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Multiparentalidade e seus reflexos jurídicos

27/11/2019 às 12:10
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A Constituição repudia qualquer tipo de discriminação entre as diversas formas de constituir família, uma vez que todos são iguais perante a lei, independe de qualquer norma regulamentadora.

INTRODUÇÃO

O instituto da filiação socioafetiva, embora se tratando de uma realidade social existente desde tempos remotos, somente está sendo estudado e reconhecido nos tempos atuais.

Existem, ainda, contudo, muitos problemas que devem ser tratados com intenso cuidado neste assunto.

O instituto da multiparentalidade vem sendo estudado por muitos autores, todavia, é um tema muito controverso, sendo alvo de grandes discussões quando se trata dos direitos aos alimentos e direitos sucessórios advindos desse instituto.

O presente trabalho de pesquisa visa abordar o tema da filiação socioafetiva, um assunto recente no direito de família, pois decorre da mudança da estrutura familiar recentemente consagrado pelo Supremo Tribunal Federal como Multiparentalidade, ou seja, a inclusão do pai/mãe socioafetivo no registro civil do filho, sem a exclusão do pai/mãe biológico.

Nesse sentido, o presente estudo é dividido em três momentos principais: primeiramente abordar-se-á sobre o conceito de família e as novas configurações familiares na sociedade.

Na sequência discorre-se sobre a filiação socioafetiva e os princípios norteadores que possibilitaram seu reconhecimento.

Por fim, chegar-se-á ao objetivo fundamental deste estudo, qual seja a análise da questão do instituto da multiparentalidade, seu reconhecimento perante os tribunais, e seus efeitos jurídicos sobre o direito aos alimentos, guarda, visita, assentamento de registro civil e direito à sucessão de todos os envolvidos na relação multiparental.

1 CONCEITO DE FAMÍLIA

Conforme o artigo 226 da Constituição Federal, a família é a base da sociedade, logo tem especial proteção do Estado.

Pode-se afirmar que o conceito de família foi se adequando às novas necessidades da sociedade. Atualmente existem várias formas de constituir família, fugindo inteiramente do conceito de família que era formada por um homem e uma mulher unidos pelo casamento com objetivo de ter filhos.

Com o advento da Carta Magna de 1988 que a mudança na concepção de família ocorreu. Antes da CF/88 a família brasileira somente era reconhecida legal e socialmente quando proveniente do casamento válido e eficaz. Dessa forma, qualquer outro modelo de família existente era socialmente marginalizado.

Entretanto, esses outros tipos de constituição familiar passaram a ser amparados pela Constituição de 1988, que ampliou o conceito de família, não se restringindo ao casamento, visto que o matrimônio deixou de ser o fundamento da família legítima, sendo a entidade familiar formada pela sociedade de acordo com as novas necessidades humanas.

Nesse diapasão, a família formada pelo matrimônio, entre homem e mulher, cedeu lugar para uma família aberta, incluindo, até mesmo a família socioafetiva, construída pela afetividade.

Novas configurações familiares na sociedade

Ainda com o advento da Carta Magna trazendo no conceito de entidade familiar várias estruturas de convívio, o Código Civil Brasileiro, continua atrelando o conceito de família àquela constituída pelo casamento.

No entanto, é perceptível que a entidade familiar afasta-se da estrutura do casamento.

Mister se faz ressaltar o entendimento de, Roberto Senise Lisboa (2010, p.16), que conceitua entidade familiar como:

“Entidade familiar é todo grupo de pessoas que constitui uma família. Diante das modificações que a sociedade sofreu, com sensíveis repercussões sobre as relações familiares, outra é, atualmente, a noção de família. Família é o gênero, do qual a entidade familiar é a espécie. Família é a união de pessoas: a) constituída formalmente, pelo casamento civil; b) constituída informalmente, pela união estável; e) constituída pela relação monoparental.”

Nesse sentido, conforme o entendimento de Lisboa (2010, p.16), diante das transformações sofridas pela sociedade, atualmente temos outro conceito de família. Segundo o autor, família é o gênero, sendo a entidade familiar uma espécie.

Desta forma, é possível concluir que família não é exclusivamente aquela constituída formalmente, pelo casamento civil ou pela união estável, bem como aquela constituída pela relação monoparental[1].

