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Da nulidade do lançamento do ITBI por violação do direito ao contraditório e ampla defesa

Leia nesta página:

O contribuinte tem o direito de conhecer os critérios de avaliação utilizados pela administração quando do lançamento por arbitramento do ITBI.

1.Introdução

No processo penal, o réu tem o direito de saber de qual crime e respectivas circunstâncias (razões de fato e de direito) está sendo acusado, sob pena de nulidade da denúncia. No processo tributário (sentido amplo), de modo semelhante, assiste ao contribuinte o direito de saber as razões (jurídicas e fatídicas) pelas quais uma certa obrigação tributária lhe está sendo imposta. Mas isso nem sempre ocorre com a clareza esperada. Por isso, no âmbito tributário, uma grande quantidade de atos de lançamento do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) pelos municípios brasileiros, poderiam ser declarados nulos simplesmente por cerceamento do direito ao contraditório e ampla defesa, haja vista o modo viciado pelo qual tem sido realizado o arbitramento do valor venal dos imóveis.

Entendamos. O Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) tem previsão no art. 156, II, da Constituição Federal de 1988:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

O ITBI é lançado, em regra, por declaração do sujeito passivo. A apresentação do contrato particular que irá servir à transmissão onerosa inter vivos do imóvel caracteriza o lançamento por declaração, já que, no contrato, consta o valor venal do bem indicado pelo sujeito passivo, sobre o qual irá incidir a alíquota do ITBI.

 Havendo disparidade entre o valor declarado pelo sujeito passivo e o valor venal atribuído pelo fiscal de tributos, a Administração Tributária não irá simplesmente homologar a declaração do sujeito passivo, mas sim proceder ao lançamento por arbitramento, geralmente aumentando o valor da base de cálculo. No caso da simples homologação, torna-se dispensável o processo administrativo fiscal que se inicia com a impugnação, conforme art. 14, Decreto Federal 70.235/72. Por outro lado, no caso da Administração não homologar, mas sim, lançar por arbitramento, aumentando o valor da base de cálculo, a Administração terá obrigação de fundamentar o lançamento, justificando o aumento da obrigação tributária perante o contribuinte.

Nesse último caso, o valor atribuído pelo sujeito passivo será desconsiderado e a Administração realizará um procedimento de avaliação, para depois notificar o sujeito para pagar. Importa frisar que arbitramento não é sinônimo de discricionariedade e, por isso mesmo, não dispensa a Administração de justificar ou fundamentar o lançamento. A notificação nesse caso é semelhante ao indeferimento do pedido de isenção, indeferimento de imunidade tributária, indeferimento de parcelamento, dentre outros. Portanto, ao ser efetuado um arbitramento o sujeito passivo tem direito de saber como a Administração chegou ao valor arbitrado, sob pena de nulidade.

Posto isso, surge a seguinte questão: a base de cálculo do ITBI, por força do art. 38 do Código Tributário Nacional, é o valor venal do imóvel. No caso do valor venal ser apurado por arbitramento da Administração Tributária, o sujeito passivo não tem direito de saber como foi avaliado o imóvel, isto é, saber os critérios levados em consideração, tais como condições do imóvel, total de área construída, benfeitorias presentes no imóvel e que repercutam no preço, divergências entre a certidão de inteiro teor e a situação real do bem, características urbanas, dentre outros? Entendemos que sim, há o direito de ser previamente informado, sob pena de nulidade.


2. Lançamento por mera homologação e lançamento por arbitramento: condições de validade

A aceitação do valor indicado pelo sujeito passivo caracteriza homologação da declaração. Nesse caso, não se inicia o processo administrativo propriamente dito, uma vez que é o próprio sujeito passivo quem “prepara o lançamento” e a Administração, por sua vez, não “se utiliza” de fato estranho aos indicados pelo sujeito passivo na declaração. Por outro lado, quando a Administração não “se contenta” com o valor indicado pelo sujeito passivo e passa a arbitrar o valor da base de cálculo é a própria Administração quem “encontra” os fatos e razões jurídicas para lançar o tributo. Vale dizer, a Administração “prepara” o lançamento.

