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Funcionalismo da investigação criminal

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22/07/2019 às 14:20
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Função Simbólica

A pena é uma consequência jurídica imposta aos autores de crimes justamente em virtude de uma violação às expectativas da sociedade intrínsecas nas leis penais. Ora, se a lei constitui a expressão da vontade geral, ao praticar um crime o agente está claramente confrontando a sociedade em que está inserido, razão pela qual, lhe deve ser imposta uma pena, inclusive para reforçar a observância às normas legais.

BITENCOURT, explicando o pensamento de HEGEL sobre a pena, nos ensina o seguinte:

A tese de Hegel resume-se em sua conhecida frase: “a pena é a negação da negação do Direito”. A fundamentação hegeliana da pena é – ao contrário da kantiana – essencialmente jurídica, na medida em que para Hegel a pena encontra justificação na necessidade de restabelecer a vigência da “vontade geral”, simbolizada na ordem jurídica e que foi negada pela vontade do delinquente.[10]

Percebe-se, pois, que a pena possui uma função simbólica que serve de desestímulo à prática de infrações penais, fomentando, insistimos, o respeito ao ordenamento jurídico. É inegável, nesse contexto, a finalidade preventiva da pena, seja no seu aspecto negativo (dissuadindo possíveis delinquentes), seja no seu aspecto positivo (reforçando a fidelidade dos cidadãos à ordem social a que pertencem).

Com efeito, tendo em vista que a investigação criminal viabiliza a concretização da justiça através da imposição de uma pena aos autores de crimes, podemos concluir que, tal qual a própria pena, a investigação também possui uma função simbólica, mitigando a sensação de insegurança e de impunidade, na medida em que o Estado, por meio de suas agências, está atuando prontamente na apuração dos fatos.

É evidente que a prática de uma infração penal repercute negativamente na sociedade, abalando a paz e trazendo intranquilidade, afinal, a “vontade geral” foi violada. Ocorre que com a imediata ação estatal na apuração do delito, é transmitida uma mensagem a todos no sentido de que o seu responsável será punido.

Conforme nos ensinam LOPES JR. e GLOECKNER:

A investigação preliminar também atende a uma função simbólica, poderíamos dizer até de natureza sociológica, ao contribuir para restabelecer a tranquilidade social abalada pelo crime. Significa que, numa dimensão simbólica, contribui para amenizar o mal-estar causado pelo crime, através da sensação de que os órgãos estatais aturarão, evitando a impunidade. Essa garantia de que não haverá impunidade manifesta-se também através da imediata atividade persecutória estatal, que não se confunde com a necessidade de uma cautelar pessoal (prisão processual).[11]

Note-se que tais premissas deixam clara a importância da investigação criminal na redução das estatísticas criminais. Infelizmente nossos legisladores e governantes jamais se atentaram para uma lição básica de BECCARIA na sua estupenda obra Do delito e das penas onde o autor defende a ideia de que mais importante do que a severidade do castigo é a certeza do castigo.

Diante do aumento da criminalidade o Poder Legislativo, quase instantaneamente, se socorre do Direito Penal como solução para todos os problemas. Como consequência, são criados novos crimes, aumenta-se a pena de outros tantos e novos delitos são elevados à condição de hediondos.

Fato é que o rigor da reprimenda penal nada significa se o delinquente, ao atuar, tem a convicção de que sairá impune. É justamente esse sentimento de impunidade que estimula, entre outros fatores, a prática de infrações penais. Daí a importância de se investir na investigação criminal, instrumento vocacionado ao esclarecimento do crime e que assegura a futura aplicação de uma pena. Afinal, conforme já destacado, é a certeza do castigo que serve de desestímulo ao criminoso e não a sua severidade.

Consigne-se, ademais, que esta função simbólica da investigação criminal atinge seu apogeu nos casos em que viabiliza a prisão em flagrante de um criminoso. Isto, pois, em tais situações a resposta do Estado ao crime é imediata, servindo, não raro, para evitar a própria violação da norma, ou seja, a consumação do delito.

Não por acaso, sustentamos a ideia de que a prisão em flagrante tem a função de atuar como um instrumento constitucional de imediata proteção aos direitos fundamentais, proteção esta que é veiculada por meio de uma norma penal incriminadora que estaria sendo violada ou que acabara de ser.

