Capa da publicação Bloqueio de ativos, "extrapolação exacerbada" e abuso de autoridade
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Apontamentos sobre a indisponibilidade de ativos financeiros e a nova Lei de Abuso de Autoridade

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21/03/2025 às 09:07
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O artigo 36 da Lei nº 13.869/2019 criminaliza a indisponibilidade excessiva de ativos financeiros. Como definir "extrapolar exacerbadamente" sem ferir a segurança jurídica?

Resumo: O trabalho visa examinar aspectos relativos à aplicação do artigo 36 da Lei nº 13.869/2019 que sanciona, criminalmente, a indisponibilidade de ativos financeiros realizada com excesso. O trabalho aborda a indeterminabilidade da conduta passível de punição, bem como aspectos inerentes às condições necessárias para o enquadramento dos atos dos magistrados no novo tipo penal.

Palavras-chave: Indisponibilidade de bens. Ativos financeiros. Exacerbação. Crime. Lei nº 13.869/2019.


1. Da Indisponibilidade

A promulgação da Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019, denominada, por alguns, como de Lei do Abuso de Autoridade, tem causado preocupação entre os agentes públicos responsáveis pela persecução e julgamento de infrações penais, mas não só a estes. Dispositivos da mencionada norma também produzem reflexos para além da seara penal. Neste despretensioso texto, pretendemos examinar uma das condutas tipificadas que, em abstrato, pode ocorrer em todas as modalidades do processo judicial.

O dispositivo a que nos referimos é o artigo 36, in verbis:

Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Uma parcela do elemento objetivo do tipo consiste em decretar - determinar – a indisponibilidade de um gênero de bens: ativos financeiros. Isto é, recursos que, em geral, são mantidos e circulam por instituições financeiras.

Nos termos do Código de Processo Civil, o dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira, é o bem cuja constrição é preferencial (art. 835, § 1º), precedendo aos demais. Dita preferência se dá em virtude de esta ser a modalidade de bem que, com menor custo, permite a mais eficiente efetivação da prestação devida ao credor1, simplificando a realização dos atos de expropriação, eis que esta se dará com a mera entrega dos recursos financeiros ao credor/exequente (pagamento)2.

Por seu turno, a indisponibilidade consiste na impossibilidade de um bem vir a ser objeto de alienação ou oneração por seu titular. A prática dos referidos atos, após a decretação da indisponibilidade, implica na ineficácia dos mesmos perante o autor/exequente da ação em que a medida judicial foi deferida (art. 792, § 1 do CPC). A indisponibilidade não se confunde com a expropriação, uma vez que naquela apenas uma das faculdades inerentes à propriedade fica obstada, a disposição. A expropriação torna nenhum o direito de propriedade e, por conseguinte, todas as faculdades ao mesmo inerentes.

A indisponibilidade de bens é uma medida que tem por finalidade viabilizar futura expropriação ou restituição, podendo consistir em ato de natureza cautelar ou executivo, como adiante se verá.

A Carta Magna faz alusão à indisponibilidade de bens no contexto da improbidade administrativa (art. 37, § 4º), porém o referido instituto, como é cediço, não se exaure na referida hipótese, podendo ser determinada no contexto de ações penais, ações civis públicas, no cumprimento de sentença, nas execuções em geral etc.

Como a indisponibilidade de ativos financeiros implica em torná-los impassíveis de transferência de titularidade, a efetivação de tal medida concorre para que os respectivos valores sejam objeto de depósito judicial, vinculado ao juízo e ao processo em que a medida foi determinada.

Não é inusual supor que a indisponibilidade de ativos financeiros, por sua afirmada gravosidade, estaria inserta no âmbito da reserva de jurisdição. Todavia, não é correta essa ideia. O ordenamento jurídico confere a órgãos e entidades não jurisdicionais competência para a decretação de indisponibilidade e, portanto, para sobre a mesma deliberarem. Assim é que a Lei nº 8.443/19923 autoriza ao Tribunal de Contas da União – TCU a decretar a indisponibilidade de bens.

Do mesmo modo, a indisponibilidade de bens também decorre da decretação, pelo Banco Central do Brasil4, de intervenção ou de liquidação extrajudicial de instituições financeiras privadas, públicas não federais e cooperativas de crédito.

