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Considerações sobre o desvio de poder nas alterações dos contratos administrativos

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4. DESVIO DE PODER

          4.1. Contexto e Conceito

          Vimos que o Administrador Público deve pautar os seus atos dentro dos princípios da legalidade, moralidade e finalidade. O Administrador, quando usa o poder discricionário que a lei lhe confere, não pode se afastar desses princípios e obter um resultado diverso do que a lei estabelece. Ao se afastar do resultado pretendido, estará incorrendo em desvio de poder ou de finalidade.

          Há muito vêm ocorrendo denúncias, notoriamente, em largo número e freqüência, de desrespeito aos princípios a que está sujeita a Administração, previstos no art. 37 da Constituição Federal.

          Lamentavelmente, torna-se verdadeira a assertiva de Celso Antonio Bandeira de Mello no sentido de que: "(...)desgraçadamente, no Brasil, casos de desvio de poder existem aos bolhões, ao ponto de poder-se imaginar que sejamos expoentes nesta matéria." [163]

          O combate à corrupção tornou-se uma bandeira no reclamo de uma cidadania digna.

          A corrupção decorre da improbidade administrativa e demonstra-se pelo comportamento ilegal do agente público. Trata-se de ilegalidades que propiciam enriquecimento ilícito ou lesão ao erário. O ato de corrupção independe do agente público ou da esfera governamental em que ele esteja, basta que o agente pratique um ato ilícito atentatório à imagem do Estado. [164]

          Vimos que os atos administrativos objetivam o interesse público e a atividade administrativa persegue finalidade prescrita em lei. [165]

          "O Administrador Público deve, obedecer à lei em todas as suas manifestações. Mesmo nas atividades discricionárias, o administrador fica sujeito às prescrições legais quanto a competência, finalidade e forma, só decidindo com liberdade na estreita faixa da conveniência e oportunidade administrativa." [166]

          A motivação é, pois, o núcleo para diagnosticar a legalidade do ato "...o ato administrativo exprime a vontade da Administração. Nos motivos, está a razão da decisão." [167] Gaston Jèse afirmou: "motivos são considerações de fato e de direito, que impelem alguém a realizar determinado ato jurídico." [168] (Grifado no original).

          O poder administrativo concedido ao agente público tem contornos definidos e forma legal de utilização. Não pode ser utilizado para exercer arbítrios, violências, perseguições ou favoritismos. O ato da autoridade, para ser irrepreensível, deve coadunar-se com a lei, com a moral e com o interesse público. Sem esses requisitos, o ato administrativo expõe-se à nulidade. [169]

          Moralidade e legalidade se complementam, andam juntas. Fábio Medina Osório considera que as ilegalidades cometidas por agentes públicos que atentam também contra o conjunto de princípios constitucionais que regem a administração pública e o desrespeito às leis parecem ser um problema cultural grave da sociedade brasileira, em particular de suas elites, mais especificamente ainda das elites políticas. [170]

          Nesse sentido, devemos entender o contexto em que surgiu a Lei 8.429/92, a qual tutela a atividade dos agentes públicos, reprimindo os atos de improbidade administrativa. A lei nasceu logo após o escândalo envolvendo o ex-Presidente Collor e Paulo César Farias.

          Na lição de Hely Lopes Meirelles:

          "O desvio de finalidade ou de poder verifica-se quando a autoridade, embora atuando nos limites da sua competência, pratica ato por motivos ou fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público". [171]

          Carlos Borges de Castro afirma que

          "(...) desvio de poder importa em afastamento do espírito da lei. É detectado a partir do desejo que inspirou o autor do ato administrativo. A autoridade administrativa faz mau uso da sua competência, ou melhor, dela se vale para fim diverso do conferido pela lei." [172]

          Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, "o desvio de poder ocorre quando o agente público pratica o ato com finalidade diversa da que decorre implícita ou explicitamente da lei." [173]

          Conclui-se que o desvio de finalidade ou de poder nas alterações contratuais ocorre sempre que o agente público faz uso do seu poder de alterar as condições do contrato administrativo de forma diversa daquela pretendida pela lei.

