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Funcionalismo da investigação criminal

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22/07/2019 às 14:20

Resumo:


  • A investigação criminal no Brasil possui funções essenciais como preparar o exercício da ação penal, reunindo elementos sobre autoria e materialidade delituosa; servir como um filtro contra acusações infundadas, preservando o investigado e o sistema judiciário; e descobrir fatos ocultos, visando reduzir as "cifras negras" da criminalidade.

  • Além de suas funções principais, a investigação criminal também possui um papel simbólico, reforçando a ordem jurídica e contribuindo para a sensação de segurança na sociedade, e uma função restaurativa, buscando a recuperação de ativos e a desarticulação de estruturas criminosas.

  • O inquérito policial, como principal instrumento investigativo, não é o único meio de investigação criminal, mas reflete as finalidades gerais desse processo, que incluem a coleta de informações sobre o fato criminoso e a identificação do autor, servindo tanto para fundamentar a acusação quanto para absolver o inocente.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A investigação criminal pode cumprir um grande papel no intuito de mitigar os danos causados pela infração e ainda desarticular a estrutura criada com base na prática de atos ilícitos.

Para que possamos compreender os modelos de investigação existentes e as especificidades dos procedimentos investigativos regulamentados no Brasil, torna-se imprescindível o estudo das funções de uma investigação criminal prévia ao processo.

Afinal, qual seria a finalidade da investigação preliminar? Quais são seus objetivos? O que se deve buscar durante o seu desenvolvimento? Foi com a finalidade de responder todas essas indagações que nesse estudo ousamos defender a existência de um Funcionalismo que deve pautar a apuração de toda e qualquer infração penal.


Função Preparatória

O objeto de uma investigação criminal é sempre a notitia criminis. Isso significa que é a possibilidade de ocorrência de uma infração penal que justifica a deflagração de um procedimento investigativo cuja finalidade seja, entre outras, a de viabilizar o perfeito esclarecimento dos fatos, suas circunstâncias e motivações.

Com a adoção do Sistema Acusatório pelo nosso ordenamento jurídico, não cabe ao Estado-Juiz dar início a um processo. Essa pretensão acusatória deve ser exercida, em regra, pelo Ministério Público, titular da ação penal pública, ou excepcionalmente pelo ofendido, nos crimes de ação penal privada.

Mas como exercer essa atividade acusatória sem dispor dos elementos mínimos sobre autoria e materialidade?! É esta, pois, a primeira função da investigação criminal: reunir elementos indiciários sobre a autoria e materialidade delituosa, preparando, assim, o exercício da ação penal pelo seu titular.

Ao discorrer sobre as finalidades do inquérito policial, principal instrumento investigativo do nosso ordenamento jurídico, TOURINHO explica o seguinte:

(...) o inquérito policial visa à apuração da existência de infração penal e à respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a promovê-la. Apurar a infração penal é colher informações a respeito do fato criminoso. (...) Apurar a autoria significa que a Autoridade Policial deve desenvolver a necessária atividade visando a descobrir, conhecer o verdadeiro autor do fato infringente da norma.[1]

Para TORNAGHI, “o inquérito policial é a investigação do fato, da sua materialidade, e autoria. É a inquisitivo generalis destinada a ministrar elementos para que o titular da ação penal (Ministério Público, ofendido) acuse o autor do crime”.[2]

MOREIRA, por sua vez, ensina que:

O inquérito policial é um procedimento preliminar, extrajudicial e preparatório para a ação penal, sendo por isso considerado como a primeira fase da persecutio criminis (que se completa com a fase em juízo). É instaurado pela polícia judiciária e tem como finalidade a apuração de infração penal e de sua respectiva autoria”.[3]

Como se pôde observar, a maioria da doutrina se limita ao estudo do inquérito policial como se este procedimento fosse sinônimo de investigação criminal, quando, na verdade, trata-se apenas de um dos instrumentos utilizados para formalizar a apuração de infrações penais do Brasil. De todo modo, pode-se concluir que as finalidades indicadas para o inquérito também se aplicam ao gênero investigação criminal.


