6. Da efetiva conduta tipificada.
De outra feita, de extrema relevância é observar que o tipo penal não pune, a rigor, a decretação da indisponibilidade exacerbada, mas sim, a não exclusão do excesso. É que o preceptivo legal vale-se de uma conjunção aditiva “e” para unir duas orações definidoras de comportamentos: a primeira, decretar a indisponibilidade excessiva; a segunda, deixar de corrigi-la ante a demonstração, pela parte, de sua excessividade.
Vejamos, novamente, a descrição da conduta típica:
Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la:
A descrição induz a classificação como plurissubsistente para o crime em tela. É sabido que “Há crime plurissubsistente quando o processo executivo se compõe de vários atos ou etapas, de modo a caracterizar o iter criminis.” (Dotti, 2001, p. 379).
Para nós resta claro que, a rigor, a conduta cominada seria determinar a indisponibilidade excessiva e deixar de liberar o excesso da constrição, quando demonstrado que este sobeja, de forma exacerbada (e não de modo pouco significativo) determinado montante, o qual a lei denomina como o valor estimado da dívida. Decretar a indisponibilidade e não desbloquear o excesso são condutas que devem coexistir, sem que isto ocorra o tipo penal não se concretiza faticamente.
Nesta senda, a mera decretação da indisponibilidade, por mais gravosa e exacerbada que seja, por si só, não caracterizaria a prática do delito em testilha. Isto afasta, a nosso sentir, uma preocupação que teria se instalado no sentido de que a mera utilização do Sistema BACENJUD importaria em expor os magistrados ao risco de incorrer na conduta delituosa. O receio adviria de, em virtude da forma como é realizada a pesquisa de ativos financeiros no aludido sistema, ser possível que a quantia objeto da indisponibilidade seja constrita, integralmente, em mais de uma instituição financeira com as quais o executado mantenha vinculação. Desse modo, possível é que sejam efetuados bloqueios em bancos diferentes, cujo somatório supere, às vezes em muito, o valor solicitado. Hipoteticamente, determina-se o bloqueio de R$ 20.000,00 e são constritos R$ 80.000,00, pois o executado mantinha depósitos iguais ou superiores a R$ 20.000,00 em quatro instituições financeiras diferentes.
A hipótese acima é de possível ocorrência. Todavia, dispõe de disciplina própria no regramento processual civil, a evidenciar que Legislador já havia antevisto que o bloqueio, embora requerido nos limites do débito exequendo, poderia vir a excedê-lo. Por tal razão, a norma processual estatui que, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, contadas da resposta apresentada pela instituição financeira, o juiz determine, de ofício, o cancelamento de eventual indisponibilidade excessiva (art. 854, § 1º do CPC). Então, a possibilidade de um bloqueio inicial ultrapassar os limites em que foi solicitado faz parte da sistemática da penhora de ativos financeiros e já foi sopesada pelo Legislador, não podendo dita ocorrência, ipso facto, ser considerada criminosa. Ademais, como dito, o delito somente se aperfeiçoa quando da indevida recusa do magistrado em proceder ao desbloqueio requerido pela parte.
Além disto, se a determinação de bloqueio emanada do juízo corresponde ao exato valor do débito, eventual constrição a maior, adviria de fato que não está sob o controle do magistrado, qual seja, a manutenção pelo devedor de valores superiores ao débito em mais de uma instituição financeira. Não haveria então dolo, muito menos específico, sendo certo que a circunstância em foco afastaria, no mínimo, a culpabilidade, ante a inexigibilidade de conduta diversa, pois não pode o magistrado deixar de cumprir o seu dever legal (determinar a constrição, quando presentes os requisitos que a autorizam), tendo por base a especulação, desprovida de elementos materiais indicativos de seu razoável grau de probabilidade, de que o excesso possa concretizar-se no plano dos fatos.
A rigor, para obstar o risco de eventual constrição excessiva ter-se-ia que, previamente, adotar a irrazoável medida de quebra do sigilo bancário19 do devedor, pois só assim seria dado ao magistrado ter ciência do patrimônio financeiro do devedor e direcionar sua conduta (decretar a indisponibilidade) de modo a não ultrapassar o valor do débito. Em juízo de ponderação, por certo, há que se concluir que a prévia determinação da quebra de sigilo bancário, com o intuito de evitar um incerto bloqueio excessivo, é mais gravosa aos direitos fundamentais do devedor do que submetê-lo ao risco em foco, mormente, quando a circunstância de o risco vir a ser convertido em fato (a constrição a maior) conta com específica disciplina legal, definindo o célere procedimento a ser adotado.
