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Ações afirmativas no Brasil:

sistema de cotas, amplitude e constitucionalidade

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2.DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL

Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz, disse uma frase muito interessante: "O matador mata sempre duas vezes – a segunda pelo silêncio." (...) Em alguns racismos conhecidos na historia da humanidade, as relações entre segmentos étnicos diferentes são mais explícitas, mais abertas; é um racismo institucionalizado, por vezes acompanhado de hostilidades e da morte física do outro. Quero me referir ao nazismo, ao apartheid sul-africano, ao sistema ‘Jim Crow’ nos Estados Unidos. Mas outros racismos foram e são implícitos, não-institucionalizados, objeto de segredo e tabu, submetidos ao silêncio, um silêncio criminoso. Quero me referir, como vocês devem ter captado pela mensagem camuflada no título, ao racismo brasileiro." [52]

Kabengele MUNANGA

Sistema de apartheid, invisível para o Povo, mas, apartheid. Pois, em breve analise da pirâmide social brasileira, é possível verificar que a população negra ocupa os mais baixos estratos.

É importante salientar, que o Povo que aqui é tratado, é aquele Povo do qual trata Friedrich MÜLLER em sua obra (Quem é o povo. A questão fundamental da democracia. 2000); [53] portanto, quando dizemos "invisível para o Povo", não é aquela invisibilidade que é dada à população negra brasileira pelo Povo da chamada "elite pensante da sociedade" . Ou seja, não se esta a falar ali dos letrados, mas sim, da massa da população. Pois, esta "elite pensante" do país são, no mais das vezes, os efetivos autores, co-autores ou partícipes de tal crime, seja, pela ação discriminatória que sempre será consciente, seja pela omissão na denuncia de práticas discriminatórias ou ainda, pela forma velada como se discrimina que para nós é a mais perversa de todas.

Sendo, contudo, esta a característica do racismo no Brasil que é a prática do silenciamento sobre o tema e isso, pelo simples fato de que um dia foi escrito que somos um país de .

É com essa assertiva que iniciamos esse novo capítulo, concluindo, desde logo, que ao analisarmos a história da sociedade brasileira verificamos que o Estado sistematizou privilégios a determinadas etnias/raças ao longo de mais de três séculos e, com apenas uma simples e candongueira pincelada, como se encerrando a página de um livro, passa a viver, em tese, uma nova era.

Assim, o pressuposto de todas as discussões que serão apresentadas neste capítulo, é aquele que esses marcos históricos –

[54]Leis nº 2040 de 28/09/1871 e nº 3.353 de 13/05/1888, CF/88, Conf. Durban/2001 - [55] nos permitem inferir, de que a propalada democracia racial brasileira, não passou de uma tentativa estatal de lançar mão de uma história escravagista - de passado e presente –, através do silenciamento no trato da questão. [56] E ainda, quando, por necessidade, esse silêncio tivesse (foi) que ser rompido, a questão deveria ser tratada a partir de pressupostos diametralmente antagônicos a esses que acabamos de afirmar com o constitucional da igualdade; antagonismo este, que tem hoje seus efeitos latentes na sociedade brasileira. [57]

História esta, que segundo Florestan FERNANDES,

[58] traz na condição humana do antigo agente do trabalho escravo e na forma como se deu a sua inserção - abolição – na sociedade de classes, por perpetuar-se no tempo; numa atroz, extrema e cruel espoliação.

A esse respeito assevera FERNADES que:

A desagregação do regime escravocrata e senhoral operaram-se no Brasil, sem que cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer instituição assumissem encargos especiais (1), que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto viu-se convertido, sumária e abruptamente em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva. (1) A exemplo do que ocorreu em vários países europeus, em face de conseqüências análogas que afetaram o antigo servo da gleba (cf. C. W. Pipkin, art. "Poor Laws", Encyclopédia of Social Sciences, vol. XII, pp. 230-234)...

