2.FILHO CONCEBIDO "POST MORTEM": inseminação artificial e o direito de suceder na reprodução assistida
É notória a aceitação da inseminação artificial no âmbito social já que o que se busca é a satisfação do casal na procriação da espécie.
O que se pretende com esse estudo é a análise do direito de herança do filho concebido após a morte do pai doador.
A Resolução n° 1358/92 do Conselho Federal de Medicina impõe ao casal a manifestação expressa no que diz respeito à criopreservação (congelamento) dos embriões.
Em contrapartida, surge o Enunciado 106 da I Jornada de Direito Civil do CJF/STJ que exige ainda a comprovação de viuvez da mulher, em observância ao princípio da dignidade humana, ao passo que uma criança será gerada e criada sem pai, sendo para isso, necessária a outorga anterior à morte do cônjuge.
A doutrina majoritária representada por Bruno Torquato de Oliveira Naves, Silvio de Salvo Venosa, Paulo Bonavides, entre outros, reconhece que se o cônjuge consentiu na criopreservação dos gametas, é porque deseja ser pai um dia, logo, o que deve prevalecer será o melhor interesse da criança (havida após a morte do genitor) no que diz respeito aos seus direitos e as condições da mãe em gerar aquele ser sem a figura paterna.
O direito à sucessão está garantido tanto na Constituição Federal (art. 5°, inciso XXX) quanto no Código Civil de 2002, em seus arts. 1.784 e 1.790. Sendo assim, o nascituro tem capacidade sucessória, mas se este for concebido após a morte do pai (inseminação artificial homóloga) somente poderá, em tese, participar da herança sob a forma de testamento, nos termos do art. 1.799, observado o prazo estabelecido no art. 1.800 §4° do CC/2002 para implementação do sêmen do cônjuge falecido. Ou seja, no caso de inseminação artificial, o filho deve ser concebido até dois anos da morte do pai. Essas crianças são consideradas uma prole eventual, sendo aqueles ainda não concebidos na abertura da sucessão (art. 1.799 e 1.800 do CC/2002).
Em se tratando da posse sucessória em nome de filho concebido por inseminação homóloga se tem a argumentar que seu reconhecimento pode ocorrer pela sucessão testamentária, com base no art. 1.799, inciso I, do CC/2002, por meio do instituto denominado fideicomisso: “Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:
I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”[...].
O Código Civil de 2002 estabelece uma espécie de substituição testamentária chamada fideicomisso, previsto nos arts. 1.951 a 1.960 do CC/02. Para Diniz (2005, p. 341) a substituição testamentária ou fideicomissária consiste:
[...] na instituição de herdeiro ou legatário, designado fiduciário, com a obrigação de, por sua morte, acerto tempo ou por condição preestabelecida, transmitir a outra pessoa, chamada fideicomissário, a herança ou legado. Se incidir o fideicomisso em bens determinados, ter-se-á fideicomisso particular, e se assumir o aspecto de uma herança, abrangendo a totalidade ou uma quota parte do espólio, será fideicomisso universal. (DINIZ, 2005, p.341)
Sendo assim, o testador substitui o herdeiro ou legatário para que receba o bem caso estes não queiram ou estejam impossibilitados de recebê-la.
Nos casos de filho concebido por inseminação artificial "post mortem", o testador nomeia um fiduciário para que este possa receber a herança por testamento e depois transmiti-la ao fideicomissário. O fideicomissário (filho concebido "post motem") após a morte do testador, ou condição estipulada receberá do fiduciário a propriedade.
São figuras presentes no fideicomisso: o fideicomitente (o morto/testador); o fiduciário (amigo/qualquer pessoa); o fideicomissário (concepturo/filho concebido "post mortem"); fideicometido (a propriedade).
Nas lições de Tartuce (2014, p. 1443), este preleciona que:
[...] o fideicomisso não pode ser instituído por contrato, sob pena de infringir a proibição do pacto sucessório, constante do art. 426, do CC. Nessa linha, na V Jornada de Direito Civil, aprovou-se o seguinte enunciado doutrinário: "O fideicomisso, previsto no art. 1.951 do Código Civil, somente pode ser instituído por testamento" (Enunciado n. 529) (TARTUCE, 2014, p. 1443).
O fiduciário detém uma propriedade resolúvel, logo o fideicomisso é temporário.
A sucessão testamentária é ato personalíssimo, unilateral, e decorre da manifestação de última vontade. Sucede que é sabido que a população brasileira não tem o costume de deixar testamento. Delfim (2008, p. 218) explica essa afirmação:
[...] como não é costume do brasileiro deixar testamento, mas sim seguir a sucessão legítima, isso tem que ser levado em conta no momento de decidir o caso, para que o filho havido pela mencionada técnica de reprodução assistida não seja prejudicado em relação aos demais herdeiros do falecido.
Em que pese a manifestação de vontade quando da criopreservação de gametas, deve ser considerada também de livre vontade a sucessão de bens ao filho ainda não gerado.