Conforme se depreende, as relações familiares sofreram profundas modificações com o transcorrer do tempo, de modo que o seu conceito deu lugar a outras formas de constituição de família.

Diante disso, temos como família, além daquelas envolvidas pelos laços sanguíneos, o casamento, a união estável, famílias monoparentais, homoafetivas, homoparentais[2], e demais formas de constituir famílias pelo vínculo socioafetivo, como por exemplo, a multiparentalidade.

2 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

A filiação socioafetiva surgiu do amor, do afeto, do carinho, equiparando-se a família formada pelo vínculo biológico.

Diante de tantas mudanças na sociedade e, consequentemente, da forma de constituir família, surge a necessidade de amparar aqueles laços de família formados pela filiação socioafetiva, que conquistaram espaço no âmbito jurídico, sendo, portanto, reconhecidos pelo vínculo da afetividade.

É perceptível que a realidade da vida passa a frente da verdade biológica e da verdade registral. Isso porque, a realidade da vida privilegia os vínculos da afetividade como geradores de direitos e obrigações. Com isso, consagra-se a filiação socioafetiva, que tem origem não em um ato, mas em um fato. Ou seja, tem origem da convivência que faz gerar o que se chama de posse de estado de filho e não da concepção ou o registro. (Maria Berenice Dias, 2016, p. 211/212).

Instrui Orlando Gomes (1993. P. 311) que a posse do estado de filho se forma por um conjunto de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo do casal que cria e educa, devendo ter os seguintes requisitos:

  1. sempre ter levado o nome dos presumidos genitores;
  2. ter recebido continuamente o tratamento de filho legítimo;
  3. ter sido constantemente reconhecido, pelos presumidos pais e pela sociedade, como filho legítimo.

            Pontes de Miranda (1971. p.46/47), por   seu   turno, afirma   que a posse do estado de filho legítimo consiste no gozo do estado, da qualidade de filho legítimo e das prerrogativas dele derivadas, e que, sucintamente, pode ser resumida em três palavras:

  1. Nomen: que o indivíduo use o nome da pessoa a que atribui a paternidade;
  2. Tractatus: que os pais o tratassem como filho, e nessa qualidade lhe tivessem dado educação, meios de subsistência etc.;
  3. Fama: que o público o tivesse sempre como tal.

No entanto, entende-se que para haver o reconhecimento da filiação socioafetiva, se faz necessário a demonstração da Fama e do Tractatus. A Fama poderá ser reconhecida através do relacionamento público de pai ou mãe e filho, enquanto o Tractatus, se caracteriza pelo mero tratamento entre pai ou mãe com o filho socioafetivo.

Esse é o pensamento que reflete o julgado do STJ sobre a socioafetividade:

“Filiação. Anulação ou reforma de registro. Filhos havidos antes do casamento, registrados pelo pai como se fossem de sua mulher. Situação de fato consolidada há mais de quarenta anos, com o assentimento tácito do cônjuge falecido, que sempre os tratou como filhos, e dos irmãos. Fundamento de fato constante do acórdão, suficiente, por si só, a justificar a manutenção do julgado. Acórdão que, a par de reputar existente no caso uma “adoção simulada”, reporta-se à situação de fato ocorrente na família e na sociedade, consolidada há mais de quarenta anos. Status de filhos. Fundamento de fato, por si só suficiente, a justificar a manutenção do julgado. Recurso especial não conhecido (Recurso Especial nº 119.346/GO; Rel. Min. Barros Monteiro; j. 1º.4.2003).”

Nesse sentido, o Enunciado 519 do CJF assegura que a posse de estado de filho é essencial para que seja feito o reconhecimento da parentalidade socioafetiva. Vejamos:

“Enunciado nº 519: art. 1.593: O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais”.

Vale ressaltar que a posse do estado de filho, o reconhecimento da filiação socioafetiva, irá gerar inevitavelmente direitos e deveres entre os participantes dessa relação, como veremos adiante. Ainda, depois de constituída, a parentalidade socioafetiva torna-se irrevogável, irretratável e indisponível voluntariamente.

Princípios norteadores

Conforme abordado acima, a entidade familiar deve ser compreendida com alicerce nos laços de afetividade.