Nesse diapasão, aliás, é o escólio de Marcelo Cardozo da Silva:

(...) a prisão em flagrante desempenha a necessária função de atualização das funções preventivas das normas penais incriminadoras. Não fosse a prisão em flagrante, perder-se-ia um poderoso instrumento constitucional de defesa contra comportamentos atuais ofensivos a direitos fundamentais/bens coletivos constitucionais. Mais do que qualquer função probatória, realiza um estratégico mister de impedir, pela atualização que traz a toda e qualquer norma incriminadora, comportamentos que as violem: traz, excepcionalmente, a proteção da norma penal, do distante momento do cumprimento da pena, para o momento atual da violação.[12]

Resta evidente, portanto, que a investigação criminal mostra sua máxima eficiência nas hipóteses em que viabiliza a prisão em flagrante de criminosos. Como consequência natural dessa pronta resposta ao delito (função simbólica), ocorre a dissuasão de possíveis delinquentes diante da eficácia demonstrada pelo Estado em assegurar a responsabilização penal daqueles que ousarem violar as leis.


Função Restaurativa ou Satisfativa

Ao lado das funções já indicadas pela doutrina que se debruça no estudo comprometido da investigação criminal, ousamos destacar nesse trabalho uma outra função extremamente relevante: a restaurativa; no sentido de restaurar, vale dizer, reconstruir, recuperar as condições existentes antes da prática do crime, seja sob o prisma do autor ou da vítima. 

Infelizmente, os órgãos de persecução penal, sobretudo os ligados à investigação criminal, vêm se contentando em garantir a responsabilização penal de autores de fatos criminosos, quando, na maioria das vezes, essa atividade em quase nada abala uma estrutura organizada que vive de ilícitos penais.

Nesse contexto, engana-se quem pensa que uma persecução penal exitosa é aquela em que os criminosos são presos, pois, dentro de uma sociedade delinquente, não basta assegurar a imposição da pena como efeito jurídico do crime, sendo imprescindível a desarticulação de toda estrutura desenvolvida a partir da prática de infrações penais.

Para tanto, é possível encontrar em nosso ordenamento jurídico diversas ferramentas aptas a mitigar as consequências do crime, evitando, destarte, o locupletamento do criminoso e a reiteração de condutas delituosas. Isto, pois, de nada adianta a prisão do autor de um delito se a estrutura criminosa estabelecida continuar funcionando. Note-se que tais ferramentas servem, inclusive, ao caráter simbólico da investigação criminal, uma vez que desestimulam atos ilícitos.

Nos crimes patrimoniais, por exemplo, sob o ponto de vista da vítima, mais importante do que a responsabilização do criminoso é a recuperação do produto da infração. Assim, não cabe à Polícia Judiciária focar sua atenção apenas na reunião de indícios de autoria e materialidade delituosa, sendo dever da investigação a localização dos objetos roubados, furtados, apropriados ilicitamente etc.

Com esse viés a investigação criminal, além de preparar a ação penal, evitar acusações infundadas, identificar o fato oculto e, consequentemente, desestimular a prática de novas infrações penais, também dará uma satisfação à vítima, vulnerada na sua esfera patrimonial. Da mesma forma, evita-se o locupletamento do criminoso, o que, por óbvio, também atingirá eventual estrutura criada a partir do crime.

Nesse cenário, são valiosas as chamadas medidas assecuratórias, tidas como “as providências de natureza cautelar levadas a efeito no juízo penal que buscam resguardar o provável direito da vítima ao ressarcimento do prejuízo causado pela infração penal”.[13]

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Em linhas gerais, pode-se destacar alguns motivos pelos quais as medidas assecuratórias são eficientes no combate ao crime organizado[14]: a-) o confisco dos bens e valores promove a asfixia econômica de certos crimes; b-) tendo em vista a fungibilidade entre os integrantes de uma organização criminosa, a neutralização de bens e valores desestabiliza a estrutura criada; c-) evita-se a possibilidade de uso do produto ou proveito da infração após eventual cumprimento de pena; d-) inviabiliza o locupletamento de familiares ou outros membros da organização.

Apenas para ilustrar, a busca e apreensão tem o papel de resguardar o próprio produto do crime. Ao localizar um veículo furtado, por exemplo, a Polícia Judiciária deverá promover sua apreensão e restituição à vítima, que, assim, terá seu prejuízo mitigado.

