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Absolvição por não existir prova suficiente para a condenação do servidor público e a sua ampla repercussão no processo administrativo disciplinar.

Inconstitucionalidade do art. 386, VI, do Código de Processo Penal e de parte do art. 126 da Lei nº 8.112/90

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21/11/2005 às 00:00
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V. – DA BUSCA DA VERDADE E DA CERTEZA – DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEGURANÇA JURÍDICA

Objetivam a instância penal e a administrativa apurar a verdade, para, em nome da segurança jurídica, aplicar a melhor tipificação legal a espécie colocada sob investigação.

Esse equilíbrio do poder pelo direito é o traço marcante da evolução dos tempos, que não admite mais a insegurança jurídica como uma forma de opressão ou de regência de vida dos cidadãos.

A sociedade se rebelou contra o Estado Absolutista há muitos séculos, retirando da bainha o governo da espada, para dar lugar ao governo da Lei.

Aliás, o professor da Universidade de Erlangen-Nürnberg, Reinhold Zippelius, com muita autoridade, já dizia: "Nas origens do moderno Estado Constitucional e de Direito está também o postulado de uma limitação dos poderes através de um equilíbrio dos poderes. Esta exigência tornou-se efectiva na Inglaterra no contexto da Revolução Gloriosa (1688), impondo-se depois progressivamente também no Continente e sobretudo na elaboração da Constituição norte-americana. De uma forma menos espetacular ocorreu a divulgação do princípio de acção do Estado deve realizar-se, por princípio, de acordo com leis universais [...] A exigência de a acção do Estado se realizar de acordo com leis universais, surge com um preceito da razão, da igualdade de tratamento, da democracia e da segurança jurídica: de acordo com a filosofia moral de Kant, a universidade de uma norma de conduta era o critério da sua justiça". [73]

Assim, em tempos atuais, visa o direito sancionador do Estado buscar a verdade de um determinado fato, tido em tese como ilícito, para após todo o esgotamento do devido processo legal, com ampla chance de defesa do Denunciado, posicionar-se com segurança jurídica para toda a sociedade. Essa segurança jurídica é resultado do conjunto probatório, fundamentado em provas lícitas colhido no decorrer da instrução criminal, sem contaminação da "árvore envenenada", onde, de acordo com a materialidade do fato, a Administração Pública traça o devido caminho legal.

Não se deve punir o inocente, pois só a certeza, construída por fatos e provas robustas, é que é capaz de afastar a presunção de inocência do servidor público.

Desde a época de Immanuel Kant que os filósofos construíram os fundamentos da justiça penal, como o princípio da igualdade no pagar o mal com o mal (Wiedervergeltungsrecht, Jus talions). Sabemos que tal princípio é problemático, sob o ponto de vista do ideal supremo da Justiça, que não se resolve somente pela demonstração da origem histórica da pena e nem pela natureza formal, ou seja, o delito deve ser reprimido não pela violência do ato e sim pela pertinência lógica da justiça.

Qualquer ação, tida em tese, como delituosa, não deve ser presumida ou intuída, tem que ser provada, segundo a regra de Direito Penal.

O julgador, tanto o administrativo como o penal, busca na certeza a segurança jurídica.

Somente a verificação da verdade, exteriorizada pela prova, é que possui o escopo de impor a certeza do cometimento ou não de um delito. A presunção funciona em sentido contrário a da certeza.

No campo sancionatório, visam o processo administrativo disciplinar e o penal buscar o mesmo ideal de justiça, pois apesar de independentes, as instâncias possuem o compromisso da busca da verdade, através da certeza se houve ou não uma infração prevista como crime pelo ordenamento legal.

Consignada a importância da prova na busca de uma evidência de liquidez e certeza sobre determinado direito material, no campo das sanções, mesmo as instâncias penais e administrativas sendo independentes, elas possuem o compromisso recíproco de buscarem, na verdade real, o elucidamento dos fatos colocados sob suas jurisdições. Se os fatos forem os mesmos, com desdobramentos criminais, não resta dúvida que dada a competência da instância penal ela radiará efeitos sobre a instância administrativa, que não segue o mesmo rigor técnico que a outra. Ou seja, na apuração disciplinar, a instância administrativa não possui autonomia para imortalizar suas decisões com o manto da coisa julgada. Pelo nosso sistema jurídico somente a instância judicial é que tem em suas decisões finais a garantia da coisa julgada, como forma de estabilizar as relações intersubjetivas, trazendo segurança jurídica para toda a sociedade e para o servidor público.