A Carta Magna estabelece os princípios gerais que dão guarida à família, independentemente de sua origem. No entanto, vale dizer que os princípios do direito de família não são taxativos, eles se baseiam no anseios sociais, refletindo os ideais de justiça e ética.

1 Princípio da dignidade humana no direito de família

O texto constitucional preconiza a dignidade da pessoa humana como princípio vetor da República Federativa do Brasil.

O artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, consigna que o planejamento familiar está fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.

Nesse sentido, compreende-se que o Estado tem o dever de promover a dignidade através de condutas ativas, garantindo ao ser humano o mínimo existencial, respeitando seus direitos e garantias fundamentais. Ademais, o Direito de Família se estrutura no princípio da dignidade humana, garantindo a comunhão plena de vida de cada integrante da entidade familiar.

2 Princípio da afetividade

O Princípio da Afetividade é o cerne da parentalidade socioafetiva, e consequentemente do instituto da multiparentalidade.

A afetividade precisa estar presente nos vínculos de filiação e de parentesco para ser reconhecida como entidade familiar. No entanto, acredita-se que ambas as espécies podem coexistir, afastando-se a ideia de que a filiação socioafetiva sempre prevalece perante a filiação meramente biológica.

Esse é o entendimento do STJ, voto do Ministro Luiz Felipe Salomão:

“DIREITO DE FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE E MATERNIDADE AJUIZADA PELA FILHA. OCORRÊNCIA DA CHAMADA "ADOÇÃO À BRASILEIRA". ROMPIMENTO DOS VÍNCULOS CIVIS DECORRENTES DA FILIAÇÃO BIOLÓGICA. NÃO OCORRÊNCIA. PATERNIDADE E MATERNIDADE RECONHECIDOS. 1. A tese segundo a qual a paternidade socioafetiva sempre prevalece sobre a biológica deve ser analisada com bastante ponderação, e depende sempre do exame do caso concreto. É que, em diversos precedentes desta Corte, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica foi proclamada em um contexto de ação negatória de paternidade ajuizada pelo pai registral (ou por terceiros), situação bem diversa da que ocorre quando o filho registral é quem busca sua paternidade biológica, sobretudo no cenário da chamada "adoção à brasileira". 2. De fato, é de prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole, sem que, necessariamente, a assertiva seja verdadeira quando é o filho que busca a paternidade biológica em detrimento da socioafetiva. No caso de ser o filho - o maior interessado na manutenção do vínculo civil resultante do liame socioafetivo - quem vindica estado contrário ao que consta no registro civil, socorre-lhe a existência de "erro ou falsidade" (art. 1.604 do CC/02) para os quais não contribuiu. Afastar a possibilidade de o filho pleitear o reconhecimento da paternidade biológica, no caso de "adoção à brasileira", significa impor-lhe que se conforme com essa situação criada à sua revelia e à margem da lei. 3. A paternidade biológica gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente e que não se desfaz com a prática ilícita da chamada "adoção à brasileira", independentemente da nobreza dos desígnios que a motivaram. E, do mesmo modo, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos da filha resultantes da filiação biológica, não podendo, no caso, haver equiparação entre a adoção regular e a chamada "adoção à brasileira". 4. Recurso especial provido para julgar procedente o pedido deduzido pela autora relativamente ao reconhecimento da paternidade e maternidade, com todos os consectários legais, determinando-se também a anulação do registro de nascimento para que figurem os réus como pais da requerente. “

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Nesse sentido, é possível assegurar que a filiação socioafetiva sobrepõe à biológica quando pauta-se no princípio do melhor interesse da família, ou seja, a tese de que a parentalidade afetiva prevalece sobre a biológica deve ser aplicada com moderação, devendo ser analisada a peculiaridade de cada caso concreto, buscando-se o melhor interesse da criança ou do adolescente.

Insta salientar que o Direito de Família está cada vez mais pautado no afeto, decorrente das relações de convivência entre as entidades familiares, dado isso a importância deste princípio.

Conforme salienta a Min. Nancy Andrighi: “A quebra de paradigma do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar”.

Giselle Câmara Groeninga, diz que: “O amor é condição para entender o outro e a si, respeitar a dignidade, e desenvolver uma personalidade saudável”, ou seja, aquele que não recebeu o afeto de ninguém certamente jamais será completamente saudável.

