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Fuga do agente e prisão preventiva

31/01/2006 às 00:00
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A fuga que justifica a prisão preventiva é a dotada de "razoável probabilidade" de que o agente pretende ilegitimamente escapar do cumprimento das determinações da Justiça.

            Não são poucos os julgados que admitem que a fuga do agente constitui motivo suficiente para a decretação de uma prisão preventiva. Ou seja: a fuga do acusado acaba militando em seu desfavor "e, por si só, justifica o decreto prisional" (STJ, 5ª Turma, HC 34.149/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, DJ 18/10/04; RHC 15.870/SP, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 2/8/04; HC 31.275/GO, rel. Min. Felix Fischer, DJ 2/8/04 e HC 33.380/CE, rel. Min. José Arnaldo, DJ 30/8/04). Inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a sua 2ª Turma, embora com vacilações diante das peculiaridades do caso concreto, tem reafirmado a mesma idéia (HC 81.468-9).

            Mas para que a fuga constitua fundamento para a prisão preventiva, duas exigências são impostergáveis: (a) que haja inequívoca comprovação do estado de fuga e, de outro lado, (b) que essa fuga seja ilegítima. Vejamos:

            A situação fática da fuga, para justificar a prisão preventiva, requer naturalmente comprovação fidedigna. Jamais, portanto, pode ser fundada em abstratos automatismos (crime grave = perigo de fuga) ou mesmo em presunções decorrentes de equações supostamente legitimantes da prisão (crime hediondo = perigo de fuga). Em razão da sua excepcionalidade, não se coaduna a prisão cautelar com presunções ou automatismos. Nesse sentido vem decidindo nossos Tribunais, especialmente o STF (1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, HC 83.943/MG, DJ 27/04/04).

            A fuga do agente exige, destarte, fatos concretos, reveladores não só da própria situação de fuga senão também de uma atitude obstrucionista à aplicação da lei penal. A situação concreta do sujeito que está vendendo todos os seus bens para fugir do país e, desse modo, impedir um provável ou praticamente certo encarceramento, sem sombra de dúvida justifica a prisão preventiva. O juiz, entretanto, no momento da decretação da prisão, não pode se valer para isso de meras conjecturas ou mesmo do argumento da gravidade do fato.

            Gravidade do fato, quantidade da pena que possa vir a ser imposta etc. são dados abstratos que não se compatibilizam com a (indispensabilidade da) exigência da motivação concreta. A propósito, o preclaro Ministro Celso de Mello, no HC 68.202-2, em voto condutor nesse v. aresto unânime, destacou ser nulo o ato da prisão que não apresenta motivação decisória adequada (RTJ 135/686). Não diverge desse entendimento a posição do Colendo Superior Tribunal de Justiça. Confira: 6ª Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, RHC 17.762/SP, DJ 19/09/2005; 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Medina, HC 40.975/SP, DJ 12/08/2005.

            O que deve sempre ficar evidenciado no decreto de uma prisão cautelar é o periculum libertatis, ou seja, a demonstração de que o sujeito, em liberdade, apresenta concretamente risco para a garantia da ordem pública ou para a conveniência da instrução criminal ou para o cumprimento de eventual pena. Aliás, consolidada jurisprudência, especialmente do Superior Tribunal de Justiça, veementemente enfatiza o que acaba de ser destacado (Rel. Min. Felix Fischer, HC 32.640/SP, DJ 31.05.2004).

            Particularmente no que se relaciona com a fuga do agente cabe exigir, por conseguinte: (a) comprovação de que já aconteceu (situação já consolidada) e que foi ilegítimo o distanciamento do agente do distrito da culpa; (b) ou a constatação real e efetiva de uma situação "in itinere" (o sujeito já está vendendo seus bens, v.g.) ou, ao menos, (c) um juízo de prognóstico (frente a uma situação de fuga futura) fundado em indícios concretos e seguros, ou seja, reais e não imaginários (nesse sentido, por todos, veja a doutrina de BEVERE, Antonio, Coercizione personale: limiti e garanzie, Milano: Giuffrè, 1998, p. 93 e ss.).

            Não se exige a constatação inequívoca de uma "certeza" ou "quase certeza" de que o sujeito está fugindo para o exterior ou para local distante não conhecido. Não se chega a tanto. O fundamental e necessário é que o decreto coercitivo aponte uma situação de fuga real e ilegítima, não meramente imaginária. Um claro e inequívoco intuito obstrucionista, que visa a impedir o cumprimento de eventual pena de prisão. E tudo isso resulta patente do exame detido da personalidade do agente, das suas condições pessoais, profissão, existência ou não de família no local dos fatos etc.. Somente fatos objetivos, em síntese, é que justificam uma prisão.

            Porque somente eles é que podem confluir para a ilação de que o sujeito se acha "impulsionado para a fuga". Não bastam suposições, sim, comportamentos materiais concretos, exteriorizadores do distanciamento do agente do distrito da culpa. Precisamente porque a prisão cautelar é medida indiscutivelmente excepcional, sua existência deve estar indissoluvelmente coligada com uma motivação concreta da sua absoluta necessidade (rel. Min. Celso de Mello – HC 80.719, DJ 28.09.01).

