4. A nova forma de observar o direito constitucional: da limitação ao poder constituinte originário para um repensar jusnaturalista
Duas são as escolas que buscam a raiz do entendimento jusnaturalisma, a Tomista, do pensamento de Santo Tomaz de Aquino, na qual afirma que:
devem-se distinguir quatro espécies de Lei: a Lei Eterna, a Lei Divina, a Lei Natural e a Lei Humana, ou positiva. A primeira é a própria Razão divina. A segunda compreende a parte da Lei Eterna revelada diretamente ao homem (p. ex., os dez mandamentos ditados a Moisés), como relatam os livros sagrados – a Bíblia (lei divina revelada), bem como outra parte, esta explicitada pela Igreja (lei divina eclesiástica). Mas, pela Razão, o homem descobre ditames divinos gravados em sua própria natureza: é a Lei Natural. Enfim, o governante pode editar normas, leis, que constituem a Lei Humana, ou positiva. Entretanto, a Lei Humana não pode jamais contrariar a Lei de Deus, seja a Lei Divina, seja a Lei Natural. Quando a Lei positiva contradiz a Lei de Deus, ela não é verdadeiramente Lei, é sem valor. Mas é claro que, nesta colocação, o direito positivo, o direito posto pelo poder público, só é válido quando se conforma à Lei Natural, à Lei Divina, que são exatamente as maneiras pelas quais o homem tem acesso à Lei Eterna (FILHO, 2014, pp. 76/77).
A segunda é a do Direito Natural das Gentes, com figura principal em Hugo Grócio, entendendo que “o direito natural não está na Lei de Deus, mas na razão humana e na inclinação social do homem. Foi esta escola de Grócio, aliás, que influiu diretamente na doutrina do Contrato social e, portanto, no pensamento iluminista que, no século XVIII, prevaleceu e se refletiu nas revoluções desse século.” (FILHO, loc. cit.)
Isto posto, partindo desse ideário, o jusnaturalismo cria uma fronteira para a criação do poder constituinte originário, sendo também a base de sua fundamentação, através do direito natural e suas substancializações. Esse direito natural advém de uma sistemática jurídica de ordem inerente ao próprio homem, da sua natureza e concepções. Por isso é que tal ordem limitativa, por possuir uma carga de axiológica de valor profunda, não pode ser suprimida ou mitigada em uma nova constituição.
Canotilho (2002, p. 81) relembra que a doutrina positivista encontra-se em vias de rejeição, já que:
desde logo se o poder constituinte se destina a criar uma constituição como organização e limitação do poder, não se vê como esta ‘vontade de constituição’ pode deixar de condicionar a própria vontade do criador. Por outro lado, este criador, este sujeito constituinte, este povo ou nação, é estruturado e obedece a padrões e modelos de condutas espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como ‘vontade do povo’”. Além disto, as experiências humanas vão revelando a indispensabilidade de observância de certos princípios de justiça que, independentemente da sua configuração (como princípios suprapositivos ou como princípios supralegais mas intra-jurídicos) são compreendidos como limites da liberdade e omnipotência do poder constituinte. Acresce que um sistema jurídico interno (nacional, estadual) não pode, hoje, estar out da comunidade internacional. Encontra-se vinculado a princípios de direito internacional (princípio da independência, princípio da autodeterminação, princípio da observância de direitos humanos).
Essa evolução de entendimento já existia, porém aflorou agora com a prospecção do neoconstitucionalismo e sua ideia basilar de ter a Constituição no topo do sistema, força normativa máxima da sua norma, lastreado na eficácia irradiante dos direitos fundamentais e sua aplicação em todos os campos (público ou privado), e é o que recorrente chama-se de mudanças de paradigmas:
esta ideia de vinculação jurídica conduz uma parte da doutrina mais recente a falar da “jurisdicização” e do carácter evolutivo do poder constituinte. Se continua a ser indiscutível que o exercício de um poder constituinte anda geralmente associado a momentos fractais ou de ruptura constitucional (revolução, autodeterminação de povos, quedas de regime, transições constitucionais), também é certo que o poder constituinte nunca surge num vácuo histórico-cultural. Trata-se, antes, de um poder que, de forma democraticamente regulada, procede às alterações incidentes sobre a estrutura jurídico-política básica de uma comunidade. De resto, as recentes transições constitucionais, que começaram em Portugal (1974) e terminaram na transformação dos estados ex-comunistas, parecem mesmo apontar para a ideia de que o poder constituinte, exercido segundo um procedimento justo e movido por intenções de conformação de uma ordem jurídico-política justamente ordenada, serve hoje como uma técnica experimentada de soluções de crises e rupturas políticas que em momentos extraordinários surgem no seio da comunidade. [...] A experiência demonstra também que não basta a legitimação através da fixação democrática de valores básicos; é necessário, igualmente que o “povo inteiro”beneficie de implementação desses valores básicos. Surge aqui a ideia de povo destinatario de prestações civilizacionais que traduz a relevância funcional do modo como os efeitos das decisões políticas se repercutem sobre o povo (CANOTILHO, 2002, pp. 81/82).