As entidades abertas e as entidades fechadas de previdência complementar também estão sujeitas à intervenção/liquidação promovidas, respectivamente, pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP e pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC. Da intervenção/liquidação também resulta a indisponibilidade de bens, tal como figura da Lei Complementar nº 109/20015. Algumas agências reguladoras também podem decretar o regime de direção fiscal ou a liquidação extrajudicial das entidades que atuam no segmento regulado, sendo que tais atos importam na indisponibilidade dos bens dos administradores e diretores da sociedade6.


2. Do Sujeito Ativo do Delito

Conquanto a determinação da indisponibilidade de bens, dentre eles incluídos os ativos financeiros, não seja um prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário, percebe-se que a norma incriminadora restringiu seu alcance aos membros do aludido Poder. É que a mesma define, expressamente, o locus da conduta, qual seja, o processo judicial. Logo, trata-se de crime próprio tendo como único sujeito ativo possível o membro do Poder Judiciário, uma vez que só este tem competência para determinar a indisponibilidade no processo judicial.

Um breve comentário: se o mote da norma seria conter eventuais condutas desproporcionais ou irrazoáveis que colocassem os investigados/réus/executados em situação constrangedora, ante a retirada do acesso aos meios materiais mais imediatos para o cumprimento de suas obrigações (recursos financeiros), e se o sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade, nos termos do artigo 2º da Lei nº 13.689/2019, é qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas e membros dos tribunais ou conselhos de contas, haveria razão para a norma restringir-se apenas ao processo judicial e, por conseguinte, aos membros do Poder Judiciário?

Não se alegue que seria possível atribuir à expressão “em processo judicial” o sentido de que se trataria de qualquer procedimento conduzido por entidade ou órgão integrante da estrutura estatal, posto que isto importaria em adotar interpretação analógica para imposição de sanção penal, resultando em violação aos princípios da legalidade e da especialidade e, por conseguinte, em descompasso para com o ordenamento jurídico penal7.

Ao que parece, a única ratio que poderia justificar a distinção seria o fato de a indisponibilidade, nas hipóteses em que advinda de ato de entidades da Administração Pública, ser uma decorrência ex lege de outro ato (intervenção, liquidação extrajudicial, direção fiscal etc.), não consistindo em uma determinação específica, portanto a realização do núcleo da conduta típica não seria o objeto da vontade do agente, mas apenas o desdobramento de outra conduta. Todavia, esta lógica não se aplicaria ao TCU, pois a Corte de Contas pode determinar a indisponibilidade de bens como ato específico, no contexto de apuração que perante a mesma esteja em curso. Convém recordar que, embora receba a denominação de tribunal, o TCU não integra o Poder Judiciário (art. 92. da CRFB), portanto nem os processos sujeitos a sua competência, nem os atos nele praticados são judiciais.

De qualquer forma, parece claro que o potencial sujeito ativo é apenas o magistrado de primeiro grau, o qual, usualmente, determina a prática do ato em foco. Excepcionalmente, a medida pode ser deferida, nos tribunais, monocraticamente pelo relator (art. 932, II do CPC). Eventual deliberação por órgão colegiado, conquanto possa, em abstrato, sujeitar os respectivos membros à prática do delito, a nosso sentir, seria de ocorrência bastante improvável, posto que, para a imputação da responsabilidade, necessária se faz a individuação da culpabilidade de cada um dos agentes, no caso, dos membros do colegiado. Além disto, há outro aspecto de relevo, que adiante será abordado, o qual restringe, ainda mais, a possibilidade de enquadramento da conduta na figura típica quando a deliberação pela indisponibilidade emanar de órgão colegiado.

Do exposto, parece evidenciado que a norma visa alcançar, precipuamente, o magistrado de primeiro grau.


3. Da indisponibilidade de bens e das modalidades de processo em que a mesma pode ser decretada.

Por seu turno, como a lei refere-se a processo judicial, pode o ato ser praticado em qualquer modalidade de processo, isto é, cível ou penal. Entendendo-se por cível, todo aquele que não tenha por objeto a promoção da responsabilidade pela prática de crimes ou contravenções, cuja sanção possa, em linha de princípio, consistir na temporária perda da liberdade de locomoção.