3 Princípio da solidariedade

Consolida-se a afetividade com o princípio da solidariedade, uma vez que ser solidário constitui responder pelo outro, cuidar e proteger o outro, sendo estas demonstrações de afeto.

Para Rolf Madaleno, “a solidariedade é princípio e oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário”.

4 Princípio da paternidade responsável

O princípio da paternidade responsável, está pautado na responsabilidade dos pais perante seus filhos. O artigo 226, § 7º da Constituição Federal aduz que, baseado na dignidade humana estabelece o acolhimento, tanto dos vínculos da filiação biológica, quanto da filiação socioafetiva, sem que seja necessário excluir um ou outro vínculo, uma vez que um não sobrepõe ao outro quando o melhor interesse dos filhos for o reconhecimento jurídico de ambos.

5 Princípio da igualdade da filiação

Em se tratando de Direito de Família, mais uma vez a Constituição Federal de 1988 trouxe grande destaque a este ramo do direito.

Foi com a promulgação da Carta Magna que a discriminação entre filhos legítimos e os ilegítimos terminou definitivamente.

Durante muito tempo, antes da Constituição Federal de 1988, os filhos havidos fora do casamento, única entidade familiar reconhecida à época, eram descriminados e não eram reconhecidos pela sociedade.

Nesse sentido, analisa-se   o   que   diz   Rolf Madaleno (2017, p. 166/167)   sobre   a igualdade da filiação:

“Embora ao longo dos anos tenham surgido leis mitigando a discriminação da prole, foi somente com a promulgação da Constituição Federal em 1988 que terminou definitivamente sepultada qualquer designação discriminatória relativa à filiação, deixando finalmente de “punir” os filhos que não tinham tido a “felicidade” de terem sido fruto amoroso das justas núpcias. No encalço da Carta Política de 1988, foi, por fim, promulgada a Lei n. 7.841, de 17 de outubro de 1989, com o intuito de revogar o odioso artigo 358 do Código Civil de 1916, que vedava o reconhecimento dos filhos incestuosos e adulterinos, negando-lhes identidade, personalidade e dignidade, como se eles fossem responsáveis pelas escolhas afetivas e procriadoras de seus pais.”

Dessa forma, não mais se admite a diferenciação de tratamento entre filiação biológica e filiação socioafetiva, isso porque, a Constituição Federal em seu artigo 227, § 6º disciplinou que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

3 MULTIPARENTALIDADE

Falar de multiparentalidade é o mesmo que falar do fim do modelo dúplice de duas pessoas no registro de nascimento de alguém.

O instituto da multiparentalidade se resume na possibilidade de haver o registro de duas mães e um pai ou dois pais e uma mãe, ou até mesmo dois pais e duas mães, somando os pais afetivos aos pais biológicos, isso porque uma não precisa excluir a outra, criando a multiparentalidade.

Em sua obra, o professor Christiano Cassettari (2017. p. 184/185), cita, o entendimento de Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues a respeito da multiparentalidade, a qual expõe que:

“Em face de uma realidade social que se compõe de todos os tipos de famílias possíveis e de um ordenamento jurídico que autoriza a livre (des)constituição familiar, não há como negar que a existência de famílias reconstituídas representa a possibilidade de uma múltipla vinculação parental de crianças que convivem nesses novos arranjos familiares, porque assimilam a figura do pai e da mãe afim como novas figuras parentais, ao lado de seus pais biológicos. Não reconhecer esses vínculos, construídos sobre as bases de uma relação socioafetiva, pode igualmente representar ausência de tutela a esses menores em formação.”

Para ilustrar mais um conceito de multiparentalidade é importante destacar o que diz Karina Azevedo Simões de Abreu (2014): “trata-se da possibilidade jurídica conferida ao genitor biológico e/ou do genitor afetivo de invocarem os princípios da dignidade humana e da afetividade para ver garantida a manutenção ou o estabelecimento de vínculos parentais.”

Logo, conclui-se que a multiparentalidade, advinda de uma relação de afetividade desenvolvida por uma entidade familiar, foi uma evolução jurídica consolidada pelos anseios da sociedade.

Assim sendo, afirma-se que o afeto tornou-se um valor jurídico, hoje vastamente protegido pelos tribunais do País.

