Introdução
Com o advento da Lei 13869/19, que trouxe as condutas que caracterizam o crime de abuso de autoridade, muito alarde foi feito por parte da imprensa entre os meios jurídicos e entre os agentes públicos, a respeito dos procedimentos que passariam a enquadrar-se em tal tipo penal. Foi elaborado um quadro comparativo para demonstrar ao leitor que, embora fossem ditados vários artigos, muitos possuem correspondência na lei anterior, o que, de certa forma, demonstra que, desde 1965, o agente público encontra condutas que caracterizam o crime em tela e que, apesar de ter estado em vigência por 54 anos, nunca antes foi dada tamanha ênfase a uma lei.
Aqui se encontram quadros comparativos entre a Lei 13869/19 e a Lei 4898/65, assim como comentários para facilitar o entendimento do policial quanto à aplicação.
O que constitui o Crime de Abuso de Autoridade?
Lei 4898/65 |
Lei 13869/19 |
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; b) à inviolabilidade do domicílio; c) ao sigilo da correspondência; d) à liberdade de consciência e de crença; e) ao livre exercício do culto religioso; f) à liberdade de associação; g) aos direitos e garantias legais; assegurados ao exercício do voto; h) ao direito de reunião; i) à incolumidade física do indivíduo; j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. |
Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. § 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. § 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade. |
A lei revogada tinha um tipo penal mais amplo. Quando o legislador de 1965 define como núcleo do tipo apenas o verbo “atentar”, e em seus incisos delibera o atentado aos direitos, sem especificar a conduta que levaria a tal crime, está suscetível a receber criticas dos doutrinadores do Direito Penal por não atingir os princípios da legalidade e taxatividade.
No novo ordenamento, para que se configure o crime de abuso, não mais se basta o mero dolo. Conforme Art. 1º, § 1º da lei, deve-se ainda ter presente na conduta um dos elementos subjetivos descritos no parágrafo (grifos nossos):
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal
Caberá à doutrina do direito definir, basicamente, o que significa esse “mero capricho” definido pelo legislador. Porém, saliento que, para que se configure o crime, deve haver um desses elementos subjetivos, não bastando somente a vontade quanto à conduta.
Uma inovação trazida nesta lei foi vista no parágrafo 2º, o qual priva que o agente por divergência de interpretação entre autoridades responda pelo crime de abuso, de tal forma dispõe a lei:
§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade
Pode-se ainda quanto a isso extrair um dos enunciados promovidos pelo Conselho Nacional de Procuradores Gerais do Ministério Público, que trata:
ENUNCIADO #2 (art. 1º.)
A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, salvo quando teratológica, não configura abuso de autoridade, ficando excluído o dolo
Lembrando ainda que o agente deve proceder todas as condutas previstas em lei, sendo que ao extrapolar os limites legais será passível de se caracterizar como abuso.
Constranger o Preso à prática de algum ato não previsto em Lei
Lei 4898/65 |
Lei 13869/19 |
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; [...] i) à incolumidade física do indivíduo; Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: [...] b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei |
Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a: I - exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública; II - submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei; III - produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro . |
Na lei anterior - em seu artigo 3 - define como crime qualquer atentado a liberdade de locomoção ou então a incolumidade física do indivíduo, o que revela um tipo penal extremamente abrangente. Na nova lei, em seu artigo 13, há a definição de que para se configurar o crime o constrangimento deve ser mediante violência, grave ameaça ou com a redução de sua capacidade de resistência a adentrar em qualquer um desses três incisos.
O inciso I se aplica a exibição do preso ou de parte de seu corpo a curiosidade pública (pressupondo que a exibição de pessoa algemada para a imprensa seria enquadrado nesse inciso) e divulgação de fotos da pessoa presa em redes sociais (com o intuito de denigrir sua imagem ou para satisfazer a curiosidade pública). Ressalto, porém, que não se configura como crime a coleta de fotografias do detido para abastecimento de bancos de dados.
Quanto aos inciso II e III, tem-se a submissão do preso a situação vexatória ou qualquer outro constrangimento não previsto em lei. Cabe ao policial estrita atenção, pois em determinadas situações aplica-se a Lei de Tortura ao invés da Lei de Abuso de Autoridade. O terceiro inciso do artigo é sobre o respeito ao direito de qualquer pessoa de não produzir prova contra si mesmo.
ENTRADA EM DOMICÍLIO
Lei 4898/65 |
Lei 13869/19 |
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: [...] b) à inviolabilidade do domicílio; |
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: § 1º Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem: I - coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências; III - cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas). § 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre |
A lei anterior caracterizava o crime como qualquer atentado contra a inviolabilidade do domicílio, observando, naturalmente, as ressalvas constitucionais combinadas com o Art. 150 § 3º do Código Penal ou então amparadas no entendimento do STF que, no RE 603616 com repercussão geral julgado pelo STF em 2015, decidiu:
“A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.