[59] [ Sem grifos no original]

A partir daí, dá-se então a perpétua reprodução da deteriorização do nível de vida do negro, sendo ele impedido de exercer plenamente sua qualidade de liberto – de trabalhador livre -, uma vez que não tinha acesso ao mercado de trabalho que, com o escravismo constituíra-se numa estrutura de privilégios em favor da população branca, que em inúmeros casos eram, inclusive, oficializados, verbi gratia:

1875. Postura Municipal da cidade de São Paulo, art. 155.

"Todos os que tiverem casas de negócios não poderão ter nelas cativos como caixeiros ou administradores, sob pena de 10% de multa"

1883. Postura Municipal da cidade de Itapetininga, São Paulo, art. 67

São proibidas cantorias e danças de pretos, se não pagarem os chefes de tais divertimentos o imposto de 10$, se em tais reuniões consentir polícia"

[60]

Quiçá então, passar da condição de (negro) liberto para a de cidadão. O que, certamente, para este contingente privilegiado desde sempre, admitir o negro como um cidadão significaria a provável diminuição – pela distribuição eqüitativa de quinhões - dos benefícios angariados ao longo da adoção do trabalho escravo, e é esse o momento onde o preconceito e a discriminação racial ganham novos ingredientes, que se voltam para a defesa daquela estrutura de privilégios, que é sistematicamente trabalhada até nossos dias.

[61]

Outro exemplo da ação discriminatória do Estado brasileiro contra o cidadão negro, que merece ser anotado, é a forma de controle social exercido na esfera penal, que parafraseando a professora Dora Lúcia de Lima BERTÚLIO, a população reclama posições drásticas e enérgicas da Justiça com o fim de se proteger de situações de violência. [62]

Com isso, novamente nos ensina a professora BERTÚLIO que: "... o sistema jurídico fica legitimado a agir na defesa da sociedade, estabelecendo critérios dos quais não participam os segmentos empobrecidos e/ou discriminados que, de malgrado terem requerido proteção, serão as vítimas privilegiadas da ação da ‘Justiça’."[63]

Com esse contexto, não é tão simples lançar mão desse passado discriminatório e segregacionista, que outrora fora oficializado e, hodiernamente, por omissão é consentido pelo Estado, tornando-o, por ser velado, um regime ainda mais gravoso àqueles que sofrem de tal preconceito.

Soma-se ainda, o exemplo da xenofobia cultural de matriz africana, especialmente encontrada aqui em Curitiba, "na capital da cultura", onde a expressão cultural de todas as raças/etnias que de alguma forma compõe a formação da população municipal são, devidamente, representadas através de parques, portais, praças, etc., inclusive, com um festival de folclore denominado "Festival das Etnias", sendo que, a raça negra não é contemplada com nenhuma dessas formas de representação e, inclusive, não pode participar do referido "Festival de Etnias", sob a alegação de que no Paraná não existe a expressão da cultura africana ou seja, que aqui não existem negros.

Os efeitos desse racismo institucionalizado são os mais perniciosos possíveis na formação do imaginário "senso comum" de toda a população, negra e não negra. Refletindo-se nas relações sociais onde esse imaginário inconsciente pode atuar, exemplo disso, podem ser vistos pelas pesquisas estatísticas existentes sobre educação, mercado de trabalho, criminalidade, presença nas artes, além das outras formas e outros campos que se pode identificar, na prática, o problema.

Portanto, conforme nos ensina a antropóloga social Professora Nilma Lino GOMES, "no Brasil, o racismo e a discriminação racial que incidem sobre os habitantes negros ocorrem não somente em decorrência dos aspectos culturais presentes em suas vidas, mas pela conjunção entre esses aspectos (vistos de maneira negativa) e pela existência de sinais diacríticos [Diz-se DIACRÍTICO, ao sinal e/ou sintoma tido(s) como característico(s) de uma doença] [64] que remetem esse grupo a uma ancestralidade negra e africana." [65]

Desta forma é que se justifica, a adjetivação a esse sistema de segregação racial brasileiro, como sendo ainda mais gravoso do que o do apartheid sul africano, pois, fosse ele declarado ou assumido, tornar-se-ia possível a luta no sentido de neutralizá-lo inclusive, incriminando o agente de tal conduta, para daí então possibilitar que o homem negro brasileiro, como dito por Luiz GAMA, [66] tenha a "...liberdade de ser infeliz onde e como queira...".