Na seara penal, a indisponibilidade é uma medida assecuratória (de índole cautelar), voltada a salvaguardar, precípua, mas não exclusivamente, os interesses da vítima, em razão dos efeitos patrimoniais deletérios que a infração penal proporcionou. Direciona-se, então, à restituição dos bens à vítima, ou ao pagamento do correspondente pecuniário, que lhe foram desfalcados em razão da conduta delituosa, bem como à composição de outros danos (materiais, morais e estéticos) que o ilícito penal tenha proporcionado8. Contudo, não são somente estes os escopos das medidas em foco, como já se manifestou o colendo Superior Tribunal de Justiça:

O entendimento desta Corte é no sentido de que a realização de quaisquer das medidas assecuratórias previstas na legislação processual penal, tais como o sequestro, o arresto e a hipoteca legal, tem por fim garantir tanto a reparação de dano ex delicto quanto a efetividade da multa pecuniária e o pagamento das custas processuais que possam vir a ser impostas ao denunciado (REsp 1319345/PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, DJe 03/09/2015).

As medidas assecuratórias podem ser reais (CPP, arts. 125-144) ou de apreensão (CPP, art. 240, § 1º, b), porém, em qualquer caso, por se tratarem de medidas de natureza cautelar, o seu deferimento se dá com fundamento em exame perfunctório, que é típico desta modalidade de provimento jurisdicional. Dessa forma, para a decretação de medidas cautelares, mostra-se suficiente a certeza da materialidade e indícios de autoria, sendo certo que o seu deferimento inaudita altera pars não implica em violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa, e, como já se afirmou: “O perigo na demora é ínsito às medidas assecuratórias penais, sendo desnecessária a demonstração de atos concretos de dissipação patrimonial pelos acusados”. (STF, Pet 7069 AgR, Relator: Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe-095 public 09-05-2019).

Na esfera cível, a indisponibilidade, na fase de conhecimento, resulta de ato jurisdicional revestido da natureza de tutela provisória de urgência cautelar, no que guardaria correlação com a indisponibilidade no âmbito penal. Por sua vez, na fase ou no processo de execução, a indisponibilidade decorre, no mais das vezes, de ato preordenado à satisfação da obrigação, ou seja, executivo típico.

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Em qualquer das hipóteses, cognição ou execução, a indisponibilidade de ativos financeiros pode ser operacionalizada por intermédio do Sistema BACENJUD. Há previsão expressa para tanto no artigo 854 do Código de Processo Civil, o qual, literalmente, determina que a medida seja promovida sem dar ciência ao executado.

A rigor, sequer é correto afirmar, em sede de cumprimento de sentença ou de processo de execução, que o executado possa ser surpreendido com a indisponibilidade de ativos financeiros. Ativos financeiros são, em linha de princípio, bens passíveis de penhora (art. 835, I a III e XIII do CPC) e a penhora é uma consequência direta e imediata do decurso do prazo para pagamento do débito9.

No momento em que intimado/citado para pagar o débito, o executado também tem ciência de que o não cumprimento da obrigação no prazo legal (quinze dias, no cumprimento de sentença; três, na execução ordinária e cinco, na execução fiscal), implicará na realização da penhora. Este raciocínio é válido, inclusive, quando a citação tenha sido ficta (edital ou com hora certa), uma vez que, por envolver modalidades admitidas pelo direito (artigos 246, IV e 252/254 do CPC), produzem o mesmo efeito das citações reais.

As ações de improbidade administrativa contam com expressa previsão quanto à possibilidade de, cautelarmente10, ser decretada a indisponibilidade de bens dos réus, quando presentes fortes indícios de responsabilidade pela prática de ato ímprobo que cause dano ao Erário, não havendo necessidade de comprovação de que o demandado esteja praticando atos de disposição de seu patrimônio, pois o perigo de dano se perfaz ex lege, sendo inerente ao próprio microssistema das ações de improbidade11. O montante indisponibilizado não se limita ao valor do eventual ressarcimento, mas também pode incluir a quantia correspondente à possível multa civil, aplicada como sanção autônoma12.

A indisponibilidade de bens de que trata a Lei nº 8.429/1992 tem sido entendida como de aplicação no âmbito das ações civis públicas e populares, posto que todas estas ações integram o microssistema de proteção dos interesses e direitos coletivos13.