Diante da falta de regulamentação específica para a sucessão do filho concebido pela técnica de inseminação artificial é que os doutrinadores do Direito das Sucessões dividem seu posicionamento.
Hironaka (2009, p. 58) comunga do entendimento de Silmara Juny de Abreu Chinelato, ao dizer que:
[...] o embrião pré implantatório poderá herdar como herdeiro legítimo ou testamentário. Assim, herdará legitimamente se se tratar de fertilização homóloga, isto é, se houver coincidência entre a mãe que o gera e a que gesta, após a sua criopreservação. E poderá herdar testamentariamente, (...) se se tratar de fertilização heteróloga, isto é, se forem diferentes pessoas a doadora do óvulo e a que gesta. (HIRONAKA, 2009, p. 58)
A doutrina majoritária representada por Bruno Torquato de Oliveira Naves, Silvio de Salvo Venosa, Paulo Bonavides, entre outros, defende a possibilidade de sucessão do filho concebido "post mortem" ficando resguardados os direitos na sucessão legítima e testamentária. A doutrina minoritária, que conta com Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, entre outros, defende a possibilidade de sucessão do filho concebido "post mortem" somente a título de herança testamentária.
Outra questão relevante é que a reprodução assistida vem sendo discutida desde a apresentação, pelo Senador Lúcio Alcântara, do Projeto de Lei n° 90/99 (Substitutivo), em maio de 1999 (Anexo I). Tal Projeto visa a adoção de aspectos penais, civis e administrativos no que se refere à reprodução humana assistida, e está dividido por seções, neste sentido: I) Dos princípios gerais; II) Do consentimento livre e esclarecido; III) Dos estabelecimentos e profissionais que realizam a procriação medicamente assistida; IV) Das doações; V) Dos gametas e embriões; VI) Da filiação;VII) Dos crimes; VIII) Das disposições finais.
Para fins de relevância desse estudo, importante destacar que este Projeto merece ser estudado em momento oportuno, principalmente no que diz respeito ao Termo de Consentimento Informado que, embora reconhecido, não garante a certeza da escolha pelos pacientes.
No Brasil existem diversos projetos com o intuito de regulamentar a reprodução assistida, e apenas o que se tem de concreto é a Resolução n° 1957/2010, do Conselho Federal de Medicina, que apenas impõe orientações médicas e éticas para os fins de reprodução assistida.
Ainda, sobre a inseminação artificial, bem pontua Maria Berenice Dias (2013, p. 223):
Com o avanço das técnicas de inseminação artificial, o nexo de causa e efeito entre sexo e reprodução foi afastado. O uso das técnicas de reprodução assistida está normatizado exclusivamente pelo Conselho Federal de Medicina, que não impõe qualquer limitação à orientação sexual dos candidatos.
Como visto, a inseminação artificial pode se dar de forma homóloga ou heteróloga. Nesse trabalho tratar-se-á tão somente da inseminação artificial homóloga, sendo aquela inseminação realizada com material genético de ambos os cônjuges. Como visto, pelo fato de o marido ceder o material genético há a presunção de paternidade, mesmo com o falecimento deste (art. 1.597, inciso III, do CC/2002).
Como se vê, o CC/2002 não regulamenta a reprodução assistida no que se refere aos direitos sucessórios, e sim resolve apenas a questão do reconhecimento de paternidade.
Acerca das implicações jurídicas referente à inseminação artificial homóloga em face do direito de sucessões, o Código Civil carrega duas normas legais que se contrapõem. A primeira é com relação à ausência de norma proibitiva para inseminação "post mortem" (art. 1.597, inciso III - presunção de filiação) e a segunda é com relação ao art. 1.798, que legitima a sucessão às pessoas, nascidas ou já concebidas, ao tempo da morte do cônjuge. O Enunciado 267, da III Jornada de Direito Civil do CJF/STJ faz uma extensão do artigo 1.798 do Código Civil:
A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança.
Sendo assim, os efeitos patrimoniais para o herdeiro (nos casos de filho concebido "post mortem") embora se submetam às regras da sucessão testamentária, face à ausência de regulamentação legal, poderão ainda, se submeterem às regras do Enunciado 267, ou seja, por meio de petição de herança será possível a participação do herdeiro na legítima.
Logo, o que se vê é um confronto entre o princípio da dignidade humana e o princípio da segurança jurídica, de modo que deve haver uma ponderação entre estes. De um lado, a criança havida antes do falecimento de um dos cônjuges pretende ver seus direitos preservados, e de outro, a criança havida "post mortem" vem sendo amparada pelo princípio do melhor interesse da criança. Isso Porque, embora a reprodução assistida seja uma técnica muito utilizada nos dias de hoje, a legislação brasileira não acompanhou a evolução dessa parte da medicina, qual seja, a genética.