          Segundo a lição de Carlos Borges de Castro,

          "Poder é a faculdade ou a capacidade de determinadas prerrogativas ou funções a serem exercitadas. Essa aptidão para agir é prerrogativa da Administração, a quem em seu nome age dentro dos limites da lei. Quando o administrador agir fora dos parâmetros legais estará incorrendo em abuso, desvio ou excesso de poder." [174]

          Nesse sentido, José Cretella Júnior distingue as expressões abuso, desvio e excesso de poder:

          "(...) não só no direito universal como no direito brasileiro, os doutrinadores empregam as expressões ‘excesso de poder’, ‘abuso de poder’, ‘desvio de poder’ ou ‘desvio de finalidade’ como expressões sinônimas. Observe-se que a expressão ‘abuso de poder’ é constituída de dois termos diferentes, ‘abuso’ e ‘poder’, ligados pelo conectivo preposicional e ambos com sentido técnico que é preciso esclarecer. O vocábulo ‘abuso’ é a primeira parte da expressão, aliás bastante precisa: ultrapassagem, passagem além do uso, uso abusivo. Nesse caso, o agente ‘abusa do poder’ que lhe foi dado. A segunda parte da expressão é ‘poder’, completando, assim, o substantivo ‘abuso’, assim explicado pelos autores: o poder administrativo exerceu-se ultrapassando os fins visados pela lei. ‘Abuso de poder’ é, assim, o uso imoderado da sua competência. Para alguns autores as três expressões ‘desvio de poder’, ‘excesso de poder’ e ‘abuso de poder’ são absolutamente sinônimas, ao passo que, para outros, ‘desvio de poder’ é a simples modalidade do ‘excesso de poder’ ou ‘abuso do poder’." [175]

          Segundo Hely Lopes Meirelles,

          "(...) o abuso do poder ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, ultrapassa os limites de suas atribuições ou se desvia das finalidades administrativas. O gênero abuso de poder divide-se em excesso de poder e desvio de finalidade ou de poder." [176]

          No mesmo sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro assinala:

          "O excesso de poder ocorre quando o agente público excede os limites da sua competência; por exemplo, quando a autoridade policial se excede no uso da força para praticar ato de sua competência. É o excesso quantitativo." [177]

          Da obra de Hely Lopes Meirelles destacamos,

          "O desvio de poder verifica-se quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou fins diversos dos objetivados por lei ou exigidos pelo interesse público. É uma violação moral da lei, colimando o administrador fins não queridos pelo legislador, ou utilizando motivos ou meios imorais para a prática de um ato administrativo aparentemente legal."

          "Tais desvios ocorrem, por ex., quando a autoridade administrativa decreta uma desapropriação alegando utilidade pública mas visando, na realidade, a satisfazer interesse pessoal próprio ou favorecer algum particular com a subseqüente transferência do bem expropriado." [178]

          Conclui-se que o abuso de poder ocorre quando o administrador extrapola os limites que a lei lhe impõe. Como espécie do abuso de poder, temos o abuso de autoridade, quando o agente excede quantitativamente aos parâmetros legais. Exemplo clássico ocorre em uma batida policial em que o agente submete o cidadão a um constrangimento ilegal.

          O desvio de poder ou de finalidade é outra espécie do gênero abuso do poder e ocorre quando o agente faz uso do poder discricionário com que a lei o contempla de forma diversa, atingindo finalidade não pretendida por ela.

          Outro exemplo se pode apontar quando o administrador público provoca uma alteração desnecessária em um contrato administrativo para favorecer o contratante. O administrador escondendo-se sob a máscara da legalidade, escamoteia o propósito e se afasta do interesse público, gerando desvio de poder.

          4.2. O Desvio de Poder no Direito Comparado

          O Direito Comparado permite o cotejamento dos diferentes sistemas jurídicos permitindo a compreensão do instituto confrontado. [179]

          4.2.1. No Direito Francês

          O desvio de poder ("d’etourmenent de pouvoir") nasceu na França, a partir do caso LESBASTS e foi sentenciado pelo Conselho de Estado.