4. Da incursão na conduta típica.

Neste momento, uma primeira conclusão pode ser alçada: por força do princípio da tipicidade14, somente está autorizada a caracterização da conduta cominada quando a indisponibilidade recair sobre ativos financeiros, não estando sujeita à qualificação como delituosa a conduta que resultar na constrição de outros bens arrolados no artigo 835 do CPC, que não se subsumam ao conceito de ativo financeiro.

Por seu turno, hipótese interessante, e de ocorrência comum, consiste em a indisponibilidade atingir um conjunto formado por ativos financeiros e por outros bens. Neste caso, o eventual excesso sobre o total dos bens poderia caracterizar a conduta delitiva ou, para tal fim, apenas deveria ser tomado o valor dos ativos financeiros bloqueados?

A nosso sentir, dois aspectos concorreriam para que só os ativos financeiros sejam considerados. O primeiro seria, como visto acima, o fato de a indisponibilidade sobre bens diversos de ativos financeiros não se amoldar à descrição da conduta típica. Assim, para fins de imputação de responsabilidade penal, ao se pretender incluir os valores dos bens que não sejam ativos financeiros na apuração do montante considerado excessivo estar-se-ia extrapolando os limites objetivos da descrição da conduta típica e, portanto, violando o já mencionado princípio da tipicidade.

Ainda que se considerasse o somatório dos valores dos ativos financeiros e dos demais bens para caracterizar o excesso, um segundo aspecto relevante seria a circunstância de que, nos termos do CPC, a constrição sobre o dinheiro, como visto, é preferencial (art. 835, § 1º). Isto implicaria em que o eventual excesso concorresse, de ordinário, para o desbloqueio dos demais bens e não dos ativos financeiros. Então, a constrição “abusiva” não estaria recaindo, em primeira análise, sobre os ativos financeiros, mas sim sobre outras modalidades de bens e, por conseguinte, importaria em fato atípico. É evidente que sempre se poderia argumentar, tendo por base o princípio da menor onerosidade (art. 805. do CPC), que os ativos financeiros poderiam/deveriam ser liberados, porém a aplicação do aludido princípio deve ser examinada de modo casuístico, reclamando o exame individualizado das circunstâncias envolvidas15, constituindo-se em exceção e não, em regra.

Conclui-se, então, que, conquanto a indisponibilidade possa abarcar diversos tipos de bens, para fins de caracterização da eventual incursão na conduta tipificada, o excesso de constrição punível deve ser examinado tendo por elementos de comparação, exclusivamente, o montante dos ativos financeiros constritos e o “valor estimado” do débito.


5. Da extrapolação exacerbada: Uma tentativa de delimitação do alcance do elemento normativo do tipo.

Visto, brevemente, o leque de hipóteses em que a indisponibilidade pode vir a ser concretizada, cabe, minimamente, comentar sobre o elemento normativo16 do tipo penal em foco.

O tipo penal refere-se a “extrapolar exacerbadamente”.

Uma primeira observação que se pode fazer é no sentido da pouca objetividade da expressão, sendo certo que, mormente em se tratando de normas que disciplinam condutas passíveis de punição, a adequada apreensão do comportamento vedado ou reprimido se faz indispensável, pois sua imprecisão compromete a segurança jurídica, isto é, a possibilidade de o indivíduo antever os potenciais efeitos e consequências dos atos que se propõe a praticar.

No caso, parece pouco razoável admitir a adequação constitucional do aludido tipo penal, uma vez que a indeterminabilidade objetiva da conduta permite afirmar que o dispositivo legal está inquinado com nulidade, por conta de sua imprecisão, de sua vagueza (void for vagueness). Sobre a inconstitucionalidade das normas imprecisas, Eduardo Pitrez de Aguiar Correa17 (2011) assevera que:

Uma das mais famosas invocações da doutrina é atribuída ao Juiz Holmes, em Nash v. United States, quando, divergindo dos demais julgadores, advertiu-os dos riscos da indeterminação da lei penal, argumentando:

“A lei é cheia de exemplos nos quais o destino de um homem depende de sua correta avaliação [.....] Se o julgamento é errado, ele pode não somente incorrer numa multa ou numa prisão curta [....]; ele pode incorrer numa pena de morte”

A indeterminação inconstitucional de uma lei penal parte da compreensão de que “todo homem deve ser capaz de saber, com certeza, quando está cometendo um crime, de modo que “uma lei que proíbe ou obriga a uma ação em termos tão vagos que um homem de inteligência comum deve necessariamente adivinhar o seu significado (....) viola a essência básica do devido processo.

