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Da personalidade jurídica e sua desconsideração

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08/11/2005 às 00:00
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3 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

            Haja vista, uma das características principais da personalidade jurídica é a sua total autonomia em relação aos membros, pessoas naturais, que a constituem. "Essa independência revela-se no patrimônio, nas relações jurídicas e na responsabilidade civil, sabido que o novo ente não responde pelos atos de seus membros, nem estes por atos daquele, salvo expressa disposição legal ou contratual." [34]

            Mas os atos praticados em nome da pessoa jurídica são, necessariamente, efetivados pelas pessoas naturais que a constituem, que a presentam, fazendo da personalidade jurídica, muitas vezes, um véu para encobrir atos ilícitos ou abuso de direitos. Elaine Ramos da Silva [35], diz:

            Mas o princípio da autonomia patrimonial pode servir também para que as sociedades comerciais sejam utilizadas como instrumento para a realização de fraudes contra credores ou para abusos de direito. Tomando-se o princípio como intocável, tem-se por conseqüência a impossibilidade de correção de fraudes e abusos.

            No ordenamento jurídico brasileiro, a desconsideração da personalidade jurídica é um instituto relativamente novo, que ainda precisa de algumas regulamentações, principalmente no campo processual. Mas a história do instituto remete a outros ordenamentos, que já previram situações semelhantes em outras épocas.

            2.1 Aspectos históricos

            Foi o sistema da common law, principalmente o americano, que, inicialmente, sem o dogmatismo e a sistematização próprios do direito europeu continental, pôde exercer maior controle sobre a pessoa jurídica, na sua atividade jurídica e na realização de seus fins, chegando à doutrina da disregard of legal entity, do direito americano, ou a do Durchgriff durch die Rechtspersönlichkeit do direito alemão [36].

            KOURY [37] descreve o primeiro caso conhecido de disregard doctrine, originalmente repudiado pela doutrina:

            Com efeito, no ano de 1809, no caso Bank of United States v. Deveaux, o juiz Marshall, com a intenção de preservar a jurisdição das cortes federais sobre as corporations, já que a Constituição Federal americana, no seu artigo 3º, seção 2a, limita tal jurisdição às controvérsias entre cidadãos de diferentes estados, conheceu da causa.

            A decisão revelou a necessidade, já no século XIX, de se tratar a pessoa jurídica e as pessoas naturais que a constituem como um todo, resguardadas as devidas autonomias, que agem em relação de interdependência. Nesse sentido Serick, apud AMARAL [38], diz que "embora a pessoa jurídica seja, de regra, um sujeito nitidamente diverso dos seus membros, sua subjetividade deve, porém, em certos casos e sob certas condições, ser colocada de lado."

            No ano de 1897, a Corte de Justiça da Inglaterra julgou o célebre caso Salomon v. Salomon & Co., em que foi comprovado que a atividade da companhia era ainda a atividade pessoal de Salomon para limitar a própria responsabilidade e, em conseqüência, ele foi condenado a pagar os débitos da empresa, que se encontrava insolvente. O magistrado reconheceu que a companhia era apenas uma fiduciária de Salomon, ou melhor, um seu ‘agent’ ou ‘truste’, que permanecera na verdade o efetivo proprietário do fundo de comércio após tê-lo cedido ficticiamente a seus parentes. [39]

            Mas a sistematização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica deu-se em trabalho dos anos 1950 do jurista alemão Rolf Serick. COELHO [40] diz que, "segundo seu principal postulado, sempre que a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas for manipulada para a realização de uma fraude, o juiz pode ignorá-la e imputar a obrigação diretamente à pessoa que procurou furtar-se de seus deveres".

            2.2 A desconsideração da personalidade jurídica no Código Civil

            Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica (art. 50 do CC).

            O juiz está autorizado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que esta é manipulada na realização de fraudes, seja no desvio de sua função social, ou seja, utilizada contrariamente às suas finalidades, seja em casos de confusão patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e das pessoas naturais que a constituem, ou entre a pessoa jurídica e outra pessoa jurídica.

