsabilidade civil por si só. No entanto, será demonstrado que tal instituto é mais abrangente que a mera constatação de dano, ato ilício e dever de reparar, devendo outras diretrizes além do artigo 927 do Código Civil servirem como parâmetro para que se constate o dever de indenizar.
Maria Luiza de Saboia Campos em “Publicidade: Responsabilidade Civil perante o Consumidor” divide a responsabilidade civil em objetiva e subjetiva, e subjetiva em extracontratual e contratual. De acordo com a doutrinadora:
“A responsabilidade civil subjetiva é alicerçada na culpa, ocorrendo quando a pessoa pratica o ato gerador das consequências danosas, mas não tem o dano como objetivo da sua conduta, nem age com consiência da infração. A responsabilidade subjetiva estabelece a regra geral de que inexiste dever de indenizar sem culpa, nascendo a obrigação de reparar o prejuízo causado quando há nexo de causalidade entre a ação antijurídica e a lesão ao direito”[26]
Nesta linha de raciocínio, a autora defende ainda que “a responsabilidade contratual aparece como o descumprimento de uma obrigação; a responsabilidade extracontratual, como a falta a um dever” (CAMPOS, Maria Luiza de Saboia, Publicidade: Responsabilidade Civil perante o consumidor, São Paulo, 1996, Cultural Paulista Editora, página 95).
Portanto, observa-se que a responsabilidade civil subjetiva das clínicas pode ser tanto extracontratual no que diz respeito a falta ou não cumprimento de um dever, como, por exemplo, a não observância do sigilo, ou contratual caso esta não observância se dê através de dado não mantido em poder da clínica em razão tão somente da lei, mas também por convenção entre as partes, ou seja, quando inicialmente a clínica não estaria obrigada a manter em seu poder um dado do doador, mas o faz, por segurança e contratualmente, e não o mantém em sigilo.
Nesta espécie de responsabilidade civil, no entanto, não basta que o responsabilizado sofra com um dano proveniente de um ato ilícito. Discute-se aqui o elemento culpa como imprescindível para a constatação da responsabilidade. Contudo, existem hipóteses que por força de lei a existência do elemento culpa é dispensável, nos termos trazidos pelo artigo 927, parágrafo único da legislação civilista, senão vejamos:
“Art. 927, CC: Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
A hipótese trazida trata da responsabilidade objetiva, onde não será aferido o fator culpa como indispensável para ensejar a devida reparação, mas sim a ocorrência de um dano em razão de um ato ilícito. Não obstante, tal forma de responsabilização não é automática e decorre de uma obrigação ou atividade normalmente desenvolvida pelo autor, ou ainda por força de lei. Novamente citando Maria Luiza de Saboia Campos:
“O que caracteriza a responsabilidade objetiva é que, nas constituição da obrigação de reparar dano causado, não se leva em consideração o comportamento culposo ou doloso do agente.
Toda a ênfase do sistema na responsabilidade objetiva é dado ao nexo de causalidade existente entre o ato e o dano produzido, não interessando se esse ato foi culposo ou doloso. Por esse motivo, a responsabilidade objetiva também é conhecida como responsabilidade causal, fundada na causalidade, ou ainda responsabilidade sem culpa.”[27]
São duas as teorias que embasam a responsabilidade causal: teoria do risco e a teoria da garantia. Esta primeira, em breve síntese se traduz no perigo de dano referente ao exercício da atividade laborada. Em outras palavras, haverá a responsabilidade objetiva sempre que o labor da pessoa criar perigos especiais para aquele sofreu o dano. Esta segunda encontra proximidade com em casos eventuais existir uma garantia implícita que, quando violada, independente da culpa, gera dever de indenizar.
Não é suficiente, no entanto, a existência de nexo de causalidade e dano para que se apure a existência de responsabilidade. É necessário também que a conduta do agente seja proveniente de um ato ilícito, que nos termos dos artigos 186 e 187 do Código Civil:
“Art. 186, Código Civil: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187, Código Civil: Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
Vislumbra-se que é necessário um vazamento de dados criminoso ou negligente para que haja a responsabilização das clínicas, exclui-se, por isso, das hipóteses de reparação civil o dado obtido através de habeas data, decisão judicial que reconheça o direito à identidade genética ou a informação passada através de autorização dada pelo próprio titular do direito ao sigilo.
Tratando de responsabilidade civil das clínicas de reprodução assistida, parece certeiro que a própria atividade da empresa pressupõe o dever de sigilo. Ainda que não haja na lei norma que regule expressamente o tipo de responsabilidade que estamos de frente quanto do dano gerado por violação ao sigilo por parte das clínicas, a análise de ambas as teorias auxilia na verificação da responsabilidade.