Com esse breve intróito, demonstrou-se a origem histórica da atual situação da população negra no Brasil, evidenciando, com isso, a necessária e urgente materialização do metaprincípio da igualdade, através da implementação de políticas públicas de ações afirmativas para os afrodescendentes, sem olvidar, que tal está de fato prevista na Ordem Jurídica vigente.


3.AÇÕES AFIRMATIVAS, ORIGENS, CONCEITO E FINALIDADES

Não obstante ao fato do termo affirmative action ter aparecido nos Estados Unidos, as primeiras políticas de ações oficiais de discriminação positiva que se tem conhecimento na historia, surgiram na Índia na década de 1940, com o nome de medidas afirmativas. Tais medidas tinham a finalidade de fazer com que o parlamento indiano passasse a ser constituído por representantes das castas consideradas inferiores. [67] A partir de então, essas medidas têm sido difundidas e aplicadas em diversos países com as mais diversas correntes ideológicas.

O termo ação afirmativa - affirmative action - é atribuído ao Ex-presidente norte americano Jhon F. Kennedy que governou aquele país entre os anos de 1961 até 1963 – assassinato -, com sua morte o Presidente Lyndon B. Johnson assumiu o cargo e deu continuidade aos projetos que estavam em tramitação conseguindo aprovar o Civil Right Act de 02 de julho de 1964, que instituía a proibição de discriminação ou segregação em lugares ou alojamentos públicos; a observância de medidas não discriminatórias na distribuição de recursos em programas monitorados pelo governo federal; a proibição de qualquer discriminação no mercado de trabalho calcada em raça, cor, sexo ou origem nacional, proibição essa que deveria ser observada pelos grandes e pequenos empregadores , incluindo-se as universidades, públicas e privadas. [68]

Com os poucos avanços ocorridos na questão das relações raciais, não tardaram a chegar às chamadas "medidas positivas", 24 de setembro 1965, que impunham àquelas empresas que quisessem contratar com o governo, adotassem práticas eqüitativas de distribuição dos postos de trabalho, especialmente, aos indivíduos da raça negra que ainda sofriam os efeitos do regime escravocrata. [69]

No ano de 1971 o então Presidente Nixon, tornou tais medidas mais específicas, modificando a legislação existente para que a discriminação positiva fosse utilizada mais agressivamente, [70] ou seja, tornou possível a utilização dos critérios de sexo e raça como fator de discriminação, desde que no sentido inverso ao que historicamente foi utilizado.

Na América do Norte tais políticas públicas vêm dos idos de 1941, quando o Presidente Franklin D. Roosevelt decretou que as empresas de material bélico deveriam abrir vagas para negros, criando ainda, um órgão fiscalizador para garantir a efetividade da norma através do seu cumprimento.

Essa discussão em torno da humanização dos direitos civis não se restringiu aos EUA, com o advento da Declaração de Direitos Humanos adotada pelo ONU em dez/48 e, reflexivamente, aos acontecimentos na América do norte essa questão rompeu fronteiras e chegou ao Canadá por volta de 1960, tendo sido introduzida no direito interno daquele País pela via infraconstitucional.

Na África do Sul, com as eleições gerais de 1948, foi adotado pelo Partido Nacional da África do Sul o "estado de separação" – apartheid – e, com a derrota desse trágico momento histórico (1994), [71] iniciaram-se profícuas discussões a cerca do tema - ações afirmativas -, resultando em várias propostas ao Parlamento. Em seguida, surgiu e foi aprovada a proposta elaborada pelo próprio "Comitê Constitucional do African National Congress (A Eill of Rights for a Democratic SouthAfrica - Working Draft Consultation)", que era a mais incisiva no tratamento das ações afirmativas