          Embora a lei de 25/11/1846 autorizasse os Prefeitos a regulamentar a circulação e estacionamento de veículos nas imediações das estações ferroviárias, assegurando ali o livre acesso do público, um prefeito incorreu em desvio de poder quando adotou medidas que assegurassem monopólio em favor de uma única empresa.

          Nesse caso, o motivo acobertado pelo Prefeito era garantir o transporte de passageiros para uma única empresa. Aparentemente, a autoridade competente havia praticado um ato que a lei lhe facultava. Mas, quando garantiu exclusividade para uma só empresa, o agente alcançou fim diverso daquele outorgado pela lei. [180]

          Os inúmeros julgados do Conselho de Estado francês foram formando, ao longo dos anos, a teoria do desvio de poder. Essa jurisprudência, em uma brilhante criação pretoriana, tomou corpo e conquistou a doutrina, a ponto de irradiar a teoria além fronteiras. [181]

          4.2.2. No Direito Italiano

          O Conselho de Estado italiano recepcionou a jurisprudência francesa, aplicando o instituto em diversos julgados relativos a desapropriação, depois influenciando a própria doutrina italiana.

          Da obra de Carlos Borges de Castro destacamos:

          "Casos concretos de "sviamento di potere" tiveram solução à luz da produção gaulesa (cf. Arnando de Vales, La Validitá Degli Atti Amministrativi, l917, citado por CRETELLA JUNIOR: Anulação do Ato Administrativo por Desvio de Poder, l978: 161)"

. [182]

          A teoria do desvio de poder foi largamente aceita na Itália porque lá também existe um Conselho de Estado, ou seja, a Itália é país que adota o sistema de dualidade de jurisdição, o que importa dizer que o "sviamento de potere" escapa da ação jurisdicional. Assim como na França, surgiu na Itália a concepção jurídica de que ocorre desvio de finalidade quando a execução do ato não se faz em consonância com a letra, e ao querer da lei. [183]

          O que releva apontar é o alcance do "sviamento di potere", que compreende todos os casos em que o administrador usa o poder discricionário para fins distintos dos cometidos pela lei. [184]

          4.2.3. Outros Direitos

          O desvio de poder tem suas raízes na França e na Itália, de onde se expandiu para países que adotam o sistema romanístico, no caso da Espanha, onde é chamado de "desviación de poder", ou no sistema do "common law", no caso dos Estados Unidos da América, onde é chamado de "abuse of Discretion". [185]

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          A teoria do desvio do poder é hoje aceita e consagrada pelos países democráticos,permanecendo a idéia central do desvio de poder: típico vício de legalidade, suficiente para anulação do procedimento administrativo. [186]

          4.3. O Desvio de Poder e o Direito Brasileiro

          A recepção da teoria do desvio de poder no Brasil iniciou-se timidamente, porém vem gradativamente encontrando suporte na doutrina e na jurisprudência.

          Destaca-se que, ao contrário da França e da Itália, onde a teoria do desvio de poder irradiou-se da jurisprudência para a doutrina, no Brasil, a doutrina tem influenciado a jurisprudência. [187]

          4.3.1. Na Doutrina

          Como vimos acima, na conceituação de desvio de poder, a doutrina brasileira aceita o instituto como capaz de provocar a anulação do ato administrativo, cabendo o seu desfazimento ao Judiciário ou à própria Administração.

          Caio Tácito [188] foi o pioneiro no estudo do tema, sofrendo, restrições de Tito Prates da Fonseca [189] e de Brandão Cavalcanti. [190] Basicamente, argumentam que o vício de finalidade não é suficiente para fundamentar a anulação do ato administrativo, só aceitando o instituto para os países que têm a justiça administrativa especializada. [191]

          José Cretella Júnior, na sua obra O Desvio de Poder na Administração Pública, nas páginas 188 a 190, destaca que a boa doutrina [192] se alinha à corrente que entende ser possível a anulação do ato administrativo ocorrido com desvio de poder.