            Esse desvio de função da pessoa jurídica traz à mente a figura do negócio indireto, que pode ser definido como aquele em que as partes se propõem a alcançar uma finalidade que não é a finalidade típica, segundo a lei, do negócio jurídico escolhido. O negócio indireto pode ser lícito ou ilícito, e sua nulidade não está na causa, e sim no fim perseguido pelas partes. A disregard doctrine surgiria, então, como um recurso jurídico contra essa utilização indireta da pessoa jurídica. [41]

            O abuso do direito corresponde a um mau-uso do direito, ou seja, "ao exercício normal de um direito, estando o seu titular, todavia, desviando o fim econômico-social para o qual aquele direito foi criado." [42] Araken de Assis [43] diz que "esta extensão se justifica para evitar que o responsável pelo abuso da personalidade jurídica, ou pelo desvio da sua finalidade, forre-se da responsabilidade, haja vista participação social secundária".

            Em relação à confusão patrimonial, José Tadeu Neves XAVIER [44] apresenta as possibilidades de ocorrência:

            Relativamente à confusão patrimonial, assinala que a confusão de esferas jurídicas se verifica quando, por inobservância das regras societárias, ou mesmo, por qualquer decorrência objetiva, não fica clara, na prática, a separação entre o patrimônio social e o do sócio ou dos sócios. Podem distinguir-se duas situações: a mistura de sujeitos de responsabilidade e a mistura de massas patrimoniais. Nos grupos econômicos, a mistura de sujeitos da responsabilidade ocorre havendo identidade dos membros da administração ou gerência de duas ou mais sociedades, desrespeito às formalidades sociais ou, ainda, utilização de uma única sede para a atuação de várias sociedades, com firmas e ramos de atuação assemelhados. Já a mistura de massas patrimoniais pode apresentar-se em várias configurações, desde a inexistência de separação patrimonial adequada na escrituração social até a situação em que, na prática, os patrimônios de ambos não são suficientemente diferenciados.

            Também podem abusar da personalidade da pessoa jurídica, desviando sua finalidade ou confundindo patrimônios, independentemente da espécie, os representantes legais ou administradores dela.

            Francisco AMARAL [45] descreve as hipóteses mais freqüentes de aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica como sendo: o ingresso fraudulento na sociedade de bens ou direitos pertencentes a terceiros, realizado por sócio; a mistura de bens ou de contas entre acionista controlador e participantes da sociedade e a própria sociedade; negócios pessoais feitos pelo administrador como se fosse pela sociedade, confusão de patrimônios de sócio e da sociedade; o desvio de finalidade do objeto social com fins ilícitos ou fraudulentos etc.

            A aplicação dessa teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem por finalidade principal fazer desaparecer a autonomia da pessoa jurídica e das pessoas naturais que a constituem, criando uma situação de subsidiariedade em que a responsabilização pessoal da pessoa natural começa no momento em que se esgotam as possibilidades patrimoniais da pessoa jurídica para garantir as responsabilidades por esta assumidas.

            2.3 A desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor

            O instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem tratamento especial no Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu art. 28, e tem por finalidade ampliar a ação do poder judiciário frente a casos em que surja a necessidade de investigar a situação pessoal dos sócios da empresa devedora na busca por bens que, seja por motivo de gestão ruinosa da pessoa jurídica, seja por desvio de capital e bens da pessoa jurídica para o patrimônio pessoal dos empresários, possam satisfazer os credores por meio do pagamento de débitos contraídos pela pessoa jurídica.