Numa possível conceituação de ações afirmativas para afrodescendentes, diz-se que são elas, políticas públicas ou privadas que, dinamizando o conceito histórico de igualdade formal buscam a concretização de seus preceitos, visando não só dar substancialidade ao princípio, como também a redução dos efeitos maléficos da discriminação institucionalizada e dissimulada. [72]

Desta forma, parafraseando Joaquim B. Barbosa GOMES, essas ações nada mais é do que tentativas de concretização da igualdade substancial, sendo possível conceituar as ações afirmativas como sendo, "um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego." [73]

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Para a Professora Carmen Lúcia Antunes ROCHA, "A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias." [74]

Portanto, essas políticas consistem numa série de medidas com a finalidade de corrigir uma forma específica de desigualdade, que no presente estudo é a desigualdade racial e seus efeitos, podendo ser aplicadas tanto pelo poder público, quanto pela iniciativa privada, no primeiro caso advogamos com a idéia do poder dever; sendo que, no atual estágio da democracia estatal esse é um dever de toda a sociedade brasileira – setores, público e privado -.Vale dizer, que as ações afirmativas quando aplicadas pelo poder público, normalmente, se traduzem em reserva de vagas – cotas -, a exemplo cotas no serviço público ou nas universidades.

Com efeito, pode-se inferir ao final deste sub-capítulo, que o gênero ação afirmativa, não é a espécie "cotas", mas sim, as cotas são uma das formas de concretização de um conceito maior, usualmente chamado de ações afirmativas, portanto, não havendo motivos para uma confusão conceitual; pois, as ações afirmativas para afrodescendentes mais do que um meio, ela é a própria estrutura através da qual se busca igualar as oportunidades de inclusão socio-economico-cultural de todo um grupo étnico racial, considerando que os fatores que impedem a ascensão social dos indivíduos integrantes desse grupo, estão imbricados numa complexa rede de motivações, explícitas ou implicitamente preconceituosas e de cunho racial. [75]

Devendo-se assinalar, por fim, que hoje a utilização de critérios raciais para a promoção da igualdade, tem sido no mundo, uma saída para alcançar a igualdade substancial.

Portanto, no Brasil não poderia ser diferente. Não só é uma saída para a questão, como também, é uma imposição legal , portanto, não só é totalmente lícita como também, imperativa a discriminação por critérios raciais, desde que, obviamente, ela não esteja a serviço de preconceitos, mas sim, da isonomia para a promoção da igualação substancial.

Tal previsão é de ordem constitucional, ali encartada explícita e implicitamente, constituindo-se como um dos .

3.1AS AÇÕES AFIRMATIVAS E SUAS POSSIBILIDADES JURÍDICAS

Contudo, fundados numa hermenêutica tecnicista, alguns operadores jurídicos, têm sofismado no sentido de que, - o Estado brasileiro não tem amparo legal para implementação das políticas de ações afirmativas para afrodescendentes, pois, se assim agisse estaria afrontando o princípio da igualdade -. O fundamento desta interpretação, por certo, é diametralmente oposto à apresentada neste trabalho e, com a devida vênia aos defensores da tese contraria, tal posicionamento é seguramente .

Pretendemos então, demonstrar nesse sub-capítulo, que as políticas de ações afirmativas são legalmente possíveis e no que se refere à constitucionalidade de tais atos, eles se subscrevem no chamado poder dever do Estado.

Ora, tendo que, a norma constitucional possui dentre seus efeitos "a cogencia e a vinculação" dos atos do administrador e do administrado, o que numa leitura sistemática da Constituição brasileira – Estado (o Povo organizado garantindo o "bem comum"), [76] democracia (participativa, com o fim da consecução da soberania popular), [77] cidadania ("possibilidade de" não ser sub-cidadão), direitos humanos (dignidade) e, principalmente, a igualdade racial (que se traduz substancialmente, nos fatos, como "desigualação") –, desta forma, se pensarmos uma política administrativa comprometida com a vontade da constituição; levando em conta o catastrófico do regime escravocrata ao negro, as ações afirmativas para afrodescendentes, tornam-se uma imposição constitucional tanto ao Poder Público quanto à sociedade civil.

