O presente artigo, sob a forma de perguntas e respostas, visa tão somente o chamamento ao debate e a reflexão sobre alguns institutos muito comuns a atividade de polícia judiciária (porte de documentos, legitimação, identificação etc), a fim de traçarmos alguns paralelos que denotem que, quando a ação estatal não é eivada de dolo, não há o que se falar em crime de abuso, sequer em tese.
A nova legislação, e isso é fato, trouxe dúvida e insegurança jurídica para muitos, e o papel da doutrina é lançar argumentos (teses) minimamente defensáveis para a análise pessoal de cada operador, mormente os que estão na linha de frente, onde a rapidez do processo decisório urge.
Vejamos então alguns exemplos e conceitos, com o único escopo de apaziguar discussões e subsidiar a análise que é nata aos que lidam com o Direito ainda em chamas.
1) É OBRIGATÓRIO ANDARMOS COM DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO?
Não. A lei brasileira não trata isso como obrigação, salvo se o documento for necessário para o exercício de determinado direito ou atividade.
2) POSSO SER CONDUZIDO A UMA DELEGACIA DE POLÍCIA APENAS POR NÃO PORTAR DOCUMENTOS?
A rigor, não. Se eu oferto os meus dados e a pesquisa telemática os confirma, a princípio não existe necessidade. Entretanto, se numa busca pessoal processual ou preventiva, os dados não se confirmam ou se o tirocínio dos agentes detectar alguma informação conflitante, a condução aí se impõe, não a título de captura, mas em razão do poder de polícia da administração pública.
3) POSSO RECUSAR A AUTORIDADE (SENTIDO AMPLO) DADOS OU INDICAÇÕES SOBRE A MINHA IDENTIDADE, ESTADO, PROFISSÃO, DOMICÍLIO OU RESIDÊNCIA?
Se o pedido for justificado, não. Recusa deliberada de dados sobre a própria identidade é contravenção penal (art. 68 da LCP). A pena não é privativa de liberdade, mas a captura se impõe para fins de registro da ocorrência e demais providências, como a lavratura de termo circunstanciado, procedimento investigatório das infrações penais de menor potencial ofensivo (Lei Federal nº 9.099/95, art. 69 e Lei Federal nº 12.830/13, art. 2º, parágrafo 1º).
4) POSSO MENTIR A RESPEITO DA MINHA IDENTIDADE PESSOAL, ESTADO, PROFISSÃO, DOMICÍLIO OU RESIDÊNCIA?
Não. Isso é considerado contravenção penal (art. 68 da LCP), ou, dependendo do caso, crime de falsa identidade (art. 307 do CP). Se eu fizer isso, serei consequentemente capturado e detido.
5) O QUE É LEGITIMAÇÃO?
Legitimação é um processo de verificação (constatação) de identidade mediante a colheita de individuais datiloscópicas. Nasceu galgada na antiga figura da “legitimação” prevista no Decreto Estadual nº 4.405-A/28 (Regulamento Policial de 28), no qual a autoridade policial chamava a sua presença qualquer pessoa que viesse a se estabelecer em sua circunscrição e que se tornasse suspeita de crime ou da pretensão de cometê-lo. Se a pessoa não comparecesse ao primeiro chamado, seria notificada, sob pena de desobediência, para vir em dia, lugar e hora designados na portaria de notificação, legitimar se, isto é, declarar o seu nome, filiação, naturalidade, estado, profissão e gênero de vida. Atualmente ela é feita através do confronto entre as digitais colhidas e os arquivos da Polícia. Não raro, revela criminosos e procurados pela Justiça. Decorre, assim, do poder de polícia da administração pública.
6) LEGITIMAÇÃO E IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL SÃO SINÔNIMOS?
Não. A identificação criminal disciplinada pela Lei Federal nº 12.037/09, é a referente ao indivíduo não civilmente identificado que, em regra, é indiciado pela polícia judiciária em decisão fundamentada diante do juízo de probabilidade da prática de um delito (Lei Federal nº 12.830/13, art. 2º, parágrafo 6º e CPP, art. 6º, VIII). Em outras palavras, é a criação formal de uma identidade criminal, gerada a partir do preenchimento do chamado “Boletim de Identificação Criminal”, onde são apostas as suas individuais datiloscópicas, salvo se houver identificação civil idônea ou se estiverem presentes as exceções apontadas pela própria lei. Já a legitimação é um ato de constatação da identificação (autenticidade) por meio de pesquisa técnica e visual, não resultando em arquivamento de dados, registro de antecedentes ou indicativos da efetiva prática de crime, servindo apenas para atender os interesses sociais tendentes a impedir que foragidos permaneçam imunes a Justiça. Ou seja, é uma ação direcionada a dizer que a pessoa é quem está dizendo ser, ou, ainda, se contra ele existem mandados de prisão ou restrições legalmente decretadas. Atualmente, e em regra, a legitimação de suspeitos é feita a através do sistema LEAD (Sistema de Legitimação a Distância) da Polícia Civil paulista. São efetuadas pesquisas biográficas e físicas nas fichas decadactilares, além de dados no sistema AFIS, conforme a Portaria IIRGD-12/16.
