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O Acordo e a Convenção de Schengen

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08/01/2006 às 00:00
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1.4 - Cooperação Judiciária

O já referido aumento do terrorismo, da criminalidade e da droga, foram razões imediatas para no âmbito de Schengen não se poder conceber um sistema de supressão de controlos nas fronteiras, que não viesse regular conjuntamente a cooperação judiciária e policial.

Como no âmbito da U.E., os seus estados membros consideram na altura que as questões relativas à polícia, luta contra a criminalidade e o controlo da entrada dos estrangeiros estava dependente da sua soberania, não pôde a União intervir nesses domínios. Assim, foi no grupo Schengen que estas questões foram estudadas e desenvolvidas.

Este tema da cooperação judicial encontra-se regulado no acordo de Schengen nos artigos 48º a 69º, que está incluído no Título III, do qual faz parte também a cooperação policial.

Como já se verificou no capítulo anterior o Acordo de Schengen trata a matéria da cooperação judiciária e da cooperação policial por vezes sem uma distinção perfeita, porque algumas das matérias são comuns aos dois tipos de cooperação. Tentando, no entanto, manter a separação possível, irei apresentar as soluções encontradas por Schengen para esta matéria. No entanto é de realçar desde logo que, enquanto que na questão da cooperação policial Schengen criou um sistema original, o mesmo não se poderá dizer das disposições relativas à cooperação judiciária. Como afirma o Prof. Julien Schutte, "in contrast to the chapter on police co-operation, the following chapters on mutual legal assistance, extradition and the enforcement of criminal sentences are supplementary to existing conventions in these matters, i.e. of the Council of Europe and the Benelux, and deal with points of modest importance", e " compared to the existing Council of Europe and the Benelux Conventions, the previsions of the Implementing Convention cannot be qualified as spectacular inovations" [85].

Tradicionalmente e na linha das convenções do Conselho da Europa, podem-se identificar quatro componentes da cooperação judicial: transferência de processos, extradição, assistência mútua e execução de sentenças estrangeiras.

A transferência de processos não está prevista nem regulada no Acordo ou na Convenção de Schengen, e apenas na declaração comum assinada junto com a Convenção se refere que as partes contratantes irão futuramente trabalhar nessa área. No entanto ainda não há resultados nessa área e é realístico pensar que a transferência, por exemplo, de procedimentos criminais ou civis será muito difícil, desde logo porque teria de haver uma transferência de poderes de soberania de cada estado para outro estado.

Os outros três componentes da cooperação judicial estão presentes no Acordo e na Convenção de Schengen.

O Acordo de Schengen, nos seus artigos 8º (tráfico ilícito de estupefacientes), 9º (luta contra a criminalidade, tráfico de estupefacientes e de armas, fraude fiscal e aduaneira e contrabando) e 19º (harmonização de legislação em matéria de estupefacientes, armas e explosivos) contribuem para a cooperação judicial. Nomeadamente o artigo 19º, ao prever a harmonização das legislações, está a criar condições para uma melhoria dos sistemas de cooperação judicial, ou o artigo 8º que, ao prever uma coordenação no combate ao tráfico ilícito de estupefacientes, para esse resultado ser atingido terá também de incluir uma cooperação judicial.

A única disposição do Acordo de Schengen que expressamente se refere à cooperação judiciária é a alínea b) do artigo 18º, quando dispõe que "a análise das eventuais dificuldades surgidas na aplicação dos acordos de entreajuda judiciária internacional e de extradição, a fim de encontrarem soluções mais adequadas à melhoria entre as partes neste domínio". Este artigo 18º é considerado a base das disposições que posteriormente foram criadas nesta matéria na Convenção de Schengen, o que é referido como origem da cooperação judicial que foi pretendida e planeada desde o Acordo de Schengen [86].

A Convenção de Schengen trata desta matéria em diversas disposições. A entreajuda judiciária em matéria penal é tratada no Título III, capítulo II, a aplicação do princípio ne bis in idem no capítulo III, a extradição no capítulo VI e a transmissão de execução de sentenças penais no capítulo VII.

1.4.1 - Entreajuda judiciária em matéria penal

É de notar que artigo 48º (primeiro artigo do capítulo II), refere que as disposições em matéria de entreajuda judiciária previstas na Convenção se destinam a completar a Convenção Europeia de Entreajuda Judiciária em matéria penal, de 20 de Abril de 1959, bem como nas relações entre as partes contratantes membros da União Económica do Benelux, o capítulo II do Tratado do Benelux de Extradição e de Entreajuda Judiciária em matéria penal, de 27 de Junho de 1962, tal como alterado pelo protocolo de 11 de Maio de 1974, e facilitar a aplicação dos referidos acordos.

Sobre a entreajuda judiciária em matéria penal verificamos que a Convenção pretendeu alcançar quatro objectivos.