Tal guinada se deu primordialmente pelo abalo profundo em que os regimes totalitários imbuíram ao mundo ocidental na grande guerra. A sociedade traumatizada, percebeu que com a derrocada de tais regimes tirânicos era a hora certa de fazer reafirmar a importância da Constituição e de seus direitos fundamentais, para não desembocar nos erros cometidos anteriormente. Desta maneira, o que se pensa é que esta limitação é tão necessária, que ela vem do direito e vai para o povo, como uma maneira, ao menos civilizatória, de encampar o poder constituinte em um mínimo de respeito a direitos finalísticos de ampla necessidade social.
Por isso que se defende neste trabalho que o poder constituinte originário deve ser limitado pelas seguintes prospecções de normas naturais: a) normas de jus cogens, ante a sua força cogente num plano internacional; b) direitos humanos (em todas as suas gerações ou dimensões), no plano internacional; c) direitos fundamentais e suas garantias (inclusive os direitos programáticos ou sociais), no plano interno; d) separação, limitação e independência de poderes; e) postulados normativos ou metanormas, que segundo Roberto Ávila (2004, pp. 88/89) seriam normas de “segundo grau” que não impõem um fim ou um comportamento específico, mas estruturam o dever de realizá-lo. São descrições estruturantes da aplicação de outras normas cuja função é otimizar e efetivizar princípios e regras; f) dignidade da pessoa humana [tanto quanto atributo do ser humano enquanto valor superior, tanto quanto norma jurídica, enquanto princípio e regra (SARLET, 2015, p. 79)]; e g) por princípios ligados aos direitos fundamentais (MIRANDA, 2015) como o da universalidade, igualdade, proporcionalidade (que Ávila vislumbra como postulado normativo), proteção da confiança, eficácia jurídica dos direito fundamentais, tutela jurídica, responsabilidade civil do Estado, reserva da lei, princípio do caráter restritivo das restrições.
Portanto, é de se discordar daqueles que afirmem que o poder constituinte originário é aquele que tudo pode fazer ou que o jusnaturalismo “teria demonstrado, como sempre, sua incapacidade para responder, numa determinada situação histórica concreta, ao problema dos fundamentos de validez do direito” (BONAVIDES, 2017, p. 126).
Em tempos hodiernos, onde o senso crítico, de justiça e de humanidades estão aflorados em grande parcela dos operadores do direito, não seria imaginável aceitar que o poder constituinte originário, por exemplo, criasse uma nova Lei Maior instituindo o apartheid, a escravidão, a pena de morte, a amputação de membros por roubo, a discriminação de minorias, a não efetivação de direitos sociais, a liberdade de expressão, as políticas públicas, a liberdade religiosa, universitária, ou seja, atos injustos que firam a inerência humana e que violem direitos naturais.
5. Conclusões
É inequívoca a necessidade de perceber o quão relevante é a questão tratada nas estreitas linhas desta pesquisa e a monta da problemática da limitação do poder constituinte originário, no cenário jurídico atual, vindo a influenciar, inclusive, a teoria constitucional moderna.
Após a suplantação de ideias classicistas por excelência, do modo de pensar lógico-dedutivo, positivista (em sua forma mais pura) e sem dúvidas formalista, eis que faz surgir no pensamento do pós-guerra uma nova tendência constitucional, onde deixa de dar primazia apenas às bases tradicionais das filigranas interpretativas da lei e acrescem-se novos paradigmas, na intenção de sobrelevar as normas humanas basilares.
É importante assinalar que não se pode mais ter a noção de que nada é puramente absoluto no direito, inclusive o poder constituinte originário. Não se quer retirar ou dissociar a força e importância desse poder inicial, jamais. Mas levar a refletir que a sociedade humana chegou a um ponto onde os direitos humanos, os direitos sociais, as liberdades e a dignidade da pessoa são agora informadores do atuar estatal e, principalmente, limitadores dos atos sociais, como o é o de criar uma nova Constituição.
O jusnaturalismo, enquanto entendimento que parecia estar alheado, ressurgiu com as ideias neopositivistas, ratificando as bases teóricas e filosóficas da notabilidade de se interligar uma Constituição com a garantia, eficácia e total aplicabilidade de direitos e garantias fundamentais.
Por fim, deve-se ter como base o conceito de Constituição como um sistema aberto de regras e princípios, visto que se traduz em um esquema dinâmico de normas e com uma estrutura dialógica, ou seja, que se encontra apta através de sua normatividade em captar as constantes mudanças da realidade, abertas às concepções variáveis da justiça e verdade, (CANOTILHO, 2002, p. 1.159) mas com limites, é claro.
Esse entendimento nos faz refletir a Constituição como uma incessante procura, pois o texto normativo básico, desde o seu aparecimento, não está nunca finalizado, de maneira que o trato normativo positivado e a realidade devem perseguir uma completude de modo que se assevere uma supremacia e força normativa emanadas pela própria Carta Política e seus direitos e garantias fundamentais.
6. Referências bibliográficas
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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.
Nota
[1] ARTIGO 2O: A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a mino-rias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.