Nessa situação, a pura e simples indicação do valor venal do imóvel arbitrado na notificação, sem expor as razões pelas quais se chegou ao valor do tributo configura violação do direito ao contraditório e ao dever de fundamentação dos atos do Poder Público em geral. Pois, se os municípios não indicam o método e critérios utilizados para se chegar ao valor venal do imóvel no caso do arbitramento o sujeito passivo se vê desprovido de meios de atacar o lançamento. O descumprimento do dever de fundamentação implica, nesse caso, violação indireta do direito ao contraditório e ampla defesa, visto que o sujeito passivo, para impugnar o valor arbitrado, necessita de ter conhecimento da metodologia usada pela Administração. Conforme anota Segundo (2018), o ato (de lançamento) desacompanhado dessa fundamentação, e dessa comprovação, é nulo, e não gera a tão alegada quanto equívoca “presunção de validade” do ato administrativo.

Nesse sentido, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça segundo o qual o lançamento fiscal, espécie de ato administrativo, goza da presunção de legitimidade; essa circunstância, todavia, não dispensa a Fazenda Pública de demonstrar, no correspondente auto de infração a metodologia seguida para o arbitramento do imposto. (Resp. 48516, acórdão unanime da 2ª Turma, Relatoria do Ministro Ari Pargendler, publicado em 13/10/1997).


3. Ônus de provar a ocorrência do fato gerador

Não é do sujeito passivo o ônus de provar a ocorrência do fato gerador do tributo, mas sim da Administração Tributária, a credora. Por isso, a descrição do fato é condição de validade do lançamento e do auto de infração. Esse ônus que decorre implicitamente do art. 5º, inciso LV, CF de 88 é regra prevista no art. 9º do Decreto Federal nº 70.235/72:

Art. 9o. A exigência do crédito tributário e a aplicação de penalidade isolada serão formalizados em autos de infração ou notificações de lançamento, distintos para cada tributo ou penalidade, os quais deverão estar instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do ilícito.

§ 1o Os autos de infração e as notificações de lançamento de que trata o caput deste artigo, formalizados em relação ao mesmo sujeito passivo, podem ser objeto de um único processo, quando a comprovação dos ilícitos depender dos mesmos elementos de prova.

Para o lançamento por arbitramento, com maior razão, é imprescindível a descrição minuciosa dos elementos de convicção empregados. Nesse sentido, corrobora a lição Hugo de Brito Machado Segundo (2018), amparada em vasta jurisprudência:

[...]para que haja “dispensa do processo administrativo, nos termos da jurisprudência hoje dominante, não basta que a autoridade aproveite os “fatos” declarados pelo contribuinte. Deve aproveitar toda a sua apuração, ou seja, também a significação jurídica e contábil dada pelo sujeito passivo aos tais fatos”

Quanto à obrigatoriedade de fundamentação do lançamento tributário colhemos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF (antigo Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda), ementa de acórdão unânime, processo número 103-11.089, de Relatoria do Conselheiro Márcio Machado Caldeira, publicado no DOU em 17.1.1992, p. 660:

IRPJ – Lançamento – O lançamento do crédito tributário não deverá ser constituído quando forem insuficientes os elementos de comprovação da ocorrência do fato gerador. Simples informações, fornecidas em função de cláusula contratual, isoladamente, não são suficientes para fundamentar a cobrança de tributos.”