            "A admissão, pelas sociedades, do princípio da personalidade jurídica, deu lugar a indivíduos desonestos que, utilizando-se da mesma, praticassem, em proveito próprio, atos fraudulentos ou com abuso de direito, fazendo com que as pessoas jurídicas respondessem pelos mesmos" [46]. Levantando-se esse véu, que é a personalidade jurídica, é possível chegar aos meandros dos atos praticados pelos sócios em nome da pessoa jurídica, visando desconstituir fraude, abuso, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, mas somente por ordem judicial mediante requerimento da parte interessada ou do Ministério Público. Fran Martins, nesse sentido:

            Nas situações de crise da empresa, vindo à quebra, pode acontecer a confusão patrimonial e o uso abusivo da personalidade; assim, ainda que o credor não peça, ou se trate de simples pedido de concordata, convolado em falência, ao juiz se lhe permite, descrevendo pormenorizadamente os fatos, apontando os atos, desestimar a pessoa jurídica, com intuito de alcançar bens particulares dos sócios.

            O termo desconsiderar, no caso do CDC, pode ser analisado como desacreditar, não conceituar a personalidade jurídica que, em si, é um limite legal para a responsabilidade dos atos da pessoa jurídica. Pode-se conceituar a teoria da desconsideração como sendo um afastamento momentâneo da personalidade jurídica, para destacar ou alcançar diretamente a pessoa do seu constituinte, como se a pessoa jurídica não existisse, em relação a um ato concreto e específico.

            O artigo 28 prevê os casos em que se desconsiderará a personalidade jurídica nas relações de consumo. Ocorrerá quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

            O parágrafo segundo desse artigo refere-se a sociedades integrantes de grupos societários e sociedades controladas, inserindo-lhe a responsabilidade subsidiária para com quem diretamente é responsável pelo dano. Se uma empresa, que compõe um grupo societário, vem a lesar cliente seu, através de uma relação de consumo, as demais sociedades integrantes desse grupo são solidariamente responsáveis pela indenização do dano causado, podendo, inclusive, haver nova desconsideração da personalidade jurídica destas.

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            Podem existir casos em que a criação de pessoas jurídicas "fantasmas", ou que existam somente no registro, mas sem patrimônio, sede, capital, ou até mesmo funcionários, existam com a única meta de fraudar credores. Os membros integrantes dessas pessoas jurídicas fazem financiamentos, empréstimos, assumem responsabilidades, cometem atos ilícitos e gestão ruinosa e transferem todos os valores oriundos dessas operações para outra pessoa jurídica componente do grupo societário. Ao executar seu título, o credor não conseguirá encontrar bens para penhorar ou hipotecar, e o capital oriundo do negócio jurídico estará fora de seu alcance.

            Ocorrendo a transferência desses valores para um sócio da pessoa jurídica real, que não o sócio comum da real e da "fantasma", somente a desconsideração da personalidade jurídica de ambas as pessoas jurídicas conseguirá atingir a meta principal da execução, que é o pagamento do débito. Por exemplo, se a empresa A (fantasma), contrai um empréstimo tendo por seu sócio o Sr. fulano, que também é sócio da empresa B (real), e o Sr. fulano transfere os valores do empréstimo para o patrimônio pessoal do Sr. beltrano, sócio apenas da empresa B, esses valores poderão ser recuperados somente se desconsideradas ambas as personalidades jurídicas de A e B, pois estarão integrados no patrimônio pessoal de beltrano.

            O parágrafo terceiro do art. 28 descreve como sendo solidária a responsabilidade das sociedades consorciadas, podendo ser assim consideradas aquelas que se unem, se consorciam, a fim de conseguir um objetivo em comum. Exemplos disso podem ser encontrados nas licitações, que exigem um capital social determinado à empresa e, no caso desta não atingir tal quota mínima, se une a outras a fim de somar seus respectivos valores de capital.

            Como, em tais casos, a soma dos capitais sociais das empresas consorciadas visam atingir uma meta comum, a mesma soma será garantidora dos adimplementos das responsabilidades assumidas pelo grupo. Por sua característica solidária, a responsabilidade atinge a todos os sócios do grupo consorciado em caso de desvio do patrimônio das empresas para o seu patrimônio pessoal. Caso alguma empresa queira desligar-se do grupo, este somente continua a fazer parte do contrato público (em caso de licitação) se conseguir integralizar o capital por meio de recursos próprios ou substituição da consorciada excluída.