Isto porque, não só existe uma responsabilidade inerente à própria atividade das clínicas (teoria do risco), como também quando, baseado no princípio da boa-fé, espera-se que a mesma mantenha em sua guarda e em sigilo os dados fornecidos para realização da reprodução assistida heteróloga (teoria da garantia). Destarte, ambos os ensinamentos e apontamentos da responsabilidade civil objetiva guiam para uma responsabilização das clínicas independente de culpa, em que pese não haver norma específica neste sentido.
Pressupõe-se que ao decidir ser voluntário (a) em uma clínica de reprodução assistida para doação de material genética, o sujeito o faz não visando o lucro, até por que, tal prática é vedada[28]. Por isso, acredita-se esperar o doador que, diante das diretrizes normativas do Brasil, o sigilo seja imperativo e respeitado, independente de pacto entre as partes. O próprio ato de doar material genético para reprodução assistida é sigiloso, havendo, portanto, expectativa do doador de manter tal fato em segredo.
Posto isso, o teor da atividade demonstra que há uma expectativa de que os dados em poder da clínica não sejam divulgados, portanto, há possibilidade, pela aplicação das teorias do risco e da garantia, em imputar à clinica de reprodução o dever de indenizar, independente de culpa, o doador que tiver seu dado vazado através de ato ilítico. Deve ser observado, no entanto que não basta a mera descoberta da identidade do doador para que o dever de reparar exista.
A responsabilidade civil objetiva, ainda que exclua a culpabilidade como fatore essencial para sua constatação, mantém o dano e o nexo de causalidade como pressupostos para reparação do dano. Evidente, portanto, que não basta a existência do dano para que se possa responsabilizar objetivamente, mas também a existência entre uma correlação entre o dano e a conduta do agente.
Por conseguinte, a mera descoberta não enseja a reparação. Há a necessidade de que a descoberta se dê por dolo ou negligência da clínica de reprodução assistida para que haja o dever de indenizar. O artigo 42 e seguintes da lei 13709/2018 tratam da responsabilidade e do ressarcimento de danos do controlador.
De acordo com a regra retro:
“O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo.”[29]
A legislação pioneira no direito brasileiro, ainda que não trate em específico das clínicas de reprodução assistida, trás a hipótese de dever de indenizar daquele que mantém dado de outro em sua guarda. Incumbe a operadora aida a manter em segurança tais dados, ou seja, é dever da clínica a tomada de medidas de seguranças que irão garantir o não vazamento das informações em seu poder, sendo estas medidas suficientes para valorar futura indenização observando em que grau a clínica de reprodução assistida aplicou as medidas de segurança, como rege a lei de proteção de dados:
Art. 48. O controlador deverá comunicar à autoridade nacional e ao titular a ocorrência de incidente de segurança que possa acarretar risco ou dano relevante aos titulares.
§ 3º No juízo de gravidade do incidente, será avaliada eventual comprovação de que foram adotadas medidas técnicas adequadas que tornem os dados pessoais afetados ininteligíveis, no âmbito e nos limites técnicos de seus serviços, para terceiros não autorizados a acessá-los. [30]
Ora, em sendo então a hipótese de responsabilidade objetiva das clínicas, não há, de fato, no que se falar em existência ou não de culpa para que haja o dever de indenizar, no entanto, a própria lei de proteção de dados nos trás a hipótese de mitigação da responsabilidade, dando chance para que o valor da indenização seja equiparado às medidas adotadas pela empresa para que aquela violação não viesse a ocorrer. Nota-se que, muito embora não exista aqui uma excludente por ausência de culpa, há uma considerável possibilidade de diminuição da responsabilidade quando a culpa é mitigada, demonstrando um interesse do legislador em premiar aqueles que adotam técnicas para impedir o vazamento de dados.
A lei de proteção de dados não só ratificou o tipo de responsabilidade outorgada às clínicas, como também legislou sobre a possibilidade processual de ter o titular dos dados o ônus da prova invertido para a operadora quando for verossímil a alegação, houver hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova pelo titular resultar-lhe excessivamente onerosa[31]. É possível observar os cuidados que a lei tomou para garantir que aquele que possui dados de outro os mantenha em segredo, sob pena de além de sofrer com a responsabilização civil, ter sua defesa dificultada em processo de reparação mediante a inversão do ônus da prova.