          4.3.2. Na Legislação

          Na opinião de J. Cretella Júnior, [193] a legislação brasileira tem registrado, de maneira implícita, a aceitação da teoria do desvio de poder, observando que existe a tendência de não se empregar corretamente o nomem iuris para evitar uma tomada de posição definitiva e concreta.

          J. Cretella Júnior registra que o art. 13, § 9º da lei nº 221, de 21 de novembro de 1894, pode ser considerado um marco no estudo do desvio de poder, no direito administrativo brasileiro:

          "Verificando a autoridade judiciária que o ato de resolução em questão é ilegal, o anulará no todo ou em parte, para o fim de assegurar o direito do autor

          a)considerando ilegais os atos ou decisões administrativas em razão da não aplicação do direito vigente, a autoridade judiciária fundar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento de atos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportunidade;

          b)a medida administrativa tomada em virtude de uma faculdade ou poder discricionário somente será havida por ilegal em razão da incompetência da autoridade respectiva ou do excesso do poder."

          A Constituição Federal estabelece o remédio do mandado de segurança, possível contra abuso da autoridade ou abuso de poder (art. 5º LXIX); também assegurou a toda pessoa o direito de representação contra abusos de autoridade ou abuso de poder (art. 5º, XXXIV, "a"). Temos também que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito." (art. 5º, XXXV).

          A Lei 4898, de 09.12.65, que pune criminalmente os abusos de autoridade, prevê explicitamente o desvio de poder:

          "Art.

1º O direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, contra as autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem abusos, são regulados pela presente lei.

          (...)

          Art. 4º Constitui também Abuso de autoridade:

          (...)

          h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal.

          (...)

          Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e penal." (Grifos nossos).

          Assim, a Lei 4898/65 regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativo, civil e penal para os agentes públicos que cometerem abuso de autoridade. A alínea "d" do art. 4º "considera abuso de autoridade o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal." (Grifo nosso)

          A Lei 8429, de 2 de junho de 1992, relativa às sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional, dispõe implicitamente do desvio de poder:

          "A Lei 8429/92 classifica e define os atos de improbidade administrativa em três espécies: a) os que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); b) os que causam prejuízo ao Erário (art. 10º) e c) os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). Para as três espécies, independente de outras sanções penais, civis e administrativas, previstas em legislação específica, a lei sujeita o agente público às cominações previstas no art. 12, incisos I, para a primeira espécie, II, para a segunda, e III, para a terceira". [194]

          4.3.3. Na Jurisprudência

          A Itália e a França mantêm o sistema de dualidade de jurisdição. Nesses países, há uma justiça administrativa, que processa e julga as questões de interesse da Administração.

          No Brasil, o Judiciário diz a última palavra (art. 5º XXXV da CF). Aqui prepondera o sistema único de jurisdição, ou seja, uma lei, um juiz. Assim, o reconhecimento do desvio de poder sofre limitações, segundo Carlos Borges de Castro:

          "(...) O motivo da limitação está, principalmente, na indispensabilidade de se demonstrar a lesão ou ameaça a direito. Objetivamente: é fundamental a prova, que poderá ser a motivação do ato questionado." [195]

          Para lastrear sua opinião, Carlos Borges de Castro se apóia na jurisprudência anotada por Hely Lopes Meirelles (Estudos e Pareceres de Direito Público, l981:108): [196]

          "O discricionarismo administrativo não se confunde com o arbítrio, que só o legislador possui dentro dos limites da Constituição"

(STF, RDA 104/83)

          "Sempre que o Poder Judiciário caracterizar como arbítrio um ato administrativo, lesivo a direito individual, compete-lhe dar a reparação adequada" (STF 314/638).

          "O controle judicial do ato administrativo é admitido não apenas para verificar sua conformidade com a lei, mas também o seu aspecto intrínseco, quando se apresente flagrantemente ilegal ou nulo" (TJSP, RT 287/277 e, no mesmo sentido, RT 298/170).