Reflexos jurídicos

No ano de 2016, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a existência da paternidade socioafetiva não exclui a responsabilidade do pai biológico. Foi assim que por maioria dos votos, os ministros negaram provimento ao Recurso Extraordinário 898.060-SC. No presente recurso, um pai biológico recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos patrimoniais, independentemente do vínculo com o pai socioafetivo.

Com repercussão geral reconhecida, o STF declarou a existência da multiparentalidade, admitindo a concomitância da filiação biológica e afetivo. Dessa forma, ficou pacificado pelo STF o entendimento sobre a multiparentalidade, devendo ser adotado em todo o país.

Com efeito, a todo direito corresponde um dever, e vice-versa, de forma que a multiparentalidade acarreta em uma séries de direitos e obrigações entre os envolvidos na entidade familiar.

Quando se fala em multiparentalidade, uma vez reconhecida essa nova configuração familiar, surgem também as obrigações. Essas obrigações se constituem em dever de pagar alimentos, a necessidade de regulamentar a guarda e os dias de visitas, bem como a importância do assentamento de registro civil para a produção dos seus regulares efeitos, e, por fim, surgem os efeitos sucessórios, tanto das relações biológicas quanto das relações socioafetivas.

Vale ressaltar que a tese dos direitos e obrigações produz efeitos em ambas as direções, de tal modo que, os pais biológicos e socioafetivos possuem direitos e deveres para com os seus filhos, da mesma maneira os filhos exercem essa obrigação perante os pais.

1 Dos alimentos

O Código Civil de 2002, no seu artigo 1.694, deixa claro que “podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”.

Dessa forma, uma vez reconhecida a multiparentalidade como nova forma de entidade familiar, bem como a igualdade entre os filhos biológicos e socioafetivos, ainda, considerando os deveres e obrigações entre todos os envolvidos na relação entre parentes socioafetivos, entende-se que há obrigatoriedade de prestar alimentos entre pais e filhos também na relação socioafetiva.

Ademais, em havendo mais de dois pais no assento de nascimento, a obrigação alimentar se dará por qualquer um deles, não havendo solidariedade entre ambos.

Esse é o entendimento de Cassettari (2017. p. 259): “[...] Imaginemos que o menor esteja na guarda da mãe e que tenha dois pais em seu registro de nascimento. Desta feita, não vejo óbice para que ele escolha um entre os dois pais para iniciar a ação de alimentos, considerando que, segundo o art. 1.694 do Código Civil, o mesmo será fixado em razão da possibilidade do alimentante”.

2 Da guarda e visita dos filhos socioafetivos

O instituto da guarda está consagrado no artigo 1.583 do Código Civil brasileiro de 2002. Inicialmente se estabelece que a guarda será compartilhada ou unilateral.

Entende-se por guarda unilateral aquela atribuída a um só dos genitores ou alguém que o substitua, analisando a compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.

A guarda unilateral, por seu turno, é aquela em que a responsabilidade e despesas relacionadas à vida dos filhos comuns é conjunta, entre pai e mãe.

Nesse sentido, verifica-se que o direito à guarda se estende aos pais socioafetivos, uma vez que não há prioridade para o exercício da guarda de uma criança ou adolescente em decorrência da parentalidade afetiva ou biológica. Lembrando que o que prevalece é o melhor interesse da criança ou adolescente. (CASSETARRI, 2017. p. 135)

Da mesma forma ocorre com o direito de visitas aos filhos e aos pais socioafetivos, ou seja, não há preferência entre a parentalidade biológica ou afetiva, porquanto, mais uma vez, o que deve ser acatado é o melhor interesse da criança.

3 Do assentamento de registro civil

Preconiza o inciso II do art. 10 do Código Civil, que será feita a averbação em registro público dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação. Nesse sentido, é de suma importância que uma vez reconhecida judicialmente a parentalidade socioafetiva, esta seja devidamente averbada no registro civil, para que surtam os efeitos legais.