A existência de Projetos de Lei tentando regulamentar o tema demonstra a morosidade e descaso do Judiciário. Com isso, a doutrina toma por base os Enunciados de Direito Civil, emitidos pelo Conselho da Justiça Federal, para servirem de orientação para interpretação da legislação vigente.
Alguns princípios constitucionais são de suma importância para a garantia de direitos do filho concebido "post mortem", dentre os quais os mais importantes são: princípio da dignidade humana; princípio da igualdade; princípio da não intervenção e princípio do melhor interesse da criança.
Alexandre de Morais (2003, p. 50) conceitua o princípio da dignidade humana como:
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
O princípio da dignidade humana é considerado o princípio constitucional mais importante, inclusive no Direito de família. Está disposto no art. 1°, inciso III, da CF/1988 e se correlaciona, ainda, com o planejamento familiar, previsto no art. 226, §7°, da CF, que prescreve:
[...] § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. [...]
A doutrina majoritária assevera que o princípio da dignidade humana deve ser aplicado em conjunto com o princípio da máxima efetividade.
Ao pensar em planejamento familiar, independe do número de filhos que se possa ter, o tratamento entre os indivíduos da prole deve ser isonômico, ou seja, não cabe distinção entre estes (art. 1.596 do CC/2002).
Delfim (2008, p. 211) entende do planejamento familiar que:
O planejamento familiar é o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta iguais direitos de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem, ou pelo casal, enquanto no plano governamental, o planejamento familiar deverá ser dotado de natureza promocional, não coercitiva, orientado por ações preventivas e educativas.
Por meio da valorização da dignidade humana é que a igualdade de direitos se manifesta dentro de cada família e em especial entre filhos havidos antes e após a morte do cônjuge.
Outro princípio previsto na Constituição Federal de 1988 é o da igualdade pelo qual "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)" (art. 5°, caput, CF/88). E ainda, art. 3°, inciso IV: "Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação".
A Declaração Universal dos Direitos Humanos também contemplou o princípio da igualdade, nos art. I e II:
Artigo I - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
Artigo II - Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Com isso, o princípio da igualdade prevê tratamento isonômico, ou seja, veda a diferenciação entre os indivíduos.
Sempre que o legislador criar normas, este não poderá afastar o princípio em questão sob pena de se tornar o novo elemento normativo inconstitucional.
O que se pretende mostrar com esse princípio é que deve haver nos casos de inseminação artificial a igualdade absoluta de direitos entre os filhos, independente da forma com o qual foram concebidos e o momento da concepção.
O princípio da não intervenção tem previsão na Constituição Federal, e no caso do tema desse trabalho, está previsto no art. 34, inciso VII, alínea "b": “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: [...] VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: [...] b) direitos da pessoa humana”; [...]
Para o Direito de Família, a não intervenção, também reconhecida como princípio da liberdade tem previsão no art. 1.513 do Código Civil: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”.
Logo, as pessoas têm liberdade de decidir a formação familiar que melhor lhes convier, ainda que monoparental se for o caso, ou até mesmo que a fecundação ocorra "post mortem" do pai.
O princípio do melhor interesse da criança surgiu da observância do ambiente familiar. Segundo esse princípio, aquele de que detém a fragilidade deve ser acolhido e preservado e está previsto no art. 227 da CF/88:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O artigo supra demonstra que o interesse da criança deve ser aplicado de forma ampla, e assim, a proteção da criança e do adolescente acaba por se tornar um preceito de direito fundamental, reconhecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 3° da Lei n° 8069/1990). Isso quer dizer que é direito da criança o reconhecimento da paternidade e o direito à participação na sucessão de bens no caso de inseminação artificial homóloga, como já reconhecido pela doutrina majoritária a isonomia entre os filhos havidos antes ou após a morte do pai.
Mister se faz esclarecer e identificar os efeitos civis da reprodução humana assistida homóloga de acordo com o Código Civil de 2002 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
O art. 1.597 do Código Civil de 2002 esclarece que mesmo com o falecimento do cônjuge, presumir-se-ão concebidos, na constância do casamento, os filhos havidos por fecundação artificial homóloga.
Assim, o que se entende do Código Civil de 2002 é que, ainda que o sêmen seja utilizado após a morte do cônjuge a paternidade deve ser de pronto reconhecida.
O ponto fundamental é que o art. 1.597, inciso III, não tratou dos direitos sucessórios do filho concebido "post mortem", e por isso, a doutrina minoritária entende não ser legítima e lícita a reprodução assistida após a morte do genitor.
Contudo, o art. 1.597 do Código Civil apenas deixa evidente de que não há necessidade de autorização para se presumir a paternidade.
Bernardo e Cunha (2012, p. 04) apud CARDIN e CAMILO (2009) mencionam que a reprodução assistida "post mortem" no direito comparado é proibida em países como Alemanha, Suécia, França e Espanha. De outro modo, a Inglaterra permite a inseminação "post mortem", mas não garante direitos sucessórios à criança, a não ser que o falecido tenha deixado documento expresso manifestando que essa seria sua vontade.