Já o sequestro, regulado a partir do artigo 125, do CPP, tem a finalidade de acautelar os bens adquiridos através da prática de crimes. Em outras palavras, essa medida cautelar de natureza patrimonial poderá recair sobre bens móveis ou imóveis de origem ilícita que constituem verdadeiro provento da infração (v.g. veículo adquirido com dinheiro proveniente do tráfico de drogas).

Outra ferramenta que passa despercebida por vários operadores do Direito, encontra previsão legal no artigo 91, §§1º e 2º, do Código Penal, acrescentados pela Lei 12.694/12. Com essa inovação legislativa houve uma significativa ampliação no poder de confisco do Estado, pois não apenas os produtos ou proveitos do crime podem ser confiscados, mas também “os bens e valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem no exterior”. Já o §2º, do mesmo dispositivo, viabiliza a adoção das medidas assecuratórias para abranger esses mesmos bens e valores pertencentes ao investigado para posterior decretação de perda.

Como se vê, trata-se, sem dúvida nenhuma, de importante instrumento restaurativo, cuja adoção certamente irá mitigar os prejuízos causados pelo crime e ainda evitar o locupletamento dos criminosos e seus familiares, sufocando, outrossim, a estrutura econômica de uma organização voltada à prática de ilícitos.

Outra ferramenta apta a contribuir com o caráter restaurativo da investigação criminal é a Lei 9.613/98, que tipificou o crime de Lavagem de Capitais (Money Laudering). Rodolfo Tigre Maia define a lavagem de dinheiro “como o conjunto complexo de operações, integrado pelas etapas de conversão (placement), dissimulação (layering) e integração (integration) de bens, direitos e valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de atos ilícitos penais, mascarando esta origem para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da Justiça.[15] 

Dentro dessa perspectiva, cabe ao Estado, por meio da investigação, identificar os bens, direitos e valores provenientes de infrações penais e submetidos a esse processo de ocultação ou dissimulação. A criminalização da Lavagem de Dinheiro, portanto, colabora com a função restaurativa do inquérito policial, pois além de viabilizar a responsabilização penal do autor da “lavagem”, dificulta que ele se locuplete do crime, sufocando, assim, suas atividades ilícitas[16].

Em consonância com o ponto de vista aqui defendido, o artigo 4º, §3º, da Lei 9.613/98, estabelece que “O juiz determinará a liberação total ou parcial dos bens, direitos e valores quando comprovada a licitude de sua origem, mantendo-se a constrição dos bens, direitos e valores necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração pena” (grifamos). Na mesma linha, o §4º, do mesmo dispositivo legal autoriza a decretação de medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores de origem lícita pertencentes ao investigado, no intuito de assegurar a reparação do dano decorrente da infração penal antecedente.[17]

Já na Lei 12.850/13, que dispõe sobre as Organizações Criminosas, nós encontramos uma ferramenta que tem o objetivo exclusivo de recuperar o produto ou o proveito dos crimes praticados pela criminalidade organizada. Trata-se da colaboração para a recuperação de ativos, prevista no artigo 4º, inciso IV, da Lei. Por meio dessa técnica especial de investigação será possível desestruturar a organização e ao mesmo tempo mitigar as consequências dos crimes praticados. Nesse ponto, aliás, vale o alerta de Renato Brasileiro no sentido de que:

(...) um dos meios mais eficientes para a repressão de certos delitos passa pela recuperação de ativos ilícitos, sendo imperiosa a criação de uma nova cultura, uma nova mentalidade, que, sem deixar de lado as penas privativas de liberdade, passe a dar maior importância às medidas cautelares de natureza patrimonial e ao confisco dos valores espúrios.[18]

Frente ao exposto, parece-nos inegável esse caráter restaurativo da investigação criminal, que não pode mais se limitar em reunir elementos que possibilitem a responsabilização penal do autor do crime, devendo cumprir um papel muito maior no intuito de mitigar os danos causados pela infração e, sobretudo, desarticular a estrutura criada com base na prática de atos ilícitos.

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Sobre o autor
Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini. Funcionalismo da investigação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5864, 22 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75452. Acesso em: 19 abr. 2024.

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