Em sua obra, Christiano Cassettari (2017), relata sobre o Provimento 2 do Conselho Nacional de Justiça (SNJ), de 27 de abril de 2009, sendo este alterado pelo provimento 3, em 17 de novembro de 2009. O Provimento 2 do CNJ expõe que as certidões de nascimento, casamento e óbito foram padronizadas em todo país e os campos pai e mãe foram substituídos por filiação e os de avós maternos e paternos, simplesmente, avós. Afastando-se qualquer problema ao incluir no assento de nascimento, casamento ou óbito o nome de mais de um pai ou mãe, no caso da multiparentalidade.

4 Direitos sucessórios

A multiparentalidade contempla todos os direitos e obrigações, dessa forma, não seria diferente quando o matéria é direito sucessório. Isso porque, uma vez que os parentes socioafetivos são equiparados aos biológicos, serão aplicadas todas as regras sucessórias na parentalidade socioafetiva.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu nesse sentido. Observemos:

“Direito processual civil – Direito de família – Ação de investigação de maternidade, cumulada com retificação de registro e declaração de direitos hereditários – Impossibilidade jurídica do pedido – art. 267, inc. VI, do Código de Processo Civil – Extinção do processo sem resolução do mérito. Dá-se a impossibilidade jurídica do pedido, quando o ordenamento jurídico abstratamente vedar a tutela jurisdicional pretendida, tanto em relação ao pedido mediato quanto à causa de pedir. Direito Civil – Apelação – Maternidade Afetiva – atos inequívocos de reconhecimento mútuo – testamento – depoimento de outros filhos – parentesco reconhecido – recurso desprovido. A partir do momento em que se admite no Direito Pátrio a figura do parentesco socioafetivo, não há como negar, no caso em exame, que a relação ocorrida durante quase dezenove anos entre a autora e a alegada mãe afetiva se revestiu de contornos nítidos de parentesco, maior, mesmo, do que o sanguíneo, o que se confirma pelo conteúdo dos depoimentos dos filhos da alegada mãe afetiva, e do testamento público que esta lavrou, três anos antes de sua morte, reconhecendo a autora como sua filha adotiva (TJMG; Ap. Cível 1.0024.03.186.459-8/001; 4ª C.C.; Rel. Des. Moreira Diniz; publicado em 23.3.2007).”

Assim sendo, verifica-se que, uma vez presente o estado de filho, o direito sucessório torna-se indiscutível. Ressalta-se que, conforme mencionado anteriormente, os direitos e obrigações produzirão efeitos para ambas as partes, ou seja, os filhos também exercem obrigação perante os pais, inclusive no que concerne aos direitos sucessórios.

Ainda, faz-se imperioso destacar que existe a possibilidade de um filho ser herdeiro de mais de um pai ou mãe. Isso porque, o ordenamento jurídico não colocou nenhum empecilho nesta questão. Nesse sentido, uma vez que não existe vedação legal acerca desse assunto, entende-se que, em não sendo proibido, é permitido.

Ademais, uma vez que o direito brasileiro reconheceu o instituto da multiparentalidade, entende-se que implicará todos os efeitos jurídicos pertinentes ao direito de família e sucessões.

Destarte, conclui-se que é perfeitamente permitida a herança nos casos de multiparentalidade, e como medida de igualdade, esses direitos se estendem a todos os envolvidos na relação multiparental, inclusive podendo haver o reconhecimento da parentalidade socioafetiva post mortem, uma vez comprovado a convivência afetiva entre o falecido e o vivo.

CONCLUSÃO

Tomando por base as exposições doutrinárias, a legislação existente acerca do tema estudado, chega-se ao final do presente trabalho de pesquisa que versou sobre a filiação socioafetiva, a multiparentalidade e seus reflexos jurídicos.

No transcorrer do presente artigo científico, observou-se que em paralelo a filiação biológica, demanda igual proteção jurídica à filiação socioafetiva.

Num primeiro momento tratou-se do conceito de família e as novas configurações familiares formadas pela sociedade, onde se observou as diversas formas de constituir família, destacando-se a parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade, que surgiu para humanizar as relações familiares.

O novo conceito de família, foge completamente do conceito de família antes formada por um homem e uma mulher ligados pelo casamento civil com o objetivo de ter filhos.

O conceito de família antes da Constituição Federal de 1988, cedeu lugar ao conceito de família da atualidade, qual seja, a família formada pelo casamento, a união estável, monoparentais, homoafetivas, homoparentais, e todas as formas de constituir família pelo elo afetivo.