Tornando-se, portanto, um dever do Estado -, a adoção o descrímen como forma e critério de igualação substancial, não havendo o que se falar em ofensa a Constituição quanto à norma, discriminando positivamente, visa atingir igualdade substancial na relação que regula.

Corroborando com essa posição, em palestra proferida no Tribunal Superior do Trabalho no ano de 2001, o então Presidente do STF Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias MELLO, asseverou que, de fato, o fundamento do descrímen para o fim de se alcançar toda a extensão do tem esteio constitucional, dizendo: "." [78] [no original sem grifos]

Afirma ainda, o Ministro Marco Aurélio Mendes de Faria MELLO na mesma ocasião, que "toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da Constituição Federal não pode ser acoimada de inconstitucional". [79]

Desta forma, sistematizando o entendimento de que, dentre outros, o Estado Democrático se destina ao asseguramento do exercício dos direitos sociais e individuais, tendo a igualdade e a justiça como valores supremos da sociedade [80] para a consecução dos direitos e garantias fundamentais, são elencados como objetivos da Republica Federativa do Brasil, o que segue:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. [81]

Verifica-se que os verbos utilizados pelo Legislador Constituinte foram, construir, garantir, erradicar, reduzir e, por fim, promover. Não se percebe na letra fria da Lei a intenção de uma postura estática, não é crível outra hermenêutica desse mandamento constitucional que não seja aquela de uma postura dinâmica, de conformação social. Caso, contrário, qual seria o modo de atuar do Estado que possa transformar as metas constitucionais em ação que venham promover o bem de todos aqueles que ainda hoje, sofrem os efeitos do regime escravocrata, se não for o agir positivamente. [82]

Desta forma, não há outra locução verbal que implique nesse agir constitucional, no sentido verbal ativo, no sentido de tornar cidadão o não cidadão; que se revele mais apropriado do que a locução "ação afirmativa". Eis aí, o momento em que ganha esteio constitucional, no atual contexto de relações raciais do Brasil, as políticas públicas e privadas de ações afirmativas para os afrodescendentes.

Assim, parafraseando a Professora Carmen Lúcia Antunes ROCHA, estas ações afirmativas são instrumentos legítimos para a "superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais". [83]

Em decorrência de outro Seminário que, desta feita, aconteceu no Conselho da Justiça Federal em Brasília, no ano de 2001, tratando da mesma temática, ao fazer a apresentação do evento, o Procurador Regional da Republica Aurélio Virgílio Veiga RIOS e o Juiz Federal Flávio Dino de Castro e COSTA, [84] foram categóricos ao afirmar que no Estado Democrático o direito a igualdade, não só pode, como deve ser garantido pela lei e nos fatos, auferindo o amparo constitucional às ações que possam vir a garantir a consecução de tais metas, vejamos um trecho da referida apresentação:

Em um Estado democrata de Direito, a igualdade de todos deve ser garantida na lei e nos fatos. Porém, há grupos humanos que são menores em número ou na sua expressão econômica ou política, e por isso são tratados pela sociedade envolvente não apenas como diferentes, mas desiguais e "menores" em direitos.

A delicada questão do tratamento dado por governos e povos às suas minorias encontra-se no centro das preocupações mundiais. A Conferência Mundial sobre Racismo em Durban (África do Sul), realizada em agosto de 2001, pretendeu apontar os novos paradigmas na promoção de políticas públicas, visando a pavimentar as avenidas que podem ser percorridas no cenário internacional para que o respeito à diferença - como afirmação do valor da diversidade - e a promoção da efetiva igualdade, possam garantir a todos o pleno gozo dos direitos fundamentais, sem distinção de sexo, cor, raça, origem nacional ou regional, etnia, religião, orientação sexual, ou qualquer outra distinção.

