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Teoria Pura do Direito em análise – Parte 1

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O artigo tem como finalidade expor, criticamente, de forma simples, os escritos de Kelsen, na sua obra “Teoria Pura do Direito”.

O presente artigo tem como finalidade expor, criticamente, os escritos de Kelsen, na sua obra “Teoria Pura do Direito”. Como a premissa foi disseminar para todos do meio jurídico, especialmente estudantes, bacharéis e “concurseiros”, utiliza-se a versão condensada, lançada pela Revista dos Tribunais, traduzida por Cretella JR. e Agnes Cretella.

Da mesma forma, tanto a extensão deste artigo quanto a linguagem e profundidade das questões postas foram pensadas e organizadas de maneira a motivar a sua leitura. Sendo assim, foram selecionados os capítulos e respectivos tópicos avaliados como centrais e mais importantes para compreensão do pensamento da tese exposta no livro. Para tanto, a articulação foi feita em três partes, cujo conteúdo se baseou no critério de afinidade.

A intenção e metodologia empregada, contudo, não retira o objetivo de se transmitir a verdadeira imagem da teoria apresentada. Inclusive, procura-se desfazer, em certos casos, alguns mitos ou mal-entendidos que pairam sobre o autor e sua tese.

Logo a seguir, apresenta-se a primeira parte, dividida entre os capítulos I e II, bem como respectivos tópicos selecionados, mantendo-se, para fins didáticos, os mesmos títulos e ordem encontrada na obra objeto deste estudo.

CAPÍTULO I – DIREITO E NATUREZA

1. A PUREZA

De pronto, Kelsen expõe o conteúdo essencial de que trata sua teoria: o direito positivo. Mais, erige-a enquanto uma teoria geral, ou seja, um esquema com aplicação geral para todo e qualquer Direito existente. Em virtude disso, diz respeito à descrição do direito - e não prescrição (aquilo que deve ser) -, ou seja, trata do que é e como é.

Daí advém a significação da “pureza” kelseniana: expungir tudo aquilo que não se faça necessário para descrever uma ordem jurídica válida. Isto é, a pureza é o critério utilizado para eliminar qualquer juízo de valor na tarefa de descrever o que é e como é o direito. Serve de instrumento que funciona como uma espécie de olhar neutro, sob o ponto de vista de um observador que retira uma fotografia aérea de ordens jurídicas possíveis, vigentes e válidas, com intuito de identificar apenas aqueles elementos conceitualmente necessários para qualquer uma delas. Uma vez que não se está inserido em nenhuma dessas ordens, e nem se pretende dizer sobre “como seria” ou “deveria ser”, crê nessa metodologia para não assumir qualquer posição ou ideologia capaz de ofuscar essa atividade descritiva. Não há, diz Kelsen, envolvimento, e nem, por isso, engajamento, com a realidade estática fotografada.

Analogamente, é possível afirmar que o autor se vale como pano de fundo da pergunta filosófica acerca da essência das coisas, tais como “uma bola, necessariamente, precisa de ser esférica?”, “uma mesa sem as suas pernas de sustentação, ainda assim, seria uma mesa? Ou quantas pernas ela deveria ter para continuar sendo uma mesa?”, “um copo sem fundo, ainda assim, seria um copo?” etc. Em resumo, assume a tarefa de elencar tão somente aqueles elementos mínimos sem os quais determinada sistematização de regras não poderia conformar uma ordem jurídica, do ponto vista conceitual ou semântico.

Essa sua pretensão é uma reação crítica à ciência do direito dos séculos XIX e XX, uma vez que, insiste o autor, recebeu influxos negativos de questões tidas como estranhas ao direito, a exemplo da psicologia, biologia, ética etc. Segundo o pensador, a descrição purista do direito serviria exatamente para bem delimitar o que, de fato, é o Direito, pois só assim, pensa ele, propiciar-lhe-ia efetivos avanços científicos. De nenhuma maneira, contudo, pode-se, apenas por esse seu posicionamento, dizer que tenha defendido que a moral não fosse desejável e que nem pudesse ser conteúdo de normas, muito pelo contrário.

2. FATO NATURAL (ATO) E SEU SIGNIFICADO -  A AUTOINTERPRETAÇÃO DO MATERIAL SOCIAL (O SIGNIFICADO SUBJETIVO E OBJETIVO)

A partir da ideia de expungir da ciência do direito tudo aquilo que fosse “impuro”, Kelsen busca eliminar o que rotula como “sincretismo metodológico”, bem entendida, para ele, como uma postura nociva ao desenvolvimento do Direito enquanto ciência. É que, mesmo compreendendo o Direito como um fenômeno social, atribui-lhe um significado distinto aos fatos da natureza, defendendo que a conexão jurídica ocorre mediante o vínculo de imputação previsto pela norma, e não por uma relação de causalidade.

Assim, entende que, se, por um lado, o fato pode ser percebido externamente como um acontecimento puramente perceptível sensorialmente, por outro, pode ter um significado diverso próprio para o direito, acaso corresponda (ou não) ao conteúdo de uma norma.