Para conhecer e julgar uma ação humana é preciso que se possibilite ao acusado toda a garantia que lhe é dada quando ele está sob a jurisdição da instância penal, onde a verdade dos fatos é exteriorizada pelos elementos de convicção (provas). Na instância Administrativa, em muitas ocasiões o acusado tem que litigar, em primeiro lugar, com o próprio sistema inquisitório de uma Comissão Disciplinar, não muito preocupada com a busca da verdade real, pois quase sempre vem com um roteiro já rascunhado. Nessa condição, o servidor tem que provar que é inocente, invertendo-se, de forma inconstitucional, a presunção de inocência. Portanto, necessária se faz a certeza absoluta da soberania da instância judicial sobre a administrativa, ainda mais quando se trata do Direito Penal.

A instância Administrativa visa punir, para que os fatos averiguados não se repitam. Já a instância penal, tem como um dos objetivos apurar e provar não só a intenção do agente público, como e sobretudo, afastar a presunção de inocência através de provas lícitas e robustas, objetivando tutelar os interesses do Estado.

Não foi em vão que Giorgio Del Vecchio ensinava: "Para conhecer uma ação humana, é preciso considerar-lhe não só o aspecto externo e o efeito físico, mas também o elemento psíquico ou interno: a vontade e a intenção". [74]

Este aspecto externo do ato humano, conjugado com o psíquico (vontade e intenção) que Del Vecchio informa, somente será aferível em um sistema de produção contundente de provas, verificadas no sistema judiciário, onde o procedimento se desenvolve com rigorismo, técnicas e formalidades estabelecidas, em nome da segurança jurídica, para apurar a verdade dos fatos e punir o verdadeiro culpado. Havendo ausência de provas configura-se a autêntica negativa de autoria de um ilícito penal, pois o que não é legalmente provado é considerado como incorrido.

Na esfera Administrativa, nem sempre os responsáveis pela apuração dos fatos (Comissão Disciplinar) são Bacharéis em Direito, não estando presente no acompanhamento do procedimento o representante do Ministério Público como Órgão acusador e fiscal da lei. O erro no julgamento administrativo é possível e na maioria das vezes viável e certeiro, sendo que o próprio Poder Judiciário vem anulando inúmeras decisões proferidas pelo Administrador Público, com base em apurações sumárias ou com flagrante cerceamento de defesa e violações de demais princípios constitucionais e garantias fundamentais. Por não serem técnicos e não seguirem o rigorismo formal de um procedimento, existe grande diferença, no aspecto qualitativo, de uma instância para outra. Razão pela qual, todos os atos administrativos são passíveis de revisão judicial, não ocorrendo o mesmo quando se invertem os fatores, tendo em vista que a instância administrativa é obrigada a acatar as determinações da instância judicial.

Sobrepondo-se a esfera judicial sobre a administrativa, não resta dúvida que suas decisões também se projetam na esfera administrativa, em todos os sentidos, sem limitações ou divergências, quando os fatos apurados são os mesmos.

Assim, sob este dogma, a segurança jurídica exige que sobre os mesmos fatos apurados, a instância Administrativa se curve à Judicial, em homenagem ao direito e à justiça.

Essa decantada homenagem ao ideal de Justiça tão sonhado por Alexis de Tocqueville se exterioriza na certeza, elemento indispensável na aplicação das sanções. Sendo certo, que essa certeza é demonstrada pelas provas, fiel companheira da segurança jurídica.

Quando se verifica o comportamento funcional do servidor público, está em jogo um dos elementos mais preciosos do sistema, que é colocar de lado a arbitrariedade da apuração dos fatos investigados para dar lugar ao Direito, com a ampla possibilidade do investigado demonstrar que não cometeu um ato tido como ilícito pelo ordenamento jurídico. Ou melhor, no campo sancionatório, compete ao Estado, em sentido lato, demonstrar que o servidor público descumpriu um dever funcional ao qual estava vinculado. Esta demonstração se faz através das provas lícitas, única maneira de dar suporte a uma condenação. Se elas inexistem, como manter a possibilidade e viabilidade de uma acusação?

Não pode haver a imposição de uma sanção se não for demonstrada, por provas sólidas e robustas, a responsabilidade do servidor público investigado/acusado.

Advirta-se, quando se fala de arbitrariedade em face do Direito se entende que é algo negatório a este, contrapondo radicalmente, consoante lição de Luís Recaséns Siches: "...cuando se habla de arbitrariedad frente al Derecho, se entiende que es algo negatorio de éste, algo que se le contrapone radicalmente. Pero adviérta-se también que la calificación arbitrario no se aplica a todos los actos que son contrarios al Derecho, sino solamente a aquellos que proceden de quien dispone del supremo poder social efectivo y que se entienden como antijurídicos; es decidir, a los actos antijurídicos dictados por los poderes públicos, con carácter inapelable." [75]

A livre declaração de um ilícito, feita por um Juiz de direito, não é construída com base na criação intelectual do subscritor da peça de acusação e sim, deve levar em conta o conjunto probatório com os fatos e argumentos desenvolvidos pelas partes, todos confrontados com a realidade processual: "El trabajo de juez, para juzgar, consiste, después de todo en una confrontación entre o modelo preparado por el legislador y el hecho ocurrido en la realidad, confrontación de la cual nace un sí o un no: existe o no existe un delito. El resultado de este trabajo se llama declaración de certeza del delito." [76]

À luz destes posicionamentos, se constata que quando os homens elaboraram o Direito, estavam certos que ele deveria estabelecer valores superiores, como a Justiça, resultado de uma segurança jurídica estabelecida para toda a sociedade, como um instrumento capaz de instituir a paz e o convívio pacífico entre os cidadãos.