Este movimento no âmbito internacional é congruente com o que se passa no plano interno, sobretudo a partir da Constituição brasileira de 1988, a qual lançou a base jurídica para construção de um Estado que atue em favor de uma sociedade solidária e pluriétnica - metas alçadas à condição de objetivos fundamentais da República. [85] [no original sem grifos]

No mesmo sentido é a posição dos Professores Clèmerson Merlin CLÈVE e Melina Breckenfeld RECK, que em recente artigo publicado na Revista On-line desta instituição de ensino, asseveram que, é garantido o esteio constitucional às políticas de ações afirmativas, pois, hodiernamente, o princípio da igualdade assume uma função bem diferente daquela concebida nos séculos XVII e XVIII, de uma garantia negativa para uma garantia positiva – sempre, do Estado p/ o cidadão -, vejamos:

... não há dúvida de que a Constituição de 1988 acolheu a transformação do princípio da igualdade, ou seja, a passagem de um conceito constitucional estático e negativo a um conceito dinâmico e positivo. Assim, o princípio constitucional da igualdade não representa mais um dever social negativo a um conceito dinâmico e positivo. Assim, o princípio constitucional da igualdade não representa mais um dever negativo, mas sim uma obrigação positiva, cuja expressão democrática mais atualizada é a ação afirmativa. [86] [no original sem grifos]

Segundo o jus-filósofo Jürgen HABERMAS, [87] deve-se tomar cuidado com o que ele chama de "princípios da maioria", pois, a composição do contingente dos cidadãos, normalmente, viciam aqueles resultados que e, a justificativa para a unidade está além do alcance intelectivo da maioria da população.

Vejamos a posição do filósofo, quanto às ações afirmativas:

Uma minoria prejudicada pode sem dúvida alcançar a igualdade de direitos pela via da secessão, mas unicamente sob a condição improvável de sua concentração espacial [por tempo determinado]. Do contrário, retornam os velhos problemas, apenas com outros sinais. Em geral, a discriminação não pode ser abolida pela via da independência nacional, mas somente por uma inclusão suficientemente sensível aos substratos culturais das diferenças específicas individuais e de grupos. O problema das minorias "natas", que pode ocorrer em todas as sociedades pluralistas, agrava-se em sociedades multiculturais. Se estas, contudo, estão organizadas como Estados de direitos democráticos abrem-se assim diversas para a meta precária [Entende-se por meta precária: como sendo a concentração espacial tratada anteriormente] de uma inclusão "sensível à diferença": divisão federalista de poderes, descentralização ou uma transferência funcionalmente especificada de competências estatais, sobretudo a garantia de autonomia cultural, direitos específicos de grupos, políticas de equalização e outros arranjos para uma efetiva proteção das minorias. Com isso se altera em determinados territórios e em determinados campos políticos o conjunto básico dos cidadãos que participam do processo democrático, sem que sejam violados os princípios deste processo. [88] [No original sem grifos]

Noutras palavras, o sentido e a vontade do , do eterno estado constitucional de , nem sempre está no que o senso comum entende por justiça, mas sim, na constante elaboração e conformação do viver constitucional e no alcance da Justiça Social.

Ainda na idéia de sistematização desse viver constitucional, nos ensina o Joaquim BARBOSA em sua obra, [89] que na conjugação dos §§ 1º e 2º do artigo 5º da Constituição Federal, extrai-se uma norma da mais alta relevância para a efetiva implementação dos direitos fundamentais. Como resultado dessa conjugação, tem-se ali, a garantia de e que estes, além de não excluírem outros possíveis decorrentes dos princípios adotados pela Constituição, exempli gratia, as ações afirmativas; se consubstanciam também, .