Com base nisso, busca demonstrar que o sentido subjetivo do fato não precisa estar vinculado ao sentido objetivo, uma vez que, independentemente daquilo que se pretende ou intérprete dele, é o fato exterior consubstanciado na correspondência ou não com a regra de conduta que está a se avaliar.

3. A NORMA COMO ESQUEMA DE INTERPRETAÇÃO - A NORMA COMO ATO E SUBSTRATO DE SENTIDO

Dando continuidade ao seu empreendimento de interpretação do sentido objetivo, reforça que não é o fato em si considerado o objeto específico do direito, mas a sua conversão em (f)ato jurídico. E o mediador responsável por conferir o significado jurídico é a interpretação desse substrato - e não facticidade da coisa -, através de uma norma que se refere ao seu conteúdo. Trata-se da função da norma pela qual ele a designa de “esquema de interpretação”.

Nessa passagem, há, claramente, uma cisão (forte) entre fato e norma, uma vez que aquele só ganha significado a partir do segundo. Ou seja, somente exsurge como objeto do conhecimento jurídico se, e somente se, existir uma norma expressa sobre o conteúdo do fato. Nessa medida, não é o direito que se adequa ao fato, mas o inverso. É este que deve corresponder com aquele. Tal visão se mostra, no mínimo, coerente com o intento kelseniano de eliminar todos os fatores que considera extrajurídicos, uma vez compreendendo-os como prejudiciais à autonomia e desenvolvimento do Direito enquanto ciência.

Daí sua ideia que ”o conhecimento jurídico é voltado para determinadas normas que conferem a certos fatos o caráter de atos jurídicos”. Isso confirma, pensa ele, a compreensão de que a norma possui um significado próprio, ou, melhor dizendo, dela própria, diversa daquele que lhe querido ou representado (sentido subjetivo).

Enfim, essa postura se mostra alicerçada na sua finalidade de eliminar (ou mitigar) a possibilidade de o jurista, a partir de um uma visão particularista, se apoderar da norma. O que se pode questionar, todavia, é a efetividade prática, pois o próprio Kelsen chega a concluir que a correspondência entre fato e norma é feita por um ato de vontade.

4. VALIDADE E ÂMBITO DE VALIDADE DA NORMA - CONHECIMENTO DAS NORMAS JURÍDICAS E SOCIOLOGIA JURÍDICA

Nessa parte, visa a demonstrar que o âmbito de validade da norma trata, única e exclusivamente, da sua existência específica, diversa da dos fatos. Conquanto se busca regular uma conduta humana possível, ela própria tem um âmbito de validade, uma vez que vale para algo, no espaço e tempo. Sob essa pressuposição, mais uma vez reforça a busca pela autonomia do direito em relação aos fatores externos.

Por outro lado, ao reduzir o direito à norma, o papel da ciência jurídica torna-se limitado ao conhecimento puro desse substrato. Seu objeto é a realidade, porém, sob um  enfoque que não a mera relação de causalidade natural e sem qualquer engajamento ou pretensão. Assim, embora imerso no “mesmo” pano fático de fundo, diferencia o direito tanto da sociologia quanto da política.

Em resumo, essa abordagem é mais uma amostra da cisão artificial kelseniana, inserida na perspectiva teórica do observador-teórico - que visualiza uma realidade jurídica estática -, em certo momento do espaço-tempo. Interessante notar que, mesmo inconscientemente, Kelsen abre espaço para se discutir a viabilidade ou não de uma separação forte entre fato, texto e norma.

CAPITULO II – DIREITO E MORAL

1. DIREITO E JUSTIÇA

O Direito, como norma, é uma realidade cultural e não natural.”  Essa frase introduz e endossa o entendimento kelseniano, segundo o qual o direito é, necessariamente, uma criação humana, ainda que - diz ele - surgido naturalmente na história do homem. Denota, também, a demarcação entre os planos do ser e do dever-ser. Bem delimitado, nesse sentido, o dever-ser possui uma realidade própria, que não sofre influência do mundo do ser. Pelo contrário, é o ser que se submete ao dever-ser, quando este diz respeito ao conteúdo daquele.

Por aí se compreende seu intento de dissociar o direito das outras ciências, inclusive da moral. Entrementes, bom lembrar que Kelsen não rechaça a possibilidade de o direito ser moral (ou possuir conteúdo), em vez disso, diz, simplesmente, que o direito não é, necessariamente, moral. Posicionamento oposto, pensa ele, implicaria reconhecer que o direito se confundiria com a “justiça”, o que lhe imporia - arbitrariamente - um conteúdo com valor absoluto. Isso porque a norma moral designaria, nesse caso, uma ordem mais alta, permanente, inquestionável e, por isso, irracional, sendo impossível explicar o porquê disso ou daquilo ser devido ou não. Assim, entende que se houvesse uma vinculação necessária entre Direito e Moral, seu propósito seria meramente ideológico.