Cumpre ressaltar que o mero decurso do prazo fixado pela Lei Processual, sem o desbloqueio do excesso, não caracteriza a conduta típica, eis que não materializada, ainda, a segunda parte da definição legal do delito. Para ocorrência concreta do crime, necessário se faz que o interessado demonstre ao julgador o excesso da medida, posto que o tipo legal registra a seguinte explicitação: “ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida”. Destarte, será o requerimento do interessado, apontando e comprovando o excesso, que irá permitir o desencadear dos fatos que poderão, ou não, caracterizar a incursão na conduta típica. Diga-se, desde logo, que não basta o requerimento, posto que este, nos termos do artigo 10 do CPC, deve ser submetido ao contraditório, e à posterior manifestação judicial, a qual, em linha de princípio, conta com o prazo de 10 (dez) dias úteis para ser externada (art. 226, II do CPC).
Como mencionado acima, a caracterização do delito por força de ato de órgão judicial colegiado é bastante remota, uma vez que, salvo eventual hipótese de ação sujeita à competência originária, os atos de decretação e desbloqueio, embora possam ser determinados pelos Tribunais, são materializados pelos juízos de primeiro grau. Ademais, via de regra, a decretação da indisponibilidade pelos Tribunais ocorre no bojo de um recurso, no qual, presume-se, a parte ré poderá se manifestar, sendo o deferimento da indisponibilidade uma consequência do não acolhimento dos argumentos do réu. Logo, no caso, a “demonstração, pela parte, da excessividade da medida” a que alude a descrição do tipo não teria sido caracterizada. Eventual decisão de Tribunal Superior entendendo pelo excesso, não parece, de ordinário, permitir a caracterização do delito, tal como tentaremos demonstrar mais a frente.
O tipo penal também peca, no ponto em espeque, por sua falta de clareza. Como dito o referencial para a caracterização da conduta delitiva perpassa pelo cotejo entre o excesso de constrição e o valor estimado débito. Portanto, é preciso que seja decretada a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que ultrapasse significativamente o valor estimado para a satisfação da dívida. O que entender, então, por valor estimado?
Sobre o vocábulo “Estimação”, De Plácido e Silva (1987, pag. 215/216) nos esclarece que:
Derivado do latim aestimateo, de aestimare (dar valor, avaliar, calcular), no sentido jurídico sempre foi tido na acepção de apreciação, cálculo do valor, avaliação.
E, neste conceito, aplicavam-no já os romanos, quando diziam: venire in aestimationem (ser avaliado ou taxado).
Mas, estimação, nesta acepção, possui amplo sentido: é não só o ato de atribuir o preço ou o valor de alguma coisa, como calcular o valor, ou seja, a própria avaliação.
(.....)
Em qualquer dos casos, em que se apresente, estimação será sempre a procura do valor ou o cálculo do preço de alguma coisa, a fim de que se verifique não só preço econômico ou de troca, como o próprio valor de uso ou de afeição, quando este possa ser também computado numa apreciação econômica. (g.n.)
Estimativa, então, “é indicativo do ato pelo qual se procede a uma estimação. É o cálculo ou o arbítrio empreendidos para evidência do valor ou estimação da coisa ” (Silva, p. 216).
O sentido de “estimar” guarda liame com as coisas (bens) e, portanto, traz a noção de avaliação. Avaliar pode ser entendido como ato realizado em juízo20 que tem “a finalidade de tornar conhecido a todos os interessados o valor aproximado dos bens a serem utilizados como fonte dos meios com que o juízo promoverá a satisfação do crédito do exequente” (Theodoro Junior, 2016, pag. 535).
O montante exigido em juízo é aquele representativo de uma obrigação. E obrigações, para serem executadas, demandam liquidez21. Líquida é a obrigação cuja determinabilidade do seu valor está configurada. Assim, liquidar importa em estabelecer o montante representativo da obrigação, em fixar-lhe a exata extensão, o quantum debeatur.
Como visto, o montante em que importa uma obrigação não é, a rigor, objeto de avaliação (estimação), mas sim de liquidação. Veja-se que nas ações relativas às obrigações de pagar quantia, conquanto tenha sido formulado pedido genérico, a sentença deve ser líquida, ou seja, deve definir a extensão da obrigação, salvo se não for possível, desde logo, determinar, de modo definitivo, o montante devido ou a apuração deste demandar instrução demorada ou excessivamente dispendiosa (art. 491. do CPC). A impossibilidade da determinação do valor impõe sua remessa à apuração por liquidação (art. 491, § 1º do CPC).