Em primeiro lugar, estender o âmbito das matérias nas quais a entreajuda em matéria criminal se pode aplicar. O artigo 49º dispõe que, para além da entreajuda judiciária "geral", haverá uma extensão no que toca a matérias dos casos aí descritos. São aí descritas seis situações em que deverá ser concedida a entreajuda judiciária, situações essas que não estão previstas nas duas convenções referidas no artigo 48º, vindo assim esta Convenção, além de completar, a facilitar e a alargar o âmbito da entreajuda judiciária. Quatro dessas novas situações têm natureza penal, uma tem natureza processual em casos do foro criminal e outra é aplicável nas acções cíveis conexas com acções penais.

Em segundo lugar, o artigo 50º vem permitir a entreajuda judiciária em matérias fiscais. A questão é tanto mais delicada quanto se sabe da importância que os estados atribuem às questões fiscais e da dificuldade que têm em ceder a outro estado parte do poder que têm nessas matérias. Mas este artigo apenas compromete as partes a conceder entreajuda judiciária em matéria de evasão relativa a alguns impostos indirectos (imposto sobre consumos específicos, imposto sobre o valor acrescentado e imposto aduaneiro). Durante as negociações pretendia-se um alargamento desta entreajuda a todas as infracções fiscais, mas a oposição do Luxemburgo tornou esta pretensão impossível [87].

Em terceiro lugar, o artigo 51º indica as condições necessárias para a admissibilidade de cartas rogatórias para efeitos de busca e apreensão judicial. São requisitos com pouca exigência, sendo o principal requisito o de o facto que originou a carta rogatória ter de ser punível, segundo o direito de ambas as partes contratantes, com uma pena privativa de liberdade ou medida de segurança restritiva da liberdade no máximo de pelo menos seis meses. No entanto no mesmo artigo permite-se que sejam admissíveis essas cartas rogatórias, mesmo quando numa das partes contratantes os factos sejam punidos como infracções a regulamentos processados por autoridades administrativas cujas decisões possam ser objecto de recurso perante um órgão jurisdicional. Na prática, as condições exigidas são relativamente fáceis de verificar, pois não exigem que a ofensa tenha a mesma natureza legal nos diferentes estados.

Em quarto lugar, os artigos 52º e 53º referem as regras em matéria de processo de entreajuda judiciária e são regras que apontam para uma simplificação processual. Assim os pedidos para entreajuda judiciária podem ser efectuados directamente pelas autoridades judiciárias sem ser necessário passar pelos Ministérios da Justiça de cada parte contratante. O artigo 52º permite a possibilidade de enviar peças processuais directamente pelo correio a pessoas que se encontram no território de outra parte contratante; no entanto prevê também que esse cidadão não pode ficar sujeito a qualquer sanção ou medida de coacção por não ter comparecido após uma notificação enviada pelo correio. Resulta daqui uma limitada utilidade desta disposição, que só funcionará quando voluntariamente o cidadão em causa se apresente no território da parte requerente e aí seja regularmente notificado de novo.

Verifica-se portanto que este sistema de entreajuda judiciária não criou um sistema orgânico e definitivo de normas, mas que vai continuar a evoluir.

1.4.2 - Princípio ne bis in idem

A aplicação do princípio ne bis in idem está regulada nos artigos 54º a 58º da Convenção. Tanto este princípio como o da transmissão de execução de sentenças penais não estão expressamente previstos na alínea b) do artigo 18º do Acordo de Schengen e encontram-se já fora do capítulo referente a entreajuda judiciária na Convenção de Schengen.

Noutros acordos internacionais nestas matérias não se verifica a inclusão deste princípio nas suas obrigações. No entanto a maior parte das legislações europeias consideram o princípio ne bis in idem, como um princípio básico das suas leis criminais [88]. Verifica-se assim que este princípio será facilmente aceite pelos diferentes estados, pois vai ao encontro das suas disposições legais.

O artigo 54º define o princípio ne bis in idem [89], e o artigo 55º indica os três casos em que os estados na altura da ratificação desta convenção têm possibilidade de declarar que não pretendem ficar vinculados pela aplicação deste princípio, que são: quando os factos a que se refere a sentença estrangeira tenham ocorrido: no todo ou em parte no seu território (excepto se os factos ocorreram em parte no estado em que a sentença é proferida); quando constituam crime contra a segurança do estado ou outros interesses igualmente essenciais e quando tenham sido praticados por funcionário desse estado em violação dos deveres desse estado.

O artigo 57º prevê no entanto uma situação em que, para evitar que uma pessoa seja julgada pelos mesmos factos em estados diferentes, haverá uma troca de informações entre as autoridades judiciárias, troca essa que deverá ser efectuada o mais rapidamente possível; no caso de a acção judicial já ter sido intentada de acordo com o artigo 56º, poderá ser descontada na sanção que vier a ser aplicada o período de privação de liberdade já cumprido no território da outra parte contratante. Refere o mesmo artigo que outras sanções diferentes das privativas de liberdade, se já cumpridas, serão tidas em conta na aplicação da sanção no outro estado que também é parte contratante.