O instituto da reparação civil, ainda que em sua forma objetiva, no entanto, nos trás algumas excludentes, ou seja, situações em que o dever de indenizar não existirá, em que pese a ocorrência do dano. Por se tratar de legislação específica, além das hipóteses já conhecidas de excludentes de responsabilidade como culpa da vítima e fato de terceiro (artigo 12 , § 3º , III e artigo 14 , º 3º, II do Código de Defesa do Consumidor) ou caso fortuito e de força maior (artigo 393 do Código Civil), há ainda aquelas em que a lei, em razão da especialidade do caso nos ensina, como é o caso do artigo 43 da já falada Lei de Proteção de Dados.
“Art. 43. Os agentes de tratamento só não serão responsabilizados quando provarem:
I - que não realizaram o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído;II - que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou III - que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro.”
A lei restringe a matéria de defesa que possa ser abordada pelas clínicas de reprodução assistida em sede de ação de reparação de danos proposta pelo doador de material genético. Em sendo a responsabilidade objetiva, o portador dos dados somente se livrará do encargo de indenizar o dano proveniente do vazamento das informações se provar que não foi ele quem tratou aquele dado, ou que não houve violação à lei de proteção de dados, e ainda que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiros, sempre em observância a possibilidade de redução do valor da indenização de acordo com as medidas de segurança adotada pela clínica.
Portanto, conclui-se que há dever de indenizar por parte das clínicas realizadoras de reprodução assistida heteróloga quando mantiverem em seu poder dados além do permitido pela Resolução do Conselho Federal de Medicina, salvo estipulação ao contrário, ou ainda, embora tenha em seu poder somente os dados que a lei faz menção, deixe que os mesmos percam o caráter sigiloso, agindo com culpa ou não.
Em que pese restar claro as hipóteses de apuração da responsabilidade da clínica, esta ainda assim não se confunde com a responsabilidade familiar tratada abaixo, eis que uma está ligada a existência de uma conduta ilícita ocasionadora de um dano, enquanto aquela está em proximidade com princípios e regras inerentes ao direito da família.
4.2. A RESPONSABILIDADE FAMILIAR
Antes de adentrar no núcleo da discussão sobre o tema é importante conceituar termos básicos, todavia indispensáveis para a compreensão do que se pretende explicitar neste capítulo. A responsabilidade familiar, embora em algumas ocasiões possa comportar indenizações de cunho patrimonial e moral não objetiva em um primeiro plano a obtenção destas, diferentemente do tipo de responsabilidade tratada no capítulo anterior. Isto porque na responsabilidade da família, muito embora na prática o pretendido possa se aproximar de uma indenização de cunho patrimonial, na teoria e técnica forense o resultado não é o mesmo. A responsabilidade da família pura não comporta indenização por danos pois não se busca nesta a reparação por algum dano. O que se procura neste capítulo é averiguar o dever de alimentar, o cuidado e dever de afeto inerente aos princípios da família, a relação socioafetiva e os recentes posicionamentos da doutrina e jurisprudência sobre o assunto, traçando um paradigma entre a responsabilidade familiar e a figura do individuo doador de material de genético em conjunto com a criança reproduzida de forma assistida.
Na responsabilidade civil parece não ser tão complexo a um primeiro olhar identificar o dever de indenizar e de receber. O causador do dano e a vítima usualmente figuram nos pólos passivos e ativos das demandas indenizatórias referentes ao tema, e, em outras circunstâncias a lei acaba por determinar quem responderá pelos danos causados, sendo esta pessoa jurídica ou física. Noutro plano, a responsabilidade familiar parece ser de razoabilidade semelhante, ora, ao se tratar de responsabilidade da família, a responsabilização desta pode tão somente estar relacionada a própria família. Contudo, o termo família é complexo e vem sofrendo mutações desde sua origem. O direito de família sobre influências diretas do direito canônico, das regras internas, do tempo e da sociedade em que este é mergulhado e para que se entenda melhor a responsabilidade familiar, é necessário voltar e conceituar o que é a família e sua evolução com o passar dos anos.
De acordo com Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka:
“A família, nesta perspectiva histórica tem relação simbiótica com a sociedade, pois ao mesmo tempo em que a forma, também parte dela para se reformular. É assunto muito mais afeito à Sociologia do que ao Direito. Segundo Jean Carbonnier, “o que se quis ver na família foi, antes de mais, um fenômeno de costumes, jurídicos só por acidente“. Entretanto, no Estado de Direito, o Legislativo e o Judiciário enredam e sempre enredaram as controvérsias a respeito da família. Isso porque lhes cabe, em primeira e última instância, respectivamente, o papel de garantir e pacificar as expectativas legítimas das pessoas, garantindo assim a segurança jurídica e paz social, que são o fim do direito.”[32]
Pode-se dizer, portanto, que o Direito de família é regido internamente por normas de direito positivado, mas que sua composição externa é baseada não só no direito positivo, mas também de forma principiológica, ou seja, para que se conceitue o termo família devemos observar não só as normas de direito próprias do tema, mas também o comportamento social, principiológico e as necessidades de determinado local em que será aplicada tal conceituação.
