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Anotações sobre o processo romano

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18/09/2019 às 16:05
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IV – Extraordinaria cognitio

No começo do Principado tornava-se frequente o uso de julgar extra ordinem certas questões que diziam respeito a cognitio extra ordinem ou extraordinaria cognitio, por oposição a ordo privatorum. Caracterizava-se pela ausência de duas fases: em iure e in iudicio e por desenvolverem-se em todos os seus momentos diante de um funcionário público.

Justiniano observou, a seu tempo, que todos os juízes são extraordinários.

Sobre essa etapa importante do processo romano, colho a lição de Gustavo Bohrer Paim (Breves notas sobre o processo romano): 

“O sistema processual da cognitio extra ordinem, adotado no direito romano especialmente a partir do principado e que se prolongaria até o final do reinado de Justiniano, passou, paulatinamente, a sobrepujar o sistema formulário,sem perder, contudo, a denominação extraordinária.

A preferência por esse sistema deu-se, precipuamente, em razão de sua celeridade, decorrente do fato de não haver bipartição do processo, desenrolando-se todo diante do magistrado, além de permitir recurso contra a sentença.

Pelo procedimento da cognitio extra ordinem, o magistrado exercia a iurisdictio e a iudicatio, podendo, se quisesse, e, em regra, ocorria, conceder a iudicatio a uma pessoa privada (iudex). A extraordinaria cognitio era mais moderna, flexível e livre do acentuado formalismo, visto que foi o último sistema, originado já no direito público. As principais diferenças entre o procedimento ordinário (formulário) e a cognitio extra ordinem era que naquele a nomeação do iudex pelo magistrado era obrigatória, enquanto nesta era uma faculdade. No procedimento ordinário, não poderia ocorrer o iudicium se as partes não tivessem concordado quanto ao juiz (iudex), não ocorrendo a contumácia em caso de não comparecimento do demandado. Já na cognitio extra ordinem, o acordo entre as partes não era obrigatório, podendo dar-se a sentença em revelia.

A oralidade era a regra da extraordinaria cognitio, debatendo as partes, em contraditório, a causa, havendo maior autoridade do magistrado e menor formalismo. Passou-se a permitir a condenação in natura, abolindo-se a obrigatoriedade da condenação em valor pecuniário. Permitiu-se, também, o reexame da decisão, criando-se na “organização judiciária do império uma estrutura hierárquica composta por inúmeros órgãos, aos quais se conferia o poder de julgar em primeiro ou superior grau de jurisdição”.

O processo tornou-se inteiramente estatal desenvolvendo-se, em sua totalidade, frente ao magistrado, razão pela qual a citação começou a ter maior participação da autoridade pública e, em decorrência desse maior controle público, já se poderia falar em contumácia Também a decisão do magistrado não mais correspondia a um parecer jurídico (sententia) de um iudex, passando a possuir um comando vinculante próprio de um órgão estatal.

Realizada a citação, as partes compareciam perante o magistrado, devendo o demandante expor sua pretensão (petitio), e o demandado, sua defesa. Por litis contestatio, entendia-se o momento em que era “fixado o thema decidendum, correspondendo, portanto, à narratio e a contradictio”. Passava-se à produção probatória, sendo permitidos todos os meios que possibilitassem ao juiz a formação de seu convencimento. A sentença, conforme referido, “encerrava um comando imperativo e vinculante emanado de um órgão estatal”, devendo ser lida e publicada na presença dos litigantes, e sendo passível de appellatio, que significava um “remédio ordinário contra a injustiça substancial do julgado resultante de sentenças formalmente válidas.

Em relação à execução, permanecia o procedimento do processo formular referente à actio iudicati, pressupondo uma condenação pecuniária. Em sendo execução para restituição, passado o prazo, e não cumprida a ordem judicial, poder-se-ia utilizar a força (manu militari), quando necessário. Sendo condenação pecuniária, passado o prazo, procedia-se à penhora realizada em razão do julgamento (pignus ex causa iudicati captum), que se dava por meio de funcionários da organização judiciária estatal (apparitores ou exsecutores). Havia uma ordem para a penhora, iniciando-se com bens móveis e semoventes; caso não fossem suficientes, podiam ser penhorados imóveis e, a seguir, direitos.”.


V – Os interditos

Os interditos romanos são mencionados por fim.

Interdictum era a ordem que o magistrado dava a um indivíduo, à solicitação de um outro, de fazer ou abster-se de fazer alguma coisa. No primeiro caso, dava-se o nome de decreta. Tinha-se, em Roma, os interdicta prohibitoria, os interdicta restitutoria e os interdicta exhibitoria. Prohibitoria eram aqueles que proibiam uma certa atividade; restitutoria eram os que ordenavam a restituição de coisa a pessoa ou restauração de estado de fato, e exhibitoria os que ordenavam a exibição de um documento.

O interdito era decisão pura e simples do magistrado, sancionada diretamente. Neste bojo, surgiu a tutela da posse. A posse não era defendida por actiones, mas por interditos, que se distinguam dessas actiones, por jamais produzirem sentenças condenatórias.

P. Fuenteseca  (Investigaciones de derecho procesal romano, Salamanca, 1969, p. 143) escreveu: “Os interditos eram ordens pretórias onde não se decidia nenhum vínculo entre a pessoa e a coisa (dominium ex iure Quiritium), nem entre duas pessoas (obligatio), mas unicamente se decidia a respeito do factum ou da vis que alterava a situação de fato existente”. Nesta linha, os intérpretes do processo romano viam nos interditos não uma aplicação de uma regra de direito, onde há um primeiro decisório, de caráter mais administrativo, que judicial; pois o magistrado se interpõe entre as partes, mas como uma autoridade que lhes impõe um mandado.

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A cognição, que existia precariamente nas interdicta, era própria de juízos precários. A questão sobre a existência de um direito subjetivo não se põe em demanda interdital, bastando a mera verossimilhança do direito invocado. Por essas razões, essas decisões em que se ordenavam não tinham eficácia para produzir coisa julgada. Para muitos, a proteção interdital era incidente processual ou medida preparatória.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Anotações sobre o processo romano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5922, 18 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75362. Acesso em: 24 abr. 2024.

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