          "Tanto quanto os juízes, devem, conseqüentemente as autoridades administrativas motivar suas decisões: trata-se, aí, de indeclinável garantia não só dos particulares, que melhor conhecendo as razões em que se fundam tais pronunciamento, melhor poderão discuti-los, em instâncias superiores, como também, e principalmente, das próprias autoridades administrativas que, apresentando os fundamentos do seu convencimento, não poderão ser acoimadas de arbitrárias, parciais ou desidiosas" (TASP,RT 275/673)

          E, também, nas decisões que se extratam a seguir:

          "na desclassificação de concorrente, outros aspectos não podem ser consideradas para deles extrair-se a convicção de ilegalidade ou abuso de poder"

(TRF, sessão de 2/6/81).

          "A recusa de inscrição em licitação, desprovida de fundamentação, constitui ato ilegal e abusivo" (TRF, sessão de 7/11/85).

          "Detectadas irregularidades no procedimento licitatório, que o maculam com o vício da ilegalidade, impõe-se sua anulação" (TRF-1, sessão de 12/12/91).

          "Os julgamentos do Poder Judiciário raramente trazem o emprego da expressão desvio de poder ou desvio de finalidade. Entretanto, implicitamente, uma e outra estão contidas no corpo da decisão; ficam, sobremais, condicionadas às provas de ilegalidade ou de abuso de poder". [197](Grifo Nosso)

          Verifica-se que a Constituição de 1988, em seus artigos 70 a 75, estabelece as competências dos Tribunais de Contas na apreciação das contas anuais dos chefes dos três poderes em âmbito federal, estadual e municipal; das despesas feitas por gestores e responsáveis por bens e valores públicos; da legalidade das licitações e dos contratos administrativos.

          As decisões dos Tribunais de Contas, ainda que passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário, fazem coisa julgada administrativa. Nesse sentido, opina Eduardo Botelho Gualazzi: "...qualquer decisão do Tribunal de Contas, no Brasil, que gere situação jurídica individual, é suscetível de ser classificada como coisa julgada administrativa". [198](Grifado no original).

          Por outro lado, diversos julgamentos dos Tribunais brasileiros têm sido apreciados a partir de atos administrativos eivados por desvio de poder. As ações se concentram no campo da desapropriação, funcionalismo, poder de polícia e licitação. [199]

          Consultando a jurisprudência do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo sobre as alterações contratuais e sobre o desvio de finalidade, encontramos as seguintes decisões, que mostram como o administrador, utilizando-se do poder discricionário que a lei lhe confere, pratica o ato administrativo viciado:

          1)Processo

TC 32989/026/91 a ausência de previsão de recursos financeiros à época da abertura do certame a disparidade verificada entre a publicação resumida do contrato e os valores de distribuição constante da cláusula 7, e, principalmente, o acréscimo contratual apresentado no termo aditivo de folhas 187/197, ultrapassando em 4964% os 25% permitidos pelo decreto-lei 2300/86, inquinem o ajuste de irregularidades. Assim, de conformidade com os pareceres dos órgãos deste Tribunal e frente ao preceituado no artigo 33, inciso x, da Constituição do Estado, assino o prazo de 30 (trinta) dias para que a origem adote as providencias necessárias ao exato cumprimento da lei ou então, alegue o que for de seu interesse. publicação: doe de 23.07.92.

          2) Processo TC 10310/026/94 ata da 34 sessão ordinária da segunda câmara, realizada em 16.09.97- set 97 a egrégia câmara, entendendo que as justificativas apresentadas não regularizaram a falha apontada quanto ao expurgo, não se sustentando o argumento da origem frente às próprias condições contratuais, notadamente face ao disposto no item 10.6, no caderno de encargos anexo ao contrato (folhas 640), bem como diante da ausência da formalização do termo de repactuação, em desacordo com o artigo 15, parágrafo 8, da lei numero 8.880/94 e, ainda, a indevida recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, decidiu julgar irregulares os termos de folhas 722/723, 781/782 e 924/926, bem como o demonstrativo dos cálculos de repactuação (folhas 946), remetendo-se copias dos autos a secretaria da habitação, nos termos do inciso XXVII, do artigo 2 da lei complementar numero 709/93, devendo o sr. secretário da pasta, no prazo de 60 dias, informar a este Tribunal sobre as providências adotadas para apuração das responsabilidades; comunicando-se a Assembléia Legislativa, nos termos do inciso XV, do mesmo dispositivo legal; e ao Ministério Público Estadual, nos termos do inciso XII, do artigo 103, da lei complementar número 734/93.