No cenário atual a família deixa de ter um modelo patriarcal definido, em que era composta por um homem que atuava como provedor de recursos, uma mulher cuja principal função era a doméstica e os filhos do casal do qual os mesmos até o casamento ou maioridade destes detiam uma espécie de posse e poder sobre os filhos. Até meados do século XX este cenário era o que melhor definiria a família em termos globais, perdurando até a crescente e justa onda de movimentos sociais feministas, homoafetivos e contra as bases familiares patriarcais. O casamento era o meio através do qual a existência de uma família restava configurada – basicamente, esta tinha origem com o matrimônio, tal afirmação tão verdadeira é que o código civil, em que pese datar não tão distante dos dias atuais, genuinamente optou por realizar diferenciações entre esposa e companheira para fins sucessórios, o que foi posteriormente modificado pelo STF com o reconhecimento da equiparação entre companheira e esposa por meio de acórdão do RE 878.694 de 16 de Abril de 2015, rel. Min. Roberto Barroso.
Não bastasse, a família não era tão somente aquela que era constituída após o casamento, mas sim a união entre um homem e uma mulher através do casamento. A partir da atrasada interpretação do artigo 1517 do Código Civil Brasileiro[33] estavam excluídas do conceito de família as mais variadas formas de constituição destas, como por exemplo a família homoafetiva, a monoparental e os mais diversos modelos de família que existem, o que também precisou de respaldo do Supremo Tribunal Federal com o julgamento da ADI 4277 e ADPF 132 [34] de relatoria do Min. Ayres Britto.
A jurisprudência mostra-se bastante confortável em dar outras interpretações ao direito de família brasileiro, julgando com base em princípios como a pluralidade familiar, vedação ao retrocesso e interpretação conforme a constituição para evoluir este conceito para algo muito mais abrangente. A interpretação de Paulo Lôbo mostra-se mais razoável ao ser analisada em conjunto com as recentes alterações de interpretação, senão vejamos:
“Sob o ponto de vista do direito, a família é feita de duas estruturas associadas: os vínculos e os grupos. Há três sortes de vínculos, que podem coexistir ou existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os diversos grupos que a integram: grupo conjugal, grupo parental (pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins). (LÔBO, Paulo. Direito Civil: família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 2.)”
Pode ser observado através da conceituação do autor que a família não necessariamente nasce com o casamento ou com o sangue, mas também com a existência de vínculos entre pessoas, pouco importando o gênero destas. A interpretação destes vínculos, em especial a análise do vínculo de sangue e de afetividade são indispensáveis na análise da responsabilidade familiar do doador de material genético em favor da criança reproduzida de forma assistida.
O Supremo Tribunal Federal mais uma vez trouxe para si o protagonismo com relação ao tema julgando a existência da possibilidade de ser reconhecida a paternidade socioafetiva em conjunto com paternidade biológica[35], acalorando a possibilidade de reconhecimento de responsabilidade familiar do doador de material genético.
Importante ainda lembrar que a outorga conjugal no caso de pessoa casada e que pretende utilizar de tais métodos para concepção é indispensável para presunção de existência de vínculo paternal ou maternal, conforme disciplina o Código Civil de 2002:
“Artigo 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos 180 dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos 300 dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.”
Tal fenômeno chamado pela doutrina de presunção pater is est prevê que nas hipóteses registradas nos incisos do artigo acima a criança gerada na constância do casamento pressupostamente é filha comum do casal. No entanto, ao contrário dos demais incisos, nos vêm a tona o item V da importante regra, o qual dispõe que nas hipóteses de inseminação artificial heteróloga somente é possível presumir a paternidade ou, por analogia, a maternidade daquele ou daquela que, por óbvio, não participou da doação de material genético, caso ocorra a autorização deste ou desta, havendo, caso preenchido tal requisito, a responsabilidade familiar.
Por equiparação, pode-se dizer que com os recentes entendimentos do STF não fica impedida uma interpretação extensiva do artigo mencionado para que na constância da união estável, a outorga do companheiro ou da companheira seja também indispensável para reconhecimento do vínculo de filiação, sem a qual resta impossível atribuir responsabilidade familiar para o companheiro (a).