            Ora, se "a prisão preventiva deve ser considerada exceção, já que, por meio desta medida, priva-se o réu de seu jus libertatis antes do pronunciamento condenatório definitivo, consubstanciado na sentença transitada em julgado", só pode ser decretada quando dados concretos extraídos dos autos revelam a sua necessidade (rel. Min. Felix Fischer, HC 32.640/SP, DJ 31.05.2004). Mesmo que se trate de caso grave (tráfico de entorpecente, por exemplo), é imperiosa a explicitação dos motivos concretos da prisão (2ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, HC 80.531, DJ 24/8/01).

            Sintetizando: somente condutas reais, concretas e, sobretudo quando proativas (compra de bilhete de avião, encerramento de contas bancárias, dispensa de empregados, fechamento de empresa, venda de bens, preparação de bagagens, contratação de empresa de mudanças etc.), é que revelam a inequivocidade do intuito de fuga.

            E cabe ao juiz, inclusive por imposição constitucional (CF, art. 93, IX), fazer a demonstração desses dados objetivos ou desses comportamentos materiais ou proativos. Do contrário seu decreto coercitivo carece de fundamentação objetiva, ou seja, não é válido, não é apto a produzir efeito no mundo jurídico. A mera reprodução do texto legal, de outro lado, não constitui motivo bastante para a decretação da prisão preventiva. Nesse sentido vem decidindo o Colendo Superior Tribunal de Justiça: (STJ, 5ª Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, HC 41.651, DJ 29/08/2005).


            Toda jurisprudência que admite a prisão preventiva no caso de fuga versa, claramente, sobre a fuga ilegítima (fuga obstrucionista, fuga que pretende garantir a impunidade do agente etc.). Quando se trata de fuga legítima, sobretudo de fuga a posteriori, que acontece no contexto de uma situação de legítima defesa diante de um decreto coercitivo que é tido como abusivo, a situação é bem diferente.

            A fuga do agente depois da emissão de um decreto coercitivo pode ser legítima ou ilegítima. É ilegítima quando revela intuito obstrucionista. Isso fica patente quando o sujeito foge para não ir para a cadeia, para que a lei penal não seja cumprida, para garantir sua "impunidade" etc.. Distinta, bem distinta, é a situação de quem foge e imediatamente exterioriza seu desejo de apresentação, de cumprimento de seus deveres processuais, além de apresentar sua irresignação com a prisão decretada.

            A fuga ou a "situação de foragido", portanto, por si só, não serve para a decretação da prisão preventiva. Mister se faz, sempre, examinar a sua natureza, as suas circunstâncias e seus motivos. Isoladamente considerada não constitui motivo para a decretação do estado coercitivo. Aliás, como tem, reiteradamente, decidido o Colendo Superior Tribunal de Justiça, "A fuga do réu não justifica, por si só, o decreto, tampouco o fato de se tratar de crime grave" (Rel. Min. Nilson Naves, HC 38.652/PI, DJ 01/08/2005).

            Somente a fuga antecedente (ao decreto da prisão) e ilegítima é que autoriza a prisão preventiva. Em outras palavras: a fuga do agente que justifica a medida cautelar pessoal mais extremada do Direito processual penal (a prisão preventiva) é a que se coloca em posição de antecedência em relação ao decreto de prisão, nunca a fuga "a posteriori". De outro lado, mesmo que seja precedente, é preciso sempre analisar a sua natureza, isto é, se é ilícita (ou não), se é legítima (ou não). Fuga legítima, após a decretação de uma arbitrária prisão temporária, por exemplo, jamais autoriza a prisão preventiva.

            A fuga contra o ato prisional inválido representa direito legítimo e, como tal, não pode ser invocado para estribar o decreto de prisão. Nesse sentido: STJ, HC 16.799-GO, rel. Min. Paulo Medina: "A posterior fuga do réu, conseqüente do decreto prisional, não pode ser aproveitada como motivo para legitimar o decisum desprovido de fundamentação".

            Se a existência de um processo por si mesmo já representa uma tortura (Carnelutti), ofensa maior não há do que o recolhimento prisional injusto de quem é constitucionalmente presumido inocente.

            A fuga, em síntese, para além de ser antecedente ao decreto da prisão (isso significa que a fuga posterior não serve para a sua manutenção – STF, HC 82.903-1, rel. Min. Sepúlveda Pertence), deve, ademais, ser ilegítima, isto é, não pode ser expressão de uma atitude de defesa contra atos que denotam arbitrariedade ou abuso ou indevido constrangimento.

            Quem, tão logo se decreta a prisão temporária, prontamente se coloca à disposição da Justiça para se apresentar e ser interrogado, não revela nenhum sintoma de abandono ou de desrespeito à sua situação processual, ao contrário, exterioriza uma séria preocupação com o seu direito de defesa, com seu direito a um processo devido.