Assim, somente a certeza absoluta do cometimento de um ilícito é que expressa a segurança da aplicação de uma sanção imposta pelo Estado, seja a mesma corporal, privativa de liberdade, restritiva de liberdade, pecuniária e restritiva de direitos, dependendo do caso concreto. E esta certeza vem extraída da prova sólida e robusta, única capaz de afastar dúvidas e criar convicções para o julgador. Em relação ao Direito Administrativo Disciplinar, quando a prova é insuficiente, precária ou inconclusiva, fica claro que não poderá a jurisdição Administrativa atribuir-lhe a validade que ela não ostenta. Sendo certo, que diante da insuficiência da prova, a acusação que paira sobre o servidor público/investigado não pode subsistir.

E Baruch Spinoza, citado por Luís Recaséns Siches, afirmou em seu Tratado teológico-político (op. cit. ant., p. 220-221), que: "La verdadera aspiración del Estado no es otra que la paz y la seguridad de la vida. Pos lo cual, el mejor Estado es aquél en el que los hombres viven armónicamente y cuyas leyes son respetadas."

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Não resta dúvida de que o convívio humano desperta disputas, onde o Direito é acionado para garantir a segurança de todos. E "la seguridad es el valor fundamental de lo jurídico...", [77] sendo certo, que "sin seguridad no hay derecho, ni bueno, ni malo, ni de ninguna clase." [78]

Assim sendo, para haver a certeza de um ilícito penal ou administrativo, deverão ambos estarem robustamente provados, pois somente esta certeza é que respalda a aplicação da sanção correspondente. Não se admite mais que em pleno século XXI se verifique a aplicação de sanções por "ouvir dizer" ou por "parecer que é assim", tendo em vista que o direito moderno e constitucionalizado se projeta na segurança jurídica. O passado foi capaz de praticar muitas injustiças, em nome indevidamente do Direito e da Justiça que os tempos atuais não toleram mais. Aqui, no campo da sanção, mesmo independentes, as instâncias possuem divisores que não são impenetráveis, tendo em vista que o Direito e a segurança jurídica são os caminhos necessários para o imbricamento das esferas, pois ao se depararem sobre o mesmo fato jurídico, devem conviver harmonicamente, com o objetivo de exteriorização da verdade, para punir o culpado e absolver o inocente. O "medo", por parte do Julgador, da absolvição às vezes traz a falta/inexistência de prova como fundamento na parte dispositiva da sentença. Nestes casos, como nos que afastam a existência do fato ou da autoria, o reflexo para a instância administrativa é imediato, conseqüência da segurança jurídica e da certeza de que não se pode punir (em qualquer esfera) aquele servidor contra o qual não se tem prova contundente do ato ilícito/infração disciplinar que porventura tenha praticado.

Não funciona este princípio para proteger o criminoso ou o servidor público suspeito, ímprobo e devasso, e sim para privilegiar o direito sancionatório que não poderá ser concretizado em caso de dúvida ou de incerteza. E não venham dizer os que não comungam da presente hóstia, que a independência das instâncias autoriza a condenação, na esfera Administrativa, do servidor absolvido por não existir prova suficiente para a condenação/por não existir prova de ter concorrido para a infração penal/falta de evidência (ou prova) da sua responsabilidade na instância penal. Tendo em vista, que a instância Penal é revestida de formalidades, garantias fundamentais e princípios constitucionais não observados de forma isenta na instância Administrativa. O valor da declaração de certeza consiste na necessidade de comprovação do delito. A natureza constitutiva de declaração de certeza do delito deriva da necessidade de punir o infrator e não o servidor público inocente. Somente existe o ilícito quando o juiz o declara, pois na falta ou ausência de prova suficiente, como subsistir uma demissão fulcrada em uma pena administrativa, onde o Poder Judiciário nega a existência de prova para a punição?

A nova fase do Direito Administrativo, constitucionalizado, já não permite mais aplicação de sanções baseadas em meros indícios, sem comprovação da autoria ou materialidade do ilícito através de robustas e sólidas provas.

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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Absolvição por não existir prova suficiente para a condenação do servidor público e a sua ampla repercussão no processo administrativo disciplinar.: Inconstitucionalidade do art. 386, VI, do Código de Processo Penal e de parte do art. 126 da Lei nº 8.112/90. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 871, 21 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7570. Acesso em: 19 abr. 2024.

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