Função Preservadora

Se, por um lado, a investigação preliminar tem por finalidade viabilizar o exercício de uma pretensão acusatória, por outro, ela deve funcionar como um obstáculo a ser superado antes do início do processo. É certo que a persecução penal como um todo, mas, sobretudo, a fase processual, acarretam inúmeras repercussões, seja para o Estado ou para o imputado.

Sob o prisma do Estado, a instauração de um processo resulta em inúmeros gastos, afinal, além da parte burocrática que envolve a manutenção de sistemas e toda infraestrutura (computadores, papeis, impressoras etc.), os próprios agentes públicos ficam empenhados nos mais diversos casos penais, o que, a toda evidência, afeta o Sistema de Justiça Criminal.

Já sob o ponto de vista do imputado, é inegável as consequências extremamente deletérias vinculadas ao processo. Além de arcar com as custas de sua defesa, circunstância de caráter tangível, existe outro fator de caráter intangível e que reputamos ainda mais grave, qual seja, o rótulo recebido pela pessoa a partir do momento em que se transforma em réu no processo penal.

Em Criminologia, fala-se na “teoria do etiquetamente” (labeling approach), numa perspectiva em que o acusado acaba sendo estigmatizado pela sociedade como uma pessoa criminosa, deixando-se absolutamente de lado o princípio constitucional da presunção de inocência. Na Espanha existe uma expressão que ilustra bem esse cenário: la pena de banquillo, no sentido de que o simples fato de uma pessoa se sentar no banco dos réus, já representa uma pena.

Justamente por isso, torna-se imprescindível uma investigação preliminar ao processo que funcione como um filtro contra imputações infundadas, preservando o investigado e a própria “máquina” do Judiciário, que não será movida de forma desnecessária.

Nesse diapasão se manifestam LOPES JR. e GLOECKNER:

A investigação preliminar não só deve excluir as provas inúteis, filtrando e deixando em evidência aqueles elementos de convicção que interessem ao julgamento da causa e cuja produção as partes devem solicitar no processo, como também devem servir de filtro processual, evitando que as acusações infundadas prosperem. (...) A investigação preliminar está destinada a fornecer elementos de convicção que permitam justificar o processo ou o não processo.[4]

De fato, a função investigativa formalizada, em regra, pelas Polícias Judiciárias, está longe de se resumir a um suporte da acusação, não possuindo caráter unidirecional. A finalidade do procedimento preliminar não deve ser vislumbrada sob a ótica exclusiva da preparação do processo penal, mas principalmente à luz de uma barreira contra acusações infundadas e temerárias, além de um mecanismo de salvaguarda da sociedade, assegurando a paz e a tranquilidade social. Não é outro o escólio de SAYEG ao falar sobre um dos procedimentos de investigação:

A ideia de que o inquérito policial somente tem por objetivo a preparação de uma ação penal é equivocada e distorcida. Em uma República Democrática preza-se pela utilização da Justiça Criminal somente como ultima ratio, caso haja o mínimo de elementos de provas indiciárias de que o investigado tenha praticado o delito em determinado lugar e em determinado momento.[5]

Com o objetivo de subsidiar as conclusões aqui expostas, vale transcrever as incisivas palavras utilizadas pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, ao apreciar o projeto que culminou na Lei 12.830/13, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia:

Assim, o inquérito policial, ainda que visto como procedimento administrativo pré-processual, é um instrumento prévio e de triagem contra acusações levianas e precipitadas, uma verdadeira garantia do cidadão e da sociedade, tendo dentro dele uma significativa parcela de procedimento jurídico, vez que poderá ensejar prisão e outras providências cautelares que afetam os direitos individuais. Um inquérito policial bem elaborado presta-se tanto à justa causa para a subsequente ação penal, quanto à absolvição do inocente (grifamos).