Frisa-se que o direito aqui discutido difere-se completamente da origem genética do indivíduo, aqui discute-se com os fins alimentares, sucessórios e afetivos um direito de reconhecimento do filho pelo pai ou mãe ainda que este biologicamente falando não tenha contribuído para que a criança fosse gerada. O vínculo neste caso nasce com o animus de constituir família, ou seja, com a vontade expressa através de autorização de utilizar-se dos meios de reprodução assistida heteróloga para que se gere uma criança, presumindo-se esta filha daqueles que concordaram e utilizaram tais técnicas.
De outra sorte, o mesmo não pode ser dito para a figura do doador de material genético. Parece menos razoável que o mesmo tenha vontade de gerar uma família ou uma criança ao doar o material genético para reprodução assistida. Observa-se que o doador o faz por mera boa-vontade, sem pleitear qualquer pecúnia, tampouco arrisca-se em criar laços com a criança ou com o outro genitor. O animus do doador difere-se do cônjuge que dá sua outorga pois este primeiro visa somente fazer o bem, o mesmo doa seu material pois acredita estar realizando uma boa ação e não porque pretende criar laços com a nova família, não podendo a este ser imputada inicialmente qualquer tipo de paternidade ou maternidade.
Neste sentido:
“Hoje, temos por bem, dar valor ao sentimento, a afeição, ao amor da verdadeira paternidade, não sobrepujar a origem biológica do filho e desmistificar a supremacia da consangüinidade, visto que a família afetiva foi constitucionalmente reconhecida e não há motivos para os operários do direito que se rotulam como biologistas e se oporem resistência à filiação sociológica. Essa é a realidade! A filiação socioafetiva é compreendida como uma relação jurídica de afeto com o filho de criação, como naqueles casos que mesmo sem nenhum vínculo biológico os pais criam uma criança por mera opção, velando-lhe todo amor, cuidado, ternura, enfim, uma família, em tese, perfeita.”[36]
Ainda neste raciocínio:
“Como já foi mencionado, o doador – normalmente o homem que doa certa quantidade de sêmen – não adere a qualquer projeto parental (não há vontade), nem pratica qualquer ato de índole sexual com a mulher que engravidará diante da técnica conceptiva com o emprego de seu sêmen (não há risco) e, nesse sentido, não havendo qualquer um dos pressupostos que seriam necessários para o estabelecimento de sua paternidade no campo da reprodução assistida heteróloga, diante da própria circunstância de que não houve relação sexual (falta do fato gerador da procriação carnal), logicamente que o doador não poderá ser considerado pai da pessoa a nascer”[37]
O provimento nº 63 de 2017 do Conselho Nacional de Justiça em seu artigo 17, §3º também corrobora com o entendimento da doutrina acima:
“O conhecimento da ascendência biológica não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador ou a doadora e o filho gerado por meio da reprodução assistida.”[38]
No entanto, ainda que de forma primária não haja existência de filiação entre o doador de material genético e a criança reproduzida de forma heteróloga, não há impedimento para que, com a quebra do sigilo e descobrimento da doação, venha esta paternidade ou maternidade ser reconhecida de forma socioafetiva caso assim seja da vontade de ambos. O direito de família atual pauta-se no sentimento, no afeto e acima de tudo na vontade das partes, desde que, de forma lícita.
Nota-se que o registro da criança gerada através de tal método, não fará qualquer forma de distinção quanto a paternidade ou maternidade do cônjuge que concordou com a realização de tal técnica, o vínculo de pai ou mãe existirá e obrigará as partes envolvidas sem qualquer distinção. No entanto, a jurisprudência já reconheceu a possibilidade da existência da dupla parentalidade[39] podendo, em caso de posterior aproximação da criança com o seu doador de material, ocorrer a chamada paternidade socioafetiva, vinculando o doador que, agora, passará a preencher os requisitos da paternidade.
De acordo com Maria Cecilia Bondim “a família como é entendida atualmente, baseia-se muito mais na força do afeto do que em liames puramente biológicos”[40]. A responsabilidade familiar, portanto, nem sempre seguirá uma linha unicamente sanguínea, havendo casos em que é possível atribuir, através da manifesta vontade de tornar-se genitor por técnicas de reprodução assistida heteróloga, ou posteriormente por meio da criação de um vínculo socioafetivo com a criança reproduzida, a chamada responsabilidade familiar, implicando em consequências inerentes ao Direito de família como dever de zelo, alimentos e sucessão, v.g.
Resta definido portanto que a existência de autorização por parte do cônjuge é requisito elementar para que se caracterize a parentalidade deste e, em caso de inexistência desta, fica o mesmo isento dos direitos e deveres inerentes às relações familiares. Noutro giro, o doador de material genético não poderá de forma inicial ser incluído como membro da família que estar por ser criada, pois não preenche elementos básicos para sua caracterização.