Destarte, inobstante ao fato de que a jurisprudência de nossas Cortes Superiores entende-se que os tratados internacionais entram em nosso ordenamento jurídico com o status de lei ordinária; o então Ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim BARBOSA, fundando-se na doutrina dos Professores Antônio Augusto Cançado TRINDADE e Celso de Albuquerque MELLO, nos ensina que: aqueles tratados internacionais que versam sobre direitos e garantias fundamentais, numa interpretação constitucional e sistemática, consubstanciam-se em normas de aplicação direta e imediata no território brasileiro, necessitando apenas de ratificação. Asseverando ainda o Ministro que: "... à luz desta respeitável doutrina, pode-se [sic] concluir que o direito constitucional brasileiro abriga, não somente o princípio e as modalidades implícitas e explícitas de ação afirmativa a que já fizemos alusão, mas também as que emanam dos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo nosso país". [90]

Com efeito, o Brasil é signatário de diversos tratados que instituem direitos e garantias fundamentais e que, portanto, se inserem no ordenamento pátrio com o status que a norma constitucional lhe outorga na conjugação dos §§ 1º e 2º do artigo 5º da CF/88. Dentre outros, que tratam de direitos fundamentais, temos àqueles que de forma implícita ou explicita adotam a discriminação positiva, como forma e critério de alcançar a igualdade substancial, a exemplo: A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

Desta forma, as ações afirmativas, são possíveis desde a ratificação pelo Brasil da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1969) e, aceitáveis desde sua recepção na Carta de 88; pois, se inscrevem no próprio sentido de uma Constituição Cidadã que fora recebida por um contingente de quase a metade da população brasileira que não possui a , em decorrência dos efeitos do regime racista incorporado por essa mesma sociedade por quase quatrocentos anos, vejamos o disposto no referido tratado em seu artigo 1º, nº 4, verbis:

Artigo 1º

1. Nesta convenção, a expressão "discriminação" significará qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais do domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.

2. Esta Convenção não se aplicará às distinções, exclusões, restrições e preferências feitas por uma Estado-parte nesta Convenção entre cidadãos e não cidadãos.

3. Nada nesta Convenção poderá ser interpretado como afetando as disposições legais dos Estados-partes, relativas à nacionalidade, cidadania e naturalização, desde que tais disposições não descriminem contra qualquer nacionalidade particular.

4. . [91] [No original, sem grifos]

Dos exemplos citados, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), em seu artigo 4º, [92] faz reservas para as mulheres na área de Direito de Família; concessões essas, por subscrever-se no que HABERMAS convencionou em chamar acima, de "concentração espacial", foram retiradas em 1994. Podendo ser indicado aqui, como um exemplo da amplitude que o sistema de cotas pode tomar, ou seja, enquanto houver necessidade do programa e em todas as áreas de atuação onde houver defasagem do quantitativo étnico necessário para que ocorra a integração social, econômica e cultural.

Por fim, parafraseando o Ilustre Professor Paulo BONAVIDES, [93] sem justiça social não há Estado de Direito nem democracia que sobreviva nos países da periferia, sendo que, este Estado de Direito é Estado de Justiça e não é meramente um sistema de leis. E assevera ainda o nobre professor constitucionalista brasileiro, que: "O direito liberta ou não é Direito. Não lhe reconhecemos outra função, outra filosofia, outro escopo, outra validez. Não importa discutir-lhe a origem, mas o fim; o fim na concretude social contemporânea." [94]

Os direitos e garantias individuais que se pretendem assegurar com os sistemas de cotas, estão no caso brasileiro, encartados desde o preâmbulo da nossa Carta propagando-se por todo o corpo constitucional e atuando como princípios fundantes do nosso sistema Político - orientando o agir dos administradores e administrados no sentido de garantir a promoção do Estado Democrático de Direito, destinando assim, ao asseguramento do pleno exercício dos direitos individuais, tendo "a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos." [95]

Devendo, portanto, ser encarado a implementação dos sistemas de cotas, "latu sensu" como um dever do Estado brasileiro à real obtenção de uma sociedade fraterna, , para isso, transformando-se no eterno e já comentado, .

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Sobre o autor
Antonio Leandro da Silva Filho

advogado militante na área do Direito Empresarial, especializando em Direito Constitucional, conselheiro estadual de Direitos Humanos no Paraná, militante do Movimento Negro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA FILHO, Antonio Leandro. Ações afirmativas no Brasil:: sistema de cotas, amplitude e constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 862, 12 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7497. Acesso em: 5 nov. 2024.

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