Portanto, não é lícito à Administração transferir o ônus da apuração do valor ao contribuinte. Quanto a esse vício, alerta ainda, e com razão, Hugo de Brito Machado Segundo (2018):

É kafkiano, para dizer o menos, transferir ao contribuinte um ônus que é do Fisco, consistente na apuração do quantum da dívida tributária, e, diante disso, estabelecer que: (a) apurações de quantias inferiores às devidas sujeitam o contribuinte a severas multas; (b) apurações superiores às devidas não poderiam ser corrigidas posteriormente, em um processo administrativo, pois foi “o próprio contribuinte quem as fez”. Como se isso fosse pouco, ainda se estabelece que, corrigido judicialmente o erro – que deveria ter sido corrigido pela Fazenda, ao homologar as declarações –, deve o contribuinte ser condenado nos ônus da sucumbência, como se fosse perdedor da demanda, ou como se tivesse dado causa à mesma.

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De notar que não é por acaso que, no âmbito federal, o Decreto 70.235/72, ao dispor sobre o auto de infração tributária determina os seguintes requisitos obrigatórios de validade:

Art. 10. O auto de infração será lavrado por servidor competente, no local da verificação da falta, e conterá obrigatoriamente:

I - a qualificação do autuado;

II - o local, a data e a hora da lavratura;

III - a descrição do fato;

IV - a disposição legal infringida e a penalidade aplicável;

V - a determinação da exigência e a intimação para cumpri-la ou impugná-la no prazo de trinta dias;

VI - a assinatura do autuante e a indicação de seu cargo ou função e o número de matrícula.

Outrossim, importa não confundir o direito à avaliação contraditória previsto no Código Tributário Nacional, art. 148, com o direito à fundamentação da notificação quando do lançamento por arbitramento, pois os fundamentos do arbitramento na fase preparatória é que serão objeto de contestação e motivo da avaliação contraditória na fase posterior – processo administrativo propriamente dito. Eis o direito à avaliação contraditória, CTN, art. 148:

Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.

O direito à avalição contraditória, ocasião em que o sujeito passivo poderá indicar assistente técnico (conforme previsão, no âmbito federal, do art. 18, §1º, do Decreto 70.235/72) é algo a ser oportunizado após a notificação. O direito a uma notificação “minimamente justificada” quanto ao arbitramento é um direito inerente ao lançamento.


4. Considerações finais

 Finalmente, insta concluir que, no âmbito de vários municípios brasileiros, quer seja por falta de comunicação adequada entre o órgão de representação jurídica (procuradorias) e a autoridade tributária competente para o lançamento, quer seja pela escolha consciente de privilegiar interpretação mais favorável à Fazenda (redução de custos com avaliação, por exemplo), muitas vezes o lançamento do ITBI é nulo por violação do direito a um processo minimamente “devido”, fundamentado, dialético, equânime, o que se tornou prática contumaz, notadamente, quando o lançamento se dá por arbitramento.

Por último, importa registrar que a nulidade do lançamento tributário por conta da violação do direito ao contraditório e ampla defesa não se confunde com o direito de simplesmente revisar o valor arbitrado por se revelar excessivo. O valor do imposto pode não ser excessivo, mas o lançamento, ainda assim, pode ser nulo pelas razões expostas.


Referências:

CARNEIRO, Cláudio (2018). Processo tributário administrativo e judicial. 5ªed. São Paulo: Saraiva.

CASTRO, Eduardo M. L. Rodrigues; et. al (2018). Tributos em espécie. 5ª ed. Salvador: Editora Juspodivm.

SEGUNDO, Hugo de Brito Machado (2018). Processo tributário. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas.

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Sobre o autor
Roosevelt Delano Guedes Furtado

Advogado. Especialista em Direito Previdenciário. Graduando em Filosofia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURTADO, Roosevelt Delano Guedes. Da nulidade do lançamento do ITBI por violação do direito ao contraditório e ampla defesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5922, 18 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74977. Acesso em: 2 nov. 2024.

Mais informações

A dialética processual é uma garantia fundamental. Como tal oferece ao cidadão a sadia oportunidade de participação das decisões da Administração. Essa participação, no âmbito do processo jurídico, é uma conquista que caracteriza a modernidade. Mas nem uma conquista se torna efetiva sem luta. Nos processos administrativos fiscais, é importante que o contribuinte disponha de argumentos para exigir seu cumprimento.

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