A nosso sentir, estimar guarda correlação com avaliar e consiste na apuração do valor a ser atribuído às coisas (bens) em razão de suas qualidades intrínsecas ou extrínsecas. Neste caso, a avaliação (estimação) não define se o montante do débito em cobrança está correto ou não, mas, apenas, quantifica o valor de um bem constrito, permitindo que se afira sua potencial capacidade de satisfazer a quantia exigida em uma execução.
Então, parece claro, que a expressão “valor estimado” não deveria corresponder ao valor da obrigação definitivamente fixado. Caso o “valor estimado” se confunda com o “valor definitivo” (alterável somente mediante rescisão da decisão que o fixou ou na hipótese de erro material), a indisponibilidade excessiva reclamaria a prolação de decisão que deixasse de observar o aludido montante. Nesta senda, chamaremos de hipótese “A” aquela em que o valor do débito corresponde a “X” e a indisponibilidade foi determinada no valor de R$ “3X”. O descompasso entre os valores, por certo, caracterizaria um erro material, que poderia ser, e certamente o seria, corrigido de ofício ou a requerimento do devedor. Assim, afastada estaria a realização material da segunda parte da conduta descrita no tipo: “deixar de corrigi-la”.
Constitui-se em cenário assaz esdrúxulo supor que, na situação hipotética em foco, um magistrado, ciente de que o montante definitivo em que importa o débito é de “X” e alertado quanto ao equívoco, mantivesse a indisponibilidade no importe de “3X”, sem uma justificativa deveras plausível22. Por certo, uma hipótese tão pouco razoável como esta permitiria inferir que o agir do magistrado poderia ter a finalidade específica de prejudicar outrem ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, de atender mero capricho ou satisfação pessoal (art. 1º, § 2º da Lei nº 13.869/2019), porém, como dito, a alegoria em tela envolveria uma situação que extrapola o razoável e o cotidiano forense. De qualquer sorte, insta recordar que o ônus de demonstrar o dolo específico na conduta do magistrado será da acusação, pois “No sistema acusatório adotado no processo penal brasileiro, é ônus da Acusação provar que o denunciado praticou as elementares do tipo penal”23.
Se esta era a hipótese vislumbrada pelo Legislador, não se demonstra exagerado afirmar que, excluída a função preventiva da prescrição penal, pouco sentido haveria em instituir tal cominação. Ressoa muito pouco provável que, no plano dos fatos, confluam todas as circunstâncias que deveriam se fazer presentes para a imposição da sanção: valor do débito não mais passível de discussão, decretação da indisponibilidade a maior, excesso induvidoso e exacerbado, ciência do excesso e indevida recusa em proceder à retificação.
Ademais, já existe no ordenamento jurídico figura típica voltada a punir o agente público que retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: a prevaricação (art. 319. do Código Penal)24.
Outra possibilidade interpretativa segue no sentido de que o valor estimado não se confundiria com o valor definitivo, mas sim com um montante ainda sujeito a questionamentos. Veja-se que a expressão “valor estimado” e o vocábulo “estimativa” são identificados no texto do Código de Processo Civil, e indicam uma quantia afirmada por uma das partes e sujeita ao crivo das demais25.
Atribuir ao “valor estimado” o sentido acima mencionado aparenta ser mais compatível com a estrutura do dispositivo penal em tela, que aduz à “demonstração, pela parte, da excessividade”, ou seja, sugere ter havido algum debate quanto ao correto valor. Se assim for, estar-se-ia, então, diante de uma hipótese de ocorrência mais comum, que chamaremos de hipótese “B”, na qual o autor informa, por exemplo, ser de “3X” o valor do débito, determinando-se a indisponibilidade no exato montante, vindo, em seguida, o réu a alegar que o valor correto seria “X”. Concluindo-se que o valor correto seria “X” e não “3X”, caberia ao magistrado (antes ou após preclusa a decisão, como entender adequado ao caso) reduzir a constrição ao montante correto. Se não o fizesse, em linhas bem gerais, poderia incorrer na conduta típica.