            O parágrafo quarto do artigo 28 se refere às sociedades coligadas, caso em que as mesmas apenas responderão por culpa. O CC, em seu art. 1.097, descreve que "consideram-se coligadas as sociedades que, em suas relações de capital, são controladas, filiadas, ou de simples participação, na forma dos artigos seguintes", ocorrendo em casos em que uma sociedade participa, seja de forma majoritária ou minoritária, do corpo de ações da outra.

            Sociedades coligadas são aquelas vinculadas a uma ou mais empresas sujeitas à mesma relação de controle, integrantes do mesmo grupo econômico. Conforme o magistério de Fábio Ulhoa Coelho (Curso de Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, v., p. 467), "as sociedades podem ligar-se por relações de controle ou coligação, como subsidiária integral, participação em grupos ou por consórcio". No caso do enunciado deste art. 1.097, a vinculação decorre de relações de capital, quando uma sociedade detém participação no capital de outra sociedade, exercendo ou não seu controle. [47]

            O parágrafo quinto amplia a abrangência para os casos de cabimento da desconsideração da personalidade jurídica de uma pessoa jurídica na responsabilização por danos em relações de consumo, permitindo que o juiz o faça "sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores". Tal regramento retira o caráter definitivo e limitador das demais possibilidades arroladas nos parágrafos anteriores, deixando ao arbítrio do julgador a utilização do instituto para quaisquer casos em que for cabível, independentemente de se enquadrar nos exemplos dos demais parágrafos ou não.

            2.4 Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica

            A desconsideração da personalidade jurídica trata-se de um poder que é expressamente outorgado ao juiz, condicionado ao requerimento da parte ou do Ministério Público, e cuja utilização não atingirá situações processuais já constituídas ou direitos processuais adquiridos, mas, sim, implicará a constituição de novas situações jurídicas. [48] A doutrina, porém, se divide: uma corrente entende ser necessário um processo cognitivo autônomo para aplicar o princípio da desconsideração da personalidade jurídica, a fim de garantir os princípios da ampla defesa e do contraditório, ao passo que a outra entende ser possível apenas por simples despacho.

            MENEZES [49] diz que "é falso que a exigência de sentença tornaria inoperante a desconsideração da personalidade jurídica. Se há urgência, se há perigo na demora, há todo o rol das medidas cautelares, entre elas a do seqüestro, para garantir a eficácia prática da futura sentença."

            A desconsideração da personalidade jurídica visa anular ato fraudulento ou abusivo, o qual deve ser provado em juízo. Ocorre que, nos casos de responsabilização por abuso ou fraude praticados em relações de consumo, impera a inversão do ônus da prova, em face de dois princípios: a) da vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor; b) da responsabilidade objetiva do fornecedor de bens ou serviços. Nesses casos, é o fornecedor que deverá provar que a culpa pelo defeito ou fato do produto ou do serviço é exclusiva do consumidor ou de terceiro, ou que o defeito não existe, ou que não efetuou o serviço ou não colocou o produto no mercado (arts. 12, § 3º e 14, § 3º do CDC).

            A doutrina entende ser inadmissível, apesar de todo o caráter protecionista do CDC, a desconsideração da personalidade jurídica em tutela antecipada, eis que o instituto possui caráter semelhante aos processos cautelares, o que permite, portanto, a concessão de medida liminar.

            O que se defende, com efeito, é que o juiz, perante um caso concreto em que fique comprovada a prática de atos fraudulentos, de descumprimento de obrigações, de atos ilícitos por pessoas que aproveitam a vantagem da limitação da responsabilidade da pessoa jurídica, deve desconsiderar a personalidade jurídica, embora esta permaneça íntegra para os seus legítimos objetivos. [50]

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Sobre o autor
Luiz Gustavo Lovato

advogado, especialista em Direito Privado pela UNIJUÍ, corretor de imóveis, mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOVATO, Luiz Gustavo. Da personalidade jurídica e sua desconsideração. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 858, 8 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7522. Acesso em: 23 dez. 2024.

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