Associada à cláusula do devido processo legal e à máxima nela incorporada do ubi jus incertum, ibi jus nullum, a teoria invoca uma série de razões pelas quais se deve invalidar a norma penal indeterminada, com o objetivo de fazer prevalecer, em última instância, o rule of law, not of men.

A precisão com que as condutas vedadas devem ser descritas na lei penal é um imperativo de segurança jurídica e encontra acolhimento no ordenamento jurídico pátrio por força do princípio da taxatividade, o qual “... preside a formulação da técnica da lei penal e indica o dever imposto ao legislador de proceder, quando redige a norma, de maneira precisa na determinação dos tipos legais, para saber, taxativamente, o que é penalmente ilícito e o que é penalmente permitido” (Dotti, 2000, p. 60).

Ainda que assim não fosse, convém observar que a expressão em foco não conta com significado específico na ciência do direito, portanto deve ser examinada sob o prisma semântico. Assim, tem-se que extrapolar guarda a ideia de superar, de exceder determinado referencial, podendo ser entendido como “ultrapassar os limites” (Houaiss, 2011, p. 1293). Por sua vez, exacerbar significa “tornar(se) mais intenso, avivar(se), agravar(se)” (Houaiss, 2011, p. 1.279). Ou seja, aumentar significativamente, exagerar. O advérbio que conta com o mesmo radical denota a noção de algo que é feito com intensidade anormal. Logo, extrapolar exacerbadamente pode ser entendido como a conduta que ultrapassa limites de forma exagerada. No caso, implicaria em exceder, em quantidade muito superior, o valor estimado para a satisfação da dívida.

A composição dos vocábulos utilizados perpassa a ideia de algo significativamente desproporcional; se, por um lado, extrapolar poderia até importar em qualquer sobejamento – um centavo que o fosse –, de outro, exacerbadamente reclama que o excesso seja de grande extensão. Não há na norma um referencial claro para definir qual seja a exasperação do valor que o torne excessivo.

Por certo, a incriminação de condutas que impliquem na excessividade do valor indisponibilizado destina-se a impedir que, arbitrariamente, o investigado/réu/executado tenha por comprometida a livre disposição de seu patrimônio, ainda que temporariamente. Obstar que o patrimônio do indivíduo seja indevidamente amesquinhado por conta de uma ação estatal arbitrária foi uma preocupação do Constituinte, o qual entendeu por interditar ao Estado atuações de forma irracional, desmedidas, quando do exercício de sua atividade tributante (portanto, apta a comprometer o patrimônio dos indivíduos), vedando assim o confisco. É bem verdade, que a noção de confisco, em razão da majoração de alíquotas de tributos ou da instituição de alguma nova exação, não prescinde do exame do caso concreto. Neste sentido, a Suprema Corte18 já assentou que a conjecturas sobre um incremento de tributação em comparação com a carga tributária já posta, tomada genericamente, não permitem, por si só, a conclusão quanto à gravosidade da atuação estatal. O tema então não conta com um referencial objetivo (numérico) para mensuração.

Se no plano das obrigações tributárias principais, o STF não tem reconhecido a exacerbação tributária, a impedir a fixação de um referencial sobre os limites a serem observados, no que se refere às obrigações acessórias, o parâmetro já veio a ser fixado pela Corte Maior, a qual considera que os valores das multas punitivas são confiscatórios quando ultrapassam o percentual de 100% (cem por cento) do montante do tributo devido. Então, somente quando o Estado intenta avançar sobre o patrimônio do contribuinte, com o intuito de perceber quantia oriunda de uma sanção tributária, que exceda o mesmo montante do tributo é que se observará um exagero e, por conseguinte, uma violação constitucional.

Pode ser afirmado que a questão em voga não é de índole tributária, bem como que a indisponibilidade não consiste na aplicação de uma sanção. Realmente, não é o caso, porém, o que se busca realçar são os limites de uma conduta estatal, que repercute sobre o patrimônio dos indivíduos, cuja imputação de abusividade foi questionada (não parece haver dúvida de que o confisco é um ato abusivo). Sob este enfoque, a indisponibilidade de ativos financeiros conta com características similares. Destaque-se que, na multa tributária, o Estado pretende, a título de aplicação de uma sanção, apropriar-se de parcela do patrimônio do contribuinte, isto é, intenta transpor patrimônio do indivíduo para o Erário. Por sua vez, a indisponibilidade de bens detém natureza instrumental, não é um fim em si mesma, mas apenas uma medida voltada a resguardar ou viabilizar a futura satisfação de um crédito, cujo titular nem sempre será o Estado. Neste caso, o atuar do Estado, na qualidade de Estado-juiz, tem o escopo de assegurar a efetividade da prestação jurisdicional.