          4.4. Dificuldade de Ser Provado o Desvio de Poder

          Entende-se que, quando o Administrador Público pratica o desvio de poder, dissimulando o verdadeiro motivo, sob a égide da legalidade, ele o faz de maneira disfarçada, substituindo o interesse público pelo interesse próprio ou de um fornecedor.

          O desafio que surge é conseguir se provar que o ato administrativo esta viciado pelo desvio de poder.

          Carlos Borges de Castro mostra a dificuldade de provar o desvio de finalidade:

          "Na prática, é difícil, na quase totalidade dos fatos, descobrir o motivo real que levou o homem público a agir com desvio de finalidade. Porque, como é obvio, não pretende que a coletividade descubra a razão ou as razões de seu proceder. Nessa medida, é difícil demonstrar, perante o Poder Judiciário, com provas irrefutáveis que se verificou o desvio de finalidade". [200]

          Maria Sylvia Zanella Di Pietro, no mesmo sentido, afirma:

          "A grande dificuldade com relação ao desvio de poder é a sua comprovação, pois o agente não declara a sua verdadeira intenção; ele procura ocultá-la para produzir a enganosa impressão de que o ato é legal. Por isso mesmo, o desvio de poder comprova-se por meio de indícios; são os sintomas a que se refere Cretella Júnior (1977: 209-210):

          a)a motivação insuficiente;

          b)a motivação contraditória;

          c)a irracionalidade do procedimento, acompanhada da edição do ato;

          d)a contradição do ato com as resultantes dos atos;

          e)a camuflagem dos fatos;

          f) a inadequação entre os motivos e os efeitos;

          g)o excesso de motivação".

[201]

          O mesmo J. Cretella Júnior [202] com base nas decisões do Conselhos de Estado francês e italiano e na doutrina desses dois países, relaciona os indícios ou sintomas suficientes à anulação do ato administrativo:

          "(...) ‘contradição do ato com atos posteriores’; ‘contradição do ato com atos anteriores’; ‘motivação exagerada’; ‘motivação contraditória’; ‘motivação insuficiente’; ‘alteração dos fatos’; ‘ilogicidade manifesta’; ‘manifesta injustiça’; ‘disparidade de tratamento’;‘derrogação de norma interna’; ‘precipitação com que o ato foi editado’; ‘inexistência, de fato, dos motivos apresentados pelo administrador para justificar a posição tomada’; ‘desigualdade de tratamento dispensada aos interessados’; ‘caráter sistemático de certas proibições’; ‘caráter geral atribuído a medida que deveria permanecer particular’; ‘circunstâncias locais que antecederam a edição do ato’; ‘feixe convergente de indícios’."

          Existe uma enorme dificuldade na obtenção de provas do desvio de poder. Como o ato administrativo tem presunção de veracidade e legitimidade, o ônus da prova recai sobre aquele que contesta os fatos. O administrador, ao cometer o desvio de poder, encobre sutilmente os reais motivos do ato, dificultando um julgamento objetivo.

          No mesmo sentido, Waline:

          "Fácil é compreender que quando o administrador usa os poderes discricionários de que é detentor para fim nefando, não será ingênuo que ele vá confessá-lo ou deixar vestígios palpáveis de sua conduta. O administrador disfarça, então, os motivos verdadeiros do ato praticado e apresenta oficialmente um pretexto legal. Trata-se de desmascarar o embuste, o que nem sempre é fácil." [203] (Grifado no original).