Em seguida, analisou-se sobre a filiação socioafetiva e os princípios norteadores que possibilitaram o reconhecimento da multiparentalidade perante os tribunais de todo país.

Desse modo, é possível concluir que o instituto da multiparentalidade foi devidamente consolidado pelo Supremo Tribunal Federal ante os anseios da sociedade.

Finalmente, tratou-se do instituto da multiparentalidade e seus efeitos jurídicos, que foi o principal objetivo deste trabalho. Nesse momento, foram considerados os direitos referentes ao direito de alimentos, guarda, visita, assentamento de registro civil e direito à sucessão de todos os envolvidos na relação parental.

O tema mostrou grande relevância e foi ao encontro de leis e decisões jurisprudenciais que atendem aos anseios da sociedade atual que vive esta realidade. Nesse sentido, não se pode negar que é perfeitamente possível o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, bem como do instituto da multiparentalidade.

Os requisitos essenciais para o reconhecimento da parentalidade socioafetiva é a Fama e do Tractatus. Esta vinculada ao mero tratamento entre pai ou mãe com o filho socioafetivo, enquanto aquela pode ser reconhecida através do relacionamento público de pai ou mãe e filho, lembrando que depois de formada, a parentalidade socioafetiva, torna-se irrevogável, irretratável e indisponível.

Diante de todo exposto, resta claro que o instituto da multiparentalidade é um assunto muito recente no direito brasileiro, mas uma realidade experimentada por inúmeras famílias na sociedade. Entende-se que a parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade surgiram para somar, em que pese dividir várias opiniões.

Ademais, a multiparentalidade, por se tratar de possibilidade jurídica de haver mais de dois pais no assentamento de registro civil, consequentemente originará direitos e obrigações entre todos os envolvidos, ressaltando-se que o princípio da dignidade humana e da afetividade surgem para garantir a manutenção desses vínculos parentais e dos respectivos direitos a eles relacionados.

Nesse sentido, a Constituição Federal de 88 repudia qualquer tipo de discriminação entre as diversas formas de constituir família, uma vez que todos são iguais perante a lei, independe de qualquer norma regulamentadora, representando um marco contra a discriminação da família constituída sob várias formas.     


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. IX, p. 46 e 47.

MADALENO, Rolf. Direito de família – 7.ª ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.

GROENINGA, Giselle Câmara. O direito à integridade psíquica e o livre-desenvolvimento da personalidade. In: Família e dignidade humana, PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Belo Horizonte: IBDFAM. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família, 2006. p. 448.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. CRFB/88.

BRASIL. Código Civil de 2002.

http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?id=1254676. Acesso em 23 de julho de 2018.


Notas

[1] A relação monoparental, que é a entidade familiar constituída por qualquer dos genitores e seus descendentes. (Roberto Senise Lisboa (2010, p.17).

[2] Trata-se de uma das formas de constituir família, formado por casais homoafetivos que adotam uma ou mais criança.

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Sobre a autora
Ivanir Neves Mazzotti

Advogada. Bacharel em Direito/2006. Especialista em Direito e Processo do Trabalho, pela Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis/2008. Especialista em Direito de Família e Sucessões na UCAN/SP. Membro do núcleo de pesquisa e escrita científica da faculdade LEGALE. Pós Graduanda em Direito Civil e Direito Processual Civil na Faculdade LEGALE/SP. Atua na advocacia nos âmbitos extrajudicial e judicial como advogada e consultora jurídica; Possui Curso de Oratória Jurídica e negociação para Advogados – Campo Grande/MS. Atuou como Presidente da Comissão de Precatórios da OAB/MS, Presidente da Comissão de Direitos Sociais - OAB/MS, e Vice-Presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/MS, até o ano de 2020. Curso de extensão do NCPC – 2016 Cursos de extensão – Inovações no Direito Civil e Previdenciário. Prestou Assistência Jurídica à Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – em Londrina/PR. Mediadora e Conciliadora Judicial e Extrajudicial – Centro de Mediadores - Brasília/DF. 2021/2022. e-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAZZOTTI, Ivanir Neves. Multiparentalidade e seus reflexos jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5992, 27 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77636. Acesso em: 19 nov. 2024.

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