Neste caso, a pergunta a ecoar seria: Se o magistrado já concluiu que o valor correto seria “X” e não “3X”, e estando preclusa a decisão, por qual razão deixaria de proceder à liberação do excedente? O quê o motivaria a agir de forma tão irrazoável, neste específico caso, pareceria pertinente cogitar estar o magistrado imbuído de uma “finalidade especifica de prejudicar” (art. 1º, § 2º da Lei nº 13.869/2019), tal como se daria na hipótese “A”, na qual o valor do débito já havia sido definitivamente fixado.
Sobressai importante realçar que, ao se conferir ao “valor estimado” o sentido de valor apontado por uma das partes e ainda passível de exame, um aspecto importante se descortina: a definição do enquadramento na figura típica passa a ter como foco o valor do débito. É dizer: a caracterização do delito demandaria o prévio debate em torno do real montante da dívida. Assim, chamaremos de hipótese “C” aquela que nos parece ser recorrente no cotidiano forense: afirmado pelo autor que o débito importaria em “3X”, a indisponibilidade é realizada com base no referido montante. Em seguida, o réu apresenta impugnação, sustentando que o valor correto seria “X”. O magistrado, então, examina os argumentos e provas e decide que o correto é “3X”, ou outro valor, menor que “3X”, mas superior ao pretendido pelo réu. Se não houver recurso, o montante se tornará, em linha de princípio26, definitivo e imutável, produzindo a certeza quanto ao valor em que importa a dívida. Neste caso, excluída a possibilidade de rescisão da decisão, não mais se poderá falar em excessividade e, por conseguinte, em enquadramento na figura típica, pois a eventual indisponibilidade efetuada no montante em tela estará correta, sob o prisma jurídico, descabendo falar em abusividade.
E se houver recurso? Por óbvio, se o recurso não for provido, recair-se-á na mesma situação anteriormente mencionada e não se cogitará de crime. Mas e se o recurso for integralmente provido (isto é, o valor correto seria “X” e não “3X”), haveria, em tese, a possibilidade de caracterizar o delito? Cremos que, em condições normais, não.
Impende destacar que o magistrado, ao decidir pelo valor que entendeu correto, exerceu sua atividade de forma regular. O eventual descompasso entre a sua decisão e o entendimento firmado pelos órgãos superiores não pode, por si só, implicar na caracterização de uma conduta delituosa em que tenha incorrido o julgador; se assim fosse, apenar-se-ia o juiz por uma divergência de interpretação27 e, com isto, romper-se-ia um dos pilares que sustenta a concretização de uma ordem jurídica justa: a independência do magistrado, externada por intermédio de seu convencimento motivado. Veja-se que, em situação assemelhada, a Suprema Corte28 já se pronunciou no sentido de que:
O Magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir, exceto se, ao agir de maneira abusiva e com o propósito inequívoco de ofender, incidir nas hipóteses de impropriedade verbal ou de excesso de linguagem (LOMAN, art. 41). A ratio subjacente a esse entendimento decorre da necessidade de proteger os magistrados no exercício regular de sua atividade profissional, afastando - a partir da cláusula de relativa imunidade jurídica que lhes é concedida - a possibilidade de que sofram, mediante injusta intimidação representada pela instauração de procedimentos penais ou civis sem causa legítima, indevida inibição quanto ao pleno desempenho da função jurisdicional. A crítica judiciária, ainda que exteriorizada em termos ásperos e candentes, não se reveste de expressão penal, em tema de crimes contra a honra, quando, manifestada por qualquer magistrado no regular desempenho de sua atividade jurisdicional, vem a ser exercida com a justa finalidade de apontar equívocos ou de censurar condutas processuais reputadas inadmissíveis. Situação registrada na espécie dos autos, em que o magistrado, sem qualquer intuito ofensivo, agiu no estrito cumprimento do seu dever de ofício. (g.n.)
Não parece ser por outra razão que a própria Lei nº 13.869/2019 estaria, na hipótese vertente, a afastar a tipicidade da conduta, ao assentar que “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade” (art. 1º, § 2º).
Assim, se o magistrado, examinando as questões de fato e de direito, concluiu, motivadamente, em determinado sentido, a rejeição de suas conclusões por órgão judicial mais elevado não o sujeitará à reprimenda penal, salvo se adequadamente demonstrado o descumprimento do seu dever de imparcialidade, mediante caracterização do animus nocendi, do desiderato de prejudicar a parte.
Ao fim e ao cabo, pelas incertezas que proporciona, parece-nos que o texto legal, no que pertine ao tema ora abordado, também não prima pela necessária clareza.