O princípio ne bis in idem que está previsto no capítulo relativo à cooperação judiciária, é fundamental para a cooperação policial e quanto mais forte for esta cooperação mais importante é este princípio. Esta cedência que em resultado deste princípio os estados fazem uns aos outros, resulta de uma confiança que têm que ter no sistema judicial do outro estado, mesmo que seja diferente do seu.

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No entanto, na prática os estados pretendem continuar a julgar as pessoas no seu território, mesmo que já tenham sido julgadas pelos mesmos factos no território de outra parte contratante, não aplicando assim o princípio ne bis in idem. A própria Alemanha ainda não assinou o acordo de 1987 entre os estados membros da União Europeia relativa à aplicação do princípio ne bis in idem. Para que este princípio funcione tem de haver perfeito respeito pelas sentenças emitidas em cada estado.

1.4.3 - Extradição

Em matéria de extradição [90], fica desde logo bem claro que estas disposições têm um carácter subsidiário em relação quer à Convenção Europeia de Extradição de 13 de Setembro de 1957, bem como às disposições nesta matéria reguladas no Tratado do Benelux para os seus estados membros, ou ainda quaisquer outros acordos bilaterais de extradição existentes entre algumas das partes contratantes [91].

O objectivo de expansão dos casos de extradição pode-se verificar no artigo 63º, ao permitir que também as ofensas à lei fiscal possam ficar sujeitas à extradição. Este artigo tem grande importância, pois atribui um carácter obrigatório à extradição de pessoas em relação às quais corram processos relativos a impostos sobre consumos específicos, impostos sobre o valor acrescentado e impostos aduaneiros. Apesar do alargamento do âmbito da extradição, todo este esquema é baseado em soluções já existentes.

No entanto o artigo 64º traz uma inovação, ao criar um novo sistema para os pedidos de detenção provisória, diferente dos sistemas existentes nas anteriores convenções, que conjugado com o artigo 95º para o qual remete, ao utilizar as informações do S.I.S., vai facilitar a comunicação e permitir melhores respostas para os pedidos de detenção provisória, bem como cria novas regras substantivas relativas a esta matéria. Estas alterações verificam-se por exemplo no parágrafo 3º do artigo 95º ao prever regras específicas que os estados deverão usar nas detenções provisórias no seu território, quando normalmente este tipo de regras não eram reguladas pelas convenções de extradição, mas sim pela legislação de cada estado. Também na alínea 6º do mesmo artigo são previstas regras que permitem aos estados ter diferentes comportamentos conforme se trate de cidadãos nacionais ou não nacionais (favorecendo os cidadãos nacionais), o que é tradicionalmente matéria reservada aos estados.

Os artigos 65º e 66º consagram uma simplificação de processos, ao criarem um sistema simples para os pedidos de extradição. A via diplomática normalmente usada para os pedidos de extradição é aqui desnecessária [92], o que torna os pedidos mais rápidos pois são enviados directamente de um ministério para o ministério competente do outro estado. O artigo 66º prevê a possibilidade de extradição, sem um processo formal desde que a pessoa reclamada o consinta nas condições previstas nesse artigo [93].

Foi portanto adaptado um sistema baseado no sistema criado pela Convenção Europeia de Extradição de 13 de Setembro de 1957, mas em que foram introduzidas particularidades que vieram simplificar o processo de extradição e permitir uma maior cooperação judiciária, o que é um importante contributo para assegurar uma melhoria da segurança na U.E.

1.4.4. - Transmissão da execução de sentenças penais

Os artigos 67º a 69º regulam a transmissão da execução de sentenças penais.

Como no caso da extradição, as disposições de Schengen nesta matéria visam completar uma convenção europeia já existente, no caso a Convenção do Conselho da Europa de 21 de Março de 1983 sobre a transferência de pessoas condenadas.

Nos artigos 68º e 69º está previsto um sistema que permite que, no caso de um nacional de outro estado membro, que esteja a cumprir uma pena privativa de liberdade ou uma medida de segurança restritiva de liberdade por uma sentença passada em julgado [94], num estado que não o seu, se conseguir escapar do estado onde estava a cumprir a pena, para o seu estado de origem, o estado onde a pena estava a ser cumprida pode pedir ao estado da nacionalidade do fugitivo que retome a execução da pena ou medida de segurança.

Mas as disposições dos artigos 68º e 69º, são inovadoras porque permitem que esta transferência se faça independentemente do consentimento da pessoa contra a qual foi declarada a pena ou medida de segurança, num estado diferente do estado onde foi julgado e condenado. Esta possibilidade já existia na Convenção Europeia sobre Validade Internacional dos Julgamentos Criminais, mas entre os estados Schengen só a Holanda já ratificou esta convenção. Nota-se portanto mais uma vez que a convenção de Schengen tenta ir mais além que as disposições legais já existentes e avança com soluções inovadoras e integradas num sistema que as permite realizar.

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Sobre o autor
Eugénio Pereira Lucas

professor adjunto da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria - Instituto Politécnico de Leiria em Fátima (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUCAS, Eugénio Pereira. O Acordo e a Convenção de Schengen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 919, 8 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7809. Acesso em: 23 dez. 2024.

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