7) A LEGITIMAÇÃO É SEMPRE NECESSÁRIA NOS CASOS DE DÚVIDA SOBRE IDENTIDADE?
Não. Se a autoridade policial se convencer de que os dados preliminarmente auferidos pelas pesquisas telemáticas são suficientes para atestar a identidade do conduzido, a ocorrência finda aí, sendo a pessoa liberada. Por outro lado, se as informações forem inaptas a subsidiar tal conclusão, a legitimação, que é mais segura, pode ser executada.
8) É CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE LEGITIMAR PESSOA QUE OFERTA DADOS QUALIFICATIVOS INSUFICIENTES PARA ATESTAR A SUA IDENTIDADE?
Não. A legitimação, nesse caso, decorre do poder de polícia da administração, a fim de constatar se a pessoa possui ou não débitos com a Justiça. Se ela oferta dados consistentes e a pesquisa telemática é suficiente, finda-se o processo. Por outro lado, se os dados são insuficientes, entendemos ser dever do Estado constatar a identidade da pessoa, sob pena do interesse particular – dela – se sobrepor ao público, o que soa incoerente. Nesses casos não existe dolo por parte do agente público, já que o foco é diverso do interesse pessoal e do mero capricho ou intenção de prejudicar alguém (Lei Federal nº 13.869/19, art. 1º, parágrafo 1º e Código Penal, art. 18, parágrafo único).
9) A PESSOA PODE SE RECUSAR A SER LEGITIMADA?
Tendo em vista que a colheita de individuais demanda uma ação minimamente ativa do conduzido, não é forçoso admitir que ele possa, caso queira, dificultar o processo. Nesse caso, poder-se-ia alegar que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo. Entretanto, produzir prova contra si é diferente de atestar prova de identidade civil, são institutos diversos, mesmo porque a lei brasileira proíbe a sonegação de dados qualificativos. Assim, por simetria, entendemos que esse comportamento omissivo equivale a ação de negar dados sobre a própria identidade, o que é infração penal (LCP, art. 68), sem prejuízo de delitos outros, os quais seriam agregados e gerariam consequências desfavoráveis ao recalcitrante.
10) O NÃO FORNECIMENTO DE ELEMENTOS SUFICIENTES PARA ESCLARECER DÚVIDA SOBRE IDENTIDADE CIVIL PODE ACARRETAR ALGUMA CONSEQUÊNCIA CONSTRITIVA AO RECALCITRANTE?
A Lei Federal nº 12.403, de 4 de maio de 2011 (que alterou o Código de Processo Penal), diz ser admissível a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. Essa ação, frise-se, foi mantida pelo chamado "Pacote Anticrime"(Lei Federal nº 13.964/19), que renumerou o parágrafo único do art. 313 do CPP. Tal operação é a rigor cabível nos casos em que o sujeito está implicado na prática de uma infração penal, e não quando exista mera dúvida sobre a identidade de um suspeito abordado na via pública.
Se o sujeito inviabilizar a legitimação de maneira passiva (e a autoridade policial entender fundada a hipótese de ocultação de identidade para fins de subtração de responsabilidade penal), cremos que, além da recusa contravencional de dados, poderia estar o mesmo, em tese é bom que se frise, também incorrendo em crime de desobediência (pois a lei não comina sanção civil ou administrativa para a negativa), já que a sonegação, como visto, não faz parte do direito de silêncio, este sim sagrado. Ainda que fosse lavrado um termo circunstanciado, o compromisso de comparecimento ao Fórum estaria prejudicado, já que não se sabe quem de fato é o sujeito, comprometendo-se, assim, a voluntariedade exigida do ato, que requer idoneidade na ação. O termo, então, seria convertido em auto de prisão em flagrante (Lei nº 9.099/95, art. 69, parágrafo único). A fiança extradjudicial poderia ser negada (CPP, art. 324, IV), já que a ausência de identificação civil, no caso de pessoa implicada na prática de infração penal, daria azo a prisão preventiva (CPP, art. 313, parágrafo 1º), até que o mesmo fosse devidamente identificado.
Por outro lado, se a pessoa inviabilizar a identificação de forma ativa, o delito em tese agregado seria o de resistência, eclodindo, hipoteticamente, na mesma solução acima ofertada.
É evidente que tais soluções são teóricas, para cenários extremos, afinal, dentro da regra do bom senso, o suspeito poderá ser advertido das consequências do seu ato e, se o foco dele é sonegar a própria identidade para ocultar uma ordem de prisão pretérita, a segregação, ainda que isso ocorra, será de qualquer forma imposta, acrescida, ainda, de uma futura acusação de falsa identidade, em sendo caso.