É com base nas conclusões acima expostas que se pode afirmar que não existe vínculo entre a investigação criminal e o exercício da ação penal. A uma porque estamos diante de fases distintas da persecução penal, com características e objetivos igualmente distintos. A duas porque, como visto, a investigação preliminar não se destina exclusivamente ao titular da ação penal, devendo desenvolver-se de maneira imparcial e objetiva, visando o escorreito esclarecimento da notícia crime, viabilizando a produção de provas que possam incriminar o investigado ou, por vezes, inocentá-lo, evitando-se, consequentemente, os ônus do processo.


Função de Descoberta do Fato Oculto (Redução das “Cifras Negras”)

É cediço que diversos fatores concorrem para a prática de infrações penais, razão pela qual a segurança pública é uma matéria multidisciplinar. Dentro dessa perspectiva, ganha destaque a Criminologia como uma ciência voltada ao estudo do fenômeno criminal e suas causas. Segundo estudiosos da área, por meio de estatísticas é possível identificar um liame causal entre os fatores de criminalidade e os ilícitos perpetrados.

Ocorre que tais estatísticas devem ser analisadas com reservas, uma vez que inúmeros crimes nem sequer chegam ao conhecimento do Estado (especialmente nos crimes vagos, vale dizer, aqueles em que o sujeito passivo é uma coletividade sem personalidade jurídica), havendo, destarte, um enorme vácuo entre a criminalidade real e a criminalidade revelada, o que dá ensejo a chamada cifra negra.

Ao discorrer sobre o tema, SUMARIVA explica o seguinte:

A primeira é a quantidade efetiva de crimes praticados pelos criminosos, a segunda é o percentual dos crimes que chegam ao conhecimento do Estado e a terceira representa a porcentagem dos delitos que não foram comunicados ou elucidados. Estamos diante de um processo de atrição, que consiste no distanciamento progressivo entre as cifras nominais e as cifras negras da criminalidade, em que o subproduto é a constatação da diferença entre a criminalidade real e a apurada em estatísticas oficiais.[6]

Nas lições de Muñoz Conde[7] sobre a cifra negra, nem todo delito cometido é tipificado; nem todo delito tipificado é registrado; nem todo delito registrado é investigado pela polícia; nem todo delito investigado é denunciado; a denúncia nem sempre termina em julgamento; e o julgamento nem sempre termina em condenação.

De fato, é impossível discordar das lições do renomado penalista, sendo certo que em países subdesenvolvidos esse cenário torna-se ainda mais evidente, seja em virtude das circunstâncias sociais de uma região ou pela falta de estrutura do Estado.

É evidente que o índice de criminalidade oculta (cifra negra) também é influenciado pela própria essência das condutas criminosas, praticadas, de um modo geral, de forma dissimulada ou mascarada, visando assegurar, num primeiro momento, a concretização do ímpeto criminoso e, num segundo momento, a irresponsabilidade penal do agente.

Considerando que a notitia criminis é o objeto da investigação criminal, pode-se concluir que o caráter oculto do crime reflete no aumento das cifras negras, haja vista que, por vezes, inviabiliza o início da persecução penal, o que compromete a própria eficiência da justiça.

Tal conclusão ganha relevância ainda maior devido ao fato de que as investigações criminais, em regra, não funcionam pelo sistema self-starter, ou seja, dependem de provocação. Isso significa que na maioria absoluta dos casos o início da persecução penal depende da vítima, que, nesse cenário, constitui a principal fonte de notícia crime.

De maneira ilustrativa, FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE calculam que nos EUA e na Alemanha, cerca de 85% a 95% das investigações têm seu início vinculado à provocação de particulares.[8] Ocorre que, por inúmeros fatores, cada vez mais as vítimas de crimes deixam de comunicá-los aos órgãos oficiais, contribuindo, assim, para o aumento das cifras negras e, consequentemente, da impunidade. Pode-se destacar os seguintes fatores:

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a-) Revitimização: trata-se de um processo emocional que faz com que a vítima de um crime se sinta novamente lesada, seja em decorrência das relações com outras pessoas ou instituições públicas (heterovitimização) ou pelo seu próprio sentimento de culpa (autovitimização secundária).