Devem-se destacar os incisos I e III da nova lei. No primeiro caso é criminalizada a coação da pessoa mediante violência ou grave ameaça para que ela permita que o agente adentre na residência, sendo caracterizado como crime qualquer forma de atentado ao livre arbítrio para a permissão da entrada na residência.
O conceito de domicílio não é somente o penal, mas sim o previsto em toda a legislação, diferindo sobre o que é ou não “casa” para fins penais e encontrado no Art. 150, § 4º e § 5º do código penal:
“§ 4º - A expressão "casa" compreende:
I - qualquer compartimento habitado;
II - aposento ocupado de habitação coletiva;
III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
§ 5º - Não se compreendem na expressão "casa":
I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior;
II - taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.”
O Parágrafo 2º do artigo 13 indica as circunstâncias em que não haverá o crime:
Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre
O policial, para adentrar uma residência, deve obedecer o disposto na lei, seja na constituição, no código penal ou ainda observar a decisão expedida pelo STF. Lembrando que a mera denúncia anônima não basta para adentrar em um domicílio e que já há determinação do Comando Geral da Instituição quanto às situações em que é lícita a entrada do militar em residência alheia.
Outro ponto importante, previsto no inciso III, trata sobre uma definição dos horários em que deve ser cumprido o mandado de busca e apreensão em um domicílio – deixando de usar como referência o conceito de “pôr do sol” – o que demonstra mais clareza quanto ao horário que compreende antes das 21h e após às 5h. Esta definição é importante para o policial que presta apoio ao poder judiciário no cumprimento de mandados de busca e apreensão ou ainda no cumprimento de mandados para fins de polícia judiciária militar.
DEIXAR DE SE INDENTIFICAR NO MOMENTO DA PRISÃO
Lei 4898/65 |
Lei 13869/19 |
Não há dispositivo equivalente. |
Art. 16. Deixar de identificar-se ou identificar-se falsamente ao preso por ocasião de sua captura ou quando deva fazê-lo durante sua detenção ou prisão: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, como responsável por interrogatório em sede de procedimento investigatório de infração penal, deixa de identificar-se ao preso ou atribui a si mesmo falsa identidade, cargo ou função. |
O artigo 16 da lei penaliza o agente público que deixa de se identificar no momento da prisão (salientando que, no caso dos policiais militares, o uso do fardamento com o nome supre esta identificação), sendo que, na entrega do Recibo de Preso no Distrito Policial, o detento terá a qualificação do policial que o prendeu conforme determinado pelo Código de Processo Penal.
PRIVAR O PRESO DE ENTREVISTA COM SEU ADVOGADO
Lei 4898/65 |
Lei 13869/19 |
Art. 3º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: [...] i) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. |
Art. 20. Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem impede o preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se pessoal e reservadamente com seu advogado ou defensor, por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso de audiência realizada por videoconferência. |
A Lei de 1965 já previa como crime qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. O novo ordenamento jurídico especificou que a conduta de privar o detido de falar com seu advogado se caracteriza como abuso de autoridade. Quanto a isso, deve ser feita uma remissão à Lei 8096/94, que trata sobre o direito do preso de ser entrevistado por um advogado em local reservado, havendo ou não uma procuração.
Ainda sobre o tema, destaca-se que a nova Lei trouxe uma inovação no EOAB: em seu novo Art. 7º-B criminaliza o agente que viola as prerrogativas previstas nos incisos II,III,IV,V e caput do Art.7º deste estatuto. Dentre essa enumeração, ressalta-se o inciso III, o qual trata sobre o direito à entrevista da pessoa presa pelo seu defensor.
Portanto, ao policial cabe promover que a entrevista do preso ao seu advogado seja assegurada. O agente no local dos fatos é o responsável por deliberar sobre a segurança de entrevista do defensor com o detido. Se perceber que não há condições de segurança para que haja o parlatório, deve o agente conduzi-los a um local apropriado para que a conversa entre defensor e defendido seja realizada. Caso o detento esteja algemado, em situações conforme preconiza o Decreto 8.858/16, ou, ainda, a Súmula Vinculante número 11 do STF, o policial não é obrigado a retirar as algemas para a entrevista do preso com seu defensor.
Art. 7º São direitos do advogado:
[...]
II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia;
III - comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis; ( grifos nossos )
IV - ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB;
V - não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, , na sua falta, em prisão domiciliar;
[...]
Art. 7º-B Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei: (grifos nossos)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.