            De outro lado, quem peticiona ao juízo solicitando a suspensão provisória do decreto coercitivo em troca da sua apresentação (e fixação no distrito da culpa) não revela propensão obstrucionista, sim, vontade de que a justiça seja feita, de que as determinações da Justiça sejam respeitadas.

            Não se pode reputar como ilegítima, destarte, a fuga que acontece para a simples manutenção do estado de liberdade, que é pressuposto e condição inderrogável para o pleno exercício do direito de defesa.

            Cabe sublinhar, ademais, o seguinte: não é justo nem razoável exigir a prisão do sujeito para que ele possa discutir ou questionar a validade do decreto coercitivo. A máxima Corte do Judiciário brasileiro vem enfatizando que "agride à garantia da tutela jurisdicional exigir-se que, para poder questionar a validade da ordem de sua prisão, houvesse o cidadão de submeter-se previamente à efetivação dela" (STF, HC 84.997-1/SP, rel. Min. Cezar Peluso)

            Aquele que tem contra si decretada uma prisão cautelar tem direito a que a sua legitimidade seja analisada pelo juízo ou tribunal, independente da condição que ostenta em relação à sua liberdade, se plena, ameaçada ou conspurcada.

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            Não há dúvida que as ordens judiciais devem ser cumpridas e observadas, todavia, quando essa ordem apresenta-se como ilegítima, também não há como questionar a possibilidade de contestação do agente, o qual não está obrigado a se sujeitar à prisão para perquirir sobre a lisura do decreto prisional (nesse sentido: Alberto Z. Toron, em artigo publicado no Boletim IBCCRIM n. 149, abril de 2005).

            Na esteira do artigo que acaba de ser mencionado, pode-se dizer clássica a posição do STF no sentido de que não justifica a prisão preventiva a fuga posterior à sua decretação, mormente quando seguida de sua impugnação judicial (HC 71.145, 1ª Turma, rel. Min. Moreira Alves; 22.3.94, DJ 03.06.94; HC 76.370, 1ª Turma, rel. Min. Octávio Gallotti, 10.3.98, DJ 30.04.98; HC 79.781, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 18.4.00; HC 80.472, 2ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 20.3.01). No mesmo sentido: STF, HC 84.470/MG, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 08.10.04 e STJ, HC 35.026/MG, rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 14.02.05.

            Mesmo porque, como se lia na ementa de antigo e prestigioso julgado oriundo do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, a fuga do acusado, depois da decretação de uma prisão ilegal, configura apenas instinto natural de liberdade (RT 658/287, rel. Des. Silva Leme). No mesmo sentido, do extinto TACRIM-SP: JUTACrim 78/104, rel. o então juiz Canguçu de Almeida.

            A fuga que justifica a prisão preventiva, em suma, é a dotada de "razoável probabilidade" de que o agente pretende ilegitimamente escapar da Justiça, ou seja, do cumprimento das suas determinações ou da imposição de uma pena prisional final.

            Não há nenhum dever de se colaborar com a Justiça quando se está diante de um decreto prisional que é repudiado e reputado como ilegítimo. Não se pode definir como "obstrucionista" o comportamento de quem só está tentando manter intacto seu estado de liberdade, que é pressuposto lógico e inafastável para o regular exercício do constitucional direito de defesa (STF, 1ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, HC 83.943/MG, DJ 27/04/04).

            A fuga contra decreto prisional ilegal constitui decisão que representa muito mais um castigo que qualquer desobediência ou refeição às decisões da Justiça. Deixar o distrito da culpa por um motivo justo, ou seja, premido pela violência de uma prisão, retrata muito mais um natural instinto de liberdade que qualquer tipo de descaso com as determinações judiciais (RT 658/287, rel. Des. Silva Leme).

            A fuga, nas circunstâncias em que acaba de ser descrita, juridicamente enfocada, tem tudo a ver com este instinto ou sentimento de liberdade de todo o cidadão. Traduz, ademais, o indiscutível direito de questionar a legalidade de uma medida absolutamente excepcional, que não conta com qualquer motivo razoável que a justifique.

            Tudo que acaba de ser sublinhado faz parte da tradicional e consolidada jurisprudência da nossa Corte Suprema que, com a sua mais alta autoridade, sempre proclamou não ser possível decretar a prisão preventiva quando o acusado se subtrai, "escondendo-se, ao cumprimento de decreto anterior de prisão processual" (HC 79.781-4/SP, 1ª T., v.u., rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 09/6/2000).

            O afastamento do distrito da culpa com justa causa, em síntese, no nosso atual ordenamento jurídico, não permite a decretação da prisão preventiva, seja para garantir a aplicação da lei penal, seja para assegurar a instrução criminal. Nesse sentido já decidiu a 1ª Turma do STF: rel. Min. Marco Aurélio, HC 85.861/SE, DJ 26/08/2005.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Fuga do agente e prisão preventiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 942, 31 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7877. Acesso em: 24 nov. 2024.

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Texto resultante da fusão de uma série de dois trabalhos do autor, com o mesmo título.

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