          Os documentos que instruem o ato administrativo constituem a principal fonte de prova do desvio de poder. São aceitas, porém, com mais reservas, as provas testemunhais e indiciárias. [204]

          Não bastasse a dificuldade de se provar o desvio de poder, os tribunais se limitam a julgar a legalidade do ato administrativo, não verificando o mérito. Ocorre que a análise do desvio de poder traz em si uma carga subjetiva, pois tenta-se avaliar a intenção do agente. Esse elemento psicológico situa-se numa área nebulosa de apreciação pelo judiciário. [205]

          Extraímos de uma sentença do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, TC – 3553/217/93 – Apartado, trecho que espelha em que circunstâncias ocorreria desvio de finalidade:

          "(...) o fato único, pois, de a Resolução ter sido editada após o pleito de 1992, não constitui ofensa à Constituição Federal, nem sequer se caracteriza como índice seguro da ocorrência de desvio de finalidade. Os atos normativos e os administrativos possuem por benefício a presunção de legalidade. Vale dizer, os vícios que lhe possa comprometer a validade jurídica precisam ser demonstrados, só se admitindo a interferência quando presentes, de modo insofismável, os indícios denunciadores do desvio de poder. E no caso concreto, nem uma nem outra situação se coloca de forma objetiva...". (Grifos nossos).

          Nos países como a França e a Itália, onde existem tribunais especializados em contencioso administrativo, o desvio de poder é reconhecido pela análise severa dos indícios ou sintomas, que lhes fornecem elementos para as decisões. O desvio de poder é diagnosticado. No Brasil, onde impera a unicidade jurisdicional, o desvio de poder é mais intuído, através de prova indireta, refletida nos indícios aqui e acolá, denunciados pelo prejudicado e apreciadas pelo juiz. [206]

          4.5. Efeitos do Ato Executado com Abuso de Poder

          A Lei 4717, de 29 de junho de 1965, que regula a Ação Popular determina que o desvio de finalidade enseja a nulidade do ato administrativo e caracteriza-se quando o "agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explicita ou implicitamente, na regra de competência" (art. 2º, "e" e parágrafo único, "e"). Vejamos o teor da Lei:

          Da ação popular

          "Art.

1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.

          Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:

          a) incompetência;

          b) vício de forma;

          c) ilegalidade do objeto;

          d) inexistência dos motivos;

          e) desvio de finalidade.

          Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:

          a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou;

          b) o vício de forma consiste na omissão ou da observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato;

          c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo;

          d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;

          e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.

          Art. 3º Os atos lesivos ao patrimônio das pessoas de direito público ou privado, ou das entidades mencionadas no art. 1º, cujos vícios não se compreendam nas especificações do artigo anterior, serão anuláveis, segundo as prescrições legais, enquanto compatíveis com a natureza deles." (Grifos nossos).

          Assim, os atos administrativos cometidos com desvio de poder ou de finalidade são nulos, com efeitos "ex-tunc".

          A anulação é a declaração de invalidade de um ato administrativo ilegítimo ou ilegal, feita pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário. [207]

          Segundo o ensinamento de Hely Lopes Meirelles,

          "O conceito de ilegalidade ou ilegitimidade, para fins de anulação do ato administrativo, não se restringe somente à violação frontal da lei. Abrange não só a clara infringência do texto legal como, também o abuso, por excesso ou desvio de poder, ou por relegação dos princípios gerais do Direito. Em qualquer dessa hipóteses, quer ocorra atentado flagrante à norma jurídica, quer ocorra inobservância velada dos princípios do Direito, o ato administrativo padece do vício de ilegitimidade e se torna possível de invalidação pela própria Administração ou pelo Judiciário, por meio de anulação.

          A ilegitimidade, como toda fraude à lei, vem quase sempre dissimulada sob as vestes da legalidade. Em tais casos, é preciso que a Administração ou o Judiciário desça ao exame dos motivos, disseque os fatos e vasculhe as provas que deram origem à prática do ato inquinado de nulidade. Não vai aqui nessa atitude qualquer exame do mérito administrativo, porque não se aprecia a conveniência, a oportunidade ou a justiça do ato impugnado, mas unicamente sua conformação, formal e ideológica, com a lei em sentido amplo". [208]

          Os efeitos da anulação dos atos administrativos retroagem às suas origens invalidando as conseqüências passadas, presentes e futuras do ato anulado. Isso porque o ato nulo (ou o inexistente) não gera direitos ou obrigações para as partes; não cria situações jurídicas definitivas. Não admite convalidação. [209]

          4.6. Alterações nos Contratos Administrativos e a Lei de Responsabilidade Fiscal

          A Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, regulamentou importantes disposições sobre as finanças públicas no sentido de estabelecer um perfeito equilíbrio orçamentário-financeiro dos Órgãos da Administração Pública, nos âmbitos federal, estadual e municipal.