No Brasil, por exemplo, a falência imposta pelos nossos governantes às Polícias Judiciárias, com atribuição investigativa, faz com que a vítima de um crime perca horas em uma Delegacia de Polícia apenas para noticiar um delito por meio de boletim de ocorrência. Se não bastasse, essa mesma vítima terá que retornar posteriormente à Delegacia para ser ouvida ou participar de outros procedimentos policiais (ex: reconhecimento pessoal), sendo todo esse expediente repetido na fase processual.

Do mesmo modo, a vítima também terá que conviver com a repercussão social causada pelo crime, o que muitas vezes causa incômodo, humilhação e provoca uma constante lembrança do trauma vivenciado, sobretudo em crimes sexuais. Por todas essas razões, a vítima, não raro, prefere não noticiar a ocorrência da infração.

b-) Falta de confiança no sistema de justiça: a conhecida ineficiência do sistema de justiça criminal em alguns países contribui diretamente para o aumento da cifra negra, uma vez que as vítimas, como principais fontes de notícia crime, não acreditam que terão uma resposta positiva das agências estatais, seja pela falta de estrutura (que implica na morosidade e na ineficiência da persecução penal) ou até mesmo pela suspeita de corrupção de seus agentes.

c-) Medo de represálias: como efeito natural da falta de confiança no Estado em dar proteção aos seus cidadãos, as vítimas acabam suportando ações criminosas por receio de serem novamente atingidas pelos mesmos criminosos. Isso é muito comum em crimes de roubo, tentativa de homicídio e nos casos de violência doméstica e familiar, onde as vítimas têm medo das represálias de seus algozes.

d-) Tolerância ao crime: devido aos fatores acima expostos, existe uma capacidade da sociedade em absorver determinadas modalidades de crimes. Algumas vítimas de estupro, por exemplo, preferem absorver o crime a reviver o trauma sofrido inúmeras vezes durante a persecução penal e ainda ficarem expostas perante à sociedade. Já algumas vítimas de furto, por não acreditarem na eficácia da justiça, acabam absorvendo a lesão sofrida em seu patrimônio. O mesmo ocorre com os crimes de roubo, estelionato, apropriação indébita etc.

Feitas essas observações, destaque-se que todos esses fatores acabam fomentando a violência privada, onde o cidadão vítima de um crime e, por vezes, até agentes públicos, procuram fazer justiça com suas próprias mãos, desestruturando a lógica de um Estado Democrático de Direito. Daí a importância de se desenvolver uma estrutura investigativa eficiente que não fique tão refém da provocação da vítima.

Não é outra a conclusão de LOPES JR. e GLOECKNER:

Diante dessa realidade, o Estado deve dispor de instrumentos eficazes para descobrir o fato e não permitir que se elevem os índices de criminal case mortality, que geram descrédito dos sistemas formais de controle e uma insegurança social. Nesse tema, a investigação preliminar desempenha um papel relevantíssimo, e sua eficácia está não só no resultado final, senão também nas formas de starter.[9]

Percebe-se, pelo todo exposto, que a função da investigação criminal de buscar o fato oculto ganha relevância ainda maior nos chamados crimes vagos, justamente porque em tais hipóteses não há uma vítima definida, o que, a toda evidência, compromete o início das apurações.

São exemplos de crimes dessa espécie o tráfico de drogas, os previstos no Estatuto do Desarmamento, crimes ambientais etc. Imaginem, caro leitor, quantas pessoas mantém a posse ilegal de armas de fogo atualmente no Brasil, colocando em risco a segurança pública. Já seara ambiental, são inúmeros os crimes praticados sem qualquer conhecimento por parte do Estado.

Assim, é preciso que as agências estatais de investigação criminal sejam estruturadas com o objetivo de desvendar o fato oculto, inviabilizando, não raro, a própria consumação do crime, atuando de forma preventiva e, ao mesmo tempo, diminuindo o índice de criminalidade desconhecida.

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Sobre o autor
Francisco Sannini Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini Neto. Funcionalismo da investigação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5864, 22 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75452. Acesso em: 23 dez. 2024.

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