Partindo, assim, da necessária coerência interna que deve orientar o sistema jurídico, uma primeira possível conclusão seria no sentido de que a qualificação como abusiva de uma ação estatal menos gravosa – a indisponibilidade – somente deve ser admitida, quando, no mínimo, houverem sido ultrapassados os limites já gizados no ordenamento jurídico que permitiriam atribuir idêntica qualificação à atuação mais gravosa – imposição de multa em valor excessivo (confisco).

Vejamos, então, outra circunstância em que a lei busca evitar que a falta de razoabilidade do Estado, no âmbito processual, cause substancial prejuízo patrimonial ao devedor, falamos da arrematação, em leilão judicial, por preço vil.

O artigo 891 do Código de Processo Civil estabelece que nos leilões judiciais não será aceito lance que ofereça preço vil, assim entendido aquele estipulado pelo juiz, constante do edital, ou, em não havendo expressa definição, aquele inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação. É dizer, a lei processual, em regra, não admite que o patrimônio do executado seja transferido para outrem com depreciação superior a cinquenta por cento de seu valor. Haveria, em linha de princípio, abusividade na ação estatal que não respeitasse tal limite.

Então, o Estado não pode causar gravame ao executado que implique em perda que sobeje metade do valor de avaliação do bem penhorado.

Na forma supra, extrai-se do ordenamento jurídico duas hipóteses, uma jurisdicional outra legislativa, nas quais foram firmados marcos limitativos da incursão estatal sobre o patrimônio dos indivíduos, delimitando o que deve ser tomado como razoável, sendo certo que tais marcos, conquanto dotados de diferentes ordem de grandeza – 100% e 50% –, indicam que a noção de abusividade não se coaduna com transpasses de limites de reduzida significância.

Impende ressaltar que, embora em valores absolutos um excesso de constrição possa ser considerado como de elevada monta, a sua eventual indisponibilidade, por si só, não permitiria enquadrá-lo no conceito em foco, necessário seria que, em termos proporcionais, o montante excedesse, substancialmente, o valor estimado como devido.

Como dito, extrapolar pressupõe a existência de um referencial, implicando em que se proceda à comparação entre o excesso e o referencial. O ato de comparar implica em “relacionar (coisas animadas ou inanimadas, concretas ou abstratas, da mesma natureza ou que apresentem similitudes) para procurar as relações de semelhança ou de disparidade que entre elas existam” (Houaiss, 2001, p. 773).

Comparações devem ser promovidas observando-se um determinado contexto. No caso, compara-se o valor do excesso com o valor estimado do débito, uma vez que o tipo penal aduz à “quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida”. Assim, a comparação não visa aferir qual das quantias é maior (valor absoluto), mas sim quanto uma delas representa em relação à outra (proporção), pois o que se pretende é atribuir a uma das quantias determinada qualificação (exacerbada) a partir do cotejo com a outra. Logo, em se tratando de referencial numérico, a aferição da discrepância (do excesso) deve se dar em termos de proporção (de relação percentual).

Imaginemos a hipótese em que houve uma constrição a maior da ordem de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). Por certo, o montante é elevado. Todavia, a nosso sentir, tal indisponibilidade não extrapolaria, exageradamente, o valor estimado do débito, caso este fosse, por exemplo, da ordem de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais), uma vez que a desproporção entre os valores – 10% (dez por cento) – não seria, comparativamente, exagerada. Com efeito, cabe ter em mente a relação percentual entre o excesso e o montante da dívida, devendo esta proporção ser substancial para fins de caracterização da exacerbação.

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Sobre o autor
Silvio Wanderley N. Lima

Mestre em Direito. Professor. Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Silvio Wanderley N.. Apontamentos sobre a indisponibilidade de ativos financeiros e a nova Lei de Abuso de Autoridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7933, 21 mar. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77373. Acesso em: 26 mar. 2025.

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