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Em resumo, evidenciando-se, claramente, o ceticismo e o relativismo moral de Kelsen, afasta-se a possibilidade de lhe atribuir qualquer contribuição consciente para a manutenção de um regime baseado em superioridade de raça ou de uma moral tradicional. Pelo contrário, a tese kelseniana poderia servir de teoria crítica àquele sistema, uma vez que denunciava a impossibilidade de se alcançar racionalmente o conteúdo (justo) do direito.

2. A TENDÊNCIA ANTI-IDEOLÓGICA DA TEORIA PURA DO DIREITO

Como se disse, a Teoria Pura do Direito tem como finalidade expungir tendências ideológicas, uma vez que visa a superação da Teoria do Direito Natural. Nesse sentido, seu objeto é apresentar o direito como ele é, sem juízo de valor a respeito de justiça ou injustiça. Caso contrário, entende que estaria, necessariamente, atrelada a uma visão de mundo determinada. Assim, busca não aderir a nenhuma posição ideológica, pois pensa que a via científica é o único meio de se produzir o verdadeiro conhecimento. Como se vê, é clara sua visão de que as ideologias possuem raiz na vontade, o que, diz ele, inviabiliza o conhecimento verdadeiro.

Sob essa perspectiva, torna-se possível desfazer, definitivamente, qualquer ligação entre Kelsen e o nazismo. Sua teoria não valida e nem visa a fixar uma natureza única do Direito enquanto valor de justiça, tal como pretendia aquele sistema. Não serve para legitimar o conteúdo do direito, ali, estabelecido. Portanto, como a obrigatoriedade moral das normas não deriva logicamente de um conteúdo justo por si só, um direito que pressupõe e impõe um conteúdo superior determinado não encontra fundamento material na teoria de Kelsen.

PINCELADAS MINHAS

Como se viu, essa primeira parte teve um caráter preponderantemente expositivo-descritivo, com algumas doses de avaliação (crítica). Reserva-se ao direito de não as renovar agora, restringindo-se, nesse momento, a traçar um quadro de panorama geral.

Os Capítulos I e II servem como embasamento para os vindouros, funcionando, ao mesmo tempo, como uma espécie de marco teórico e justificativa para o problema que a teoria pretende solucionar. O objetivo geral, expressamente confessado, é depurar o Direito de toda ideologia política. Daí que pretende conferir ao Direito o mesmo tratamento e técnica (pretensamente) utilizados nas ciências (ditas) exatas, ofertando-lhe uma pureza metodológica, baseada em uma objetividade descritivista. Como se percebe, Kelsen nutre o sentimento de que somente através de um método científico se torna possível alcançar um conhecimento seguro e imparcial.

Por outro lado, diversamente do que alguns pensam, é possível verificar um forte apelo moral motivando sua teoria. Seu ceticismo e relativismo moral pavimentaram o caminho para a construção de uma teoria cuja finalidade é repelir influências externas do Direito. Isso não quer dizer que o Direito deva ser amoral - e nem imoral -, e sim que está sempre aberto para moralidades concorrentes. A partir dessa premissa, tornar-se-ia claro, desde o início, a impossibilidade de esta ou aquela moral se dizer “mais justa que” ou “melhor que” para se legitimar.

Estaria plantado, assim, a semente para uma linha a partir do qual o Direito seria o espaço democrático para convivência de indivíduos em sociedade, quaisquer que fossem suas ideologias, sendo incabível, portanto, fundá-lo em truísmos ou quejandos[1]. Essa linha de interpretação nada tradicional, poderia conduzir às subsequentes teorias de ética do discurso, uma vez sendo preconizando o Direito como um espaço para uma convivência harmônica e plural de interesses contrapostos, por meio do qual se poderia construir normas legitimas e válidas[2]. Uma passagem específica que, talvez, corrobore essa hipótese, está no prefácio de Kelsen à primeira edição, quando diz que “o ideal de uma ciência objetiva do Direito e do Estado só poderá ter aceitação geral em períodos de equilíbrio social”. Em sentido semelhante, é possível colher outras inúmeras críticas desferidas às moralidades particularistas. Mas isso é tema para uma dissertação que foge ao presente escopo.


[1] André Coelho defende uma linha a partir da qual pode se extrair o raciocínio ora defendido, merecendo destaque dois textos publicado em seu Blog, um com o título “Positivismo Jurídico e Crise, ou Porque a Chamada Crise do Positivismo é Resultado da sua Vitória, e não do seu Fracasso” (http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2011/03/positivismo-juridico-e-crise-ou-porque.html) e o outro “Positivismo Jurídico e Crise

[2] Resposta a dois interlocutores” (in: http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2011/03/positivismo-juridico-e-crise-2-resposta.html).

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Sobre o autor
Antonio Carlos Sirqueira Rocha

Procurador da Fazenda Nacional Bacharel em Direito pela UFMG Pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUCMINAS Pós-graduando em Compliance e Gestão Tributária pela FBT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Antonio Carlos Sirqueira. Teoria Pura do Direito em análise – Parte 1. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6419, 27 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78845. Acesso em: 24 abr. 2024.

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