          Os grandes objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal são evitar déficits orçamentários (despesa maior que receita em um período de 12 meses) e reduzir dívidas (déficit orçamentário, não pago, acumulado em sucessivos anos civis).

          A Lei de Responsabilidade Fiscal trouxe algumas implicações para a realização dos processos licitatórios e para as alterações dos contratos administrativos:

          A Administração precisa, para gerar novas despesas, estimar o custo dessa iniciativa por três anos, bem como declarar que há dotação suficiente para garantir a atividade pretendida (art. 16, I e II, Lei de Responsabilidade Fiscal). As normas deste artigo constituem condição prévia para empenho e licitação de serviços, fornecimento de bens ou execução de obras.

          Se não atenderem àqueles dois requisitos, as novas despesas serão tidas como não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público (art. 15, Lei de Responsabilidade Fiscal).

          As despesas devem estar previstas no Plano Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária Anual.

          Para a Lei de Crimes Fiscais, Lei nº 10.028, sancionada pelo Presidente da República em 20 de outubro de 2000, já publicada, constitui delito contra as finanças públicas a ordenação de despesas não autorizadas (Pena de Reclusão, de 1 a 4 anos).

          Outra implicação diz respeito às condições para inscrever as despesas em Restos a Pagar, despesa empenhada, mas não paga até o fim do exercício financeiro, até 31 de dezembro. Assim, nessa data, as despesas do exercício, não pagas precisarão estar, todas elas, amparadas no Ativo Financeiro (contas: Caixa e Bancos). Em outras palavras, as dívidas deixadas para o ano seguinte deverão ter o correspondente dinheiro em caixa para pagá-las.

          No derradeiro ano de gestão, as restrições da Lei Fiscal vão ainda mais longe. Nos últimos oito meses (maio a dezembro), não se poderá assumir despesa sem lastro financeiro, mesmo que ela se estenda pelo exercício seguinte (artigo 42, Lei de Responsabilidade Fiscal).

          Para o projeto de lei de crimes fiscais, constitui delito contra as finanças públicas a inscrição irregular de despesas em Restos a Pagar (Pena de Reclusão, de 6 meses a 2 anos, Lei 10.028 de 19/10/2000).

          As alterações nos contratos administrativos, previstas no art. 65 da Lei de Licitações, também sofrem o impacto da Lei de Responsabilidade Fiscal, na medida em que os aumentos decorrentes de alterações no contrato devem ser compensados com o corte de outras despesas ou então com o correspondente aumento das receitas.

          Podemos concluir que, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, vigente desde maio de 2000, o Administrador terá que se adaptar a uma nova realidade das finanças públicas. A criação e expansão de despesas deverão estar em consonância com o equilíbrio das contas. A negligência, os erros e a falta de planejamento na condução das licitações e dos contratos administrativos ensejarão as punições legais.

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Sobre os autores
Paulo Halfeld Furtado de Mendonça

bacharel em Direito e em Engenharia Civil, analista judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, pós-graduado em Direito Processual Civil e em Engenharia de Segurança do Trabalho

Pascoal Roberto Veneroso

bacharel em Direito e em Administração de Empresas, auditor fiscal da Receita Federal

Rosemary Santos Reis

bacharela em Direito, servidora concursada de Prefeitura Municipal de São José dos Campos, membro de Comissão Permanente de Licitações

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Paulo Halfeld Furtado ; VENEROSO, Pascoal Roberto et al. Considerações sobre o desvio de poder nas alterações dos contratos administrativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 917, 6 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7808. Acesso em: 19 abr. 2024.

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