Capa da publicação Advertência em videogames sobre risco de epilepsia e lesão física
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A informação-advertência no âmbito dos videogames:

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29/01/2020 às 15:37
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O importador que vende game sem advertência, clara e em português, que concerne à segurança do consumidor incorre em defeito de comercialização.

Resumo: Na sociedade de consumo em que o entretenimento se tornou eletrônico, os videogames podem oferecer riscos aos consumidores que podem se traduzir em convulsões visualmente estimuladas ou mesmo em lesões físicas. Sustenta-se, neste artigo, que a capacidade do produto de causar epilepsias e patologias físicas no consumidor não configura erro de design ou vício de concepção, pois correspondem à periculosidade inerente devidamente informada. O princípio da transparência é respeitado pelo fornecedor através de advertências de segurança no próprio jogo ou na embalagem sobre os riscos à saúde humana, não se responsabilizando este pela culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros. A hipótese excepcional que se traz à tona é a do fornecedor presumido ou importador que vende o produto sem proceder à tradução para a língua portuguesa da informação-advertência que concerne à segurança do consumidor, o que configura defeito de comercialização, o fato do produto. Assim, a periculosidade inerente se converte em periculosidade adquirida.

Palavras-chave: game studies; epilepsia; lesões físicas; fato do produto; língua portuguesa.


1. INTRODUÇÃO

É fato conhecido no mundo do entretenimento que no ano de 1997, no Japão, um dos episódios do desenho animado Pokémon causou um enorme estardalhaço por ter desencadeado convulsões – também denominadas crises epilépticas – em diversas crianças que acompanhavam o seriado, pois as luzes piscantes utilizadas naquela exibição causou-lhes um sintoma denominado epilepsia fotossensível (ROSSINI, 2019).

Esse fato passou a gerar preocupações perante os desenvolvedores não só de desenhos animados, mas também em outros setores, como os videogames, por exemplo. Hoje, é possível perceber que jogos eletrônicos possuem em suas embalagens ou no conteúdo do próprio software a informação de que a pessoa deve fazer pausas depois de certo período jogando ou mesmo a advertência que certos games podem causar crises epilépticas.

O jogo Space Invaders chegou a desencadear crises epilépticas em consumidores no começo dos anos 80. Ferrie at al (1994) fazem a observação de que depois da primeira descrição de problemas dessa natureza causados pelo título no ano de 1981, sucederam-se mais de outros vinte casos na literatura científica em língua inglesa. Houve, na mídia, ampla repercussão de tais fatos e os desenvolvedores tomaram providências no sentido de trazer advertências junto aos manuais e embalagens dos produtos, assim como o British Department of Trade and Industry passou a patrocinar pesquisas acerca do tema.

No site de notícias norte-americano United Press International, em matéria da data de 24 de janeiro de 1991, é relatado o caso da garota de 15 anos que, ao jogar o cartucho Kid Icarus do console Nintendo, desencadeou uma crise epiléptica. Seus responsáveis ajuizaram ação judicial pleiteando indenização pelos danos sofridos e, à época, o fundamento jurídico utilizado foi justamente a ausência de advertências por parte da desenvolvedora (UNITED PRESS INTERNATIONAL, 1991). Trata-se, no caso, de alegação de mácula informativa.

Barzgar et al (2007) relatam que pouca atenção foi dada à questão da crise epiléptica causada por videogames (video game epilepsy – VGE) até que aconteceu a morte de um garoto britânico no ano 1992, enquanto jogava um console Nintendo. Em decorrência do ocorrido, estudos científicos sobre o fenômeno desencadeado e providências informativas por parte dos fornecedores passaram a ocorrer.

Fazendo um salto para os anos 2000, o site de jornalismo de games Gamespot menciona que, no estado norte-americano de New York, foi ajuizado processo judicial por uma mulher, pedindo indenização pelos danos sofridos por sua filha menor de idade, a qual, ao jogar o game Spyro: Enter the Dragonfly – lançado em 2002 –, entrou em crise epiléptica. A autora da ação afirmou que as desenvolvedoras do game foram imprudentes, imperitas e negligentes ao conceberem o software e colocá-lo no mercado de consumo (SINCLAIR, 2007). Aqui, evidencia-se verdadeira alegação de erro de design ou de projeto do jogo.

Ainda: de acordo com texto publicado no site Epilepsy Foudation, a crise epiléptica induzida por videogames não pode ser considerada uma síndrome. Trata-se de uma modalidade de epilepsia fotossensível. Atinge, na maioria das vezes, pacientes de 7 a 19 anos de idade e do sexo masculino. Alguns fatores que podem desencadear o problema: a fotossensibilidade, fadiga, falta de sono ou tempo prolongado de gameplay (PANAYIOTOPOULOS, 2006). A epilepsia do tipo fotossensível, assim, é um sintoma agudo que se manifesta nas pessoas que tenham uma prévia disposição a apresentá-la – sendo a principal causa a fotossenbilidade. Trata-se, esta última, de uma condição genética.

Da análise dos fatos narrados, é possível perceber: jogos eletrônicos têm o seu “lado B”. A sociedade de risco sujeita as pessoas aos mais diversos tipos de acidentes quando em interação com produtos e serviços. E não se diga que os prejuízos sofridos pelos jogadores (gamers) se limitam ao âmbito das epilepsias. Também podem ser mencionadas lesões causadas por controles (joysticks) em virtude de má utilização ou caso fortuito.

Essas lesões físicas podem ser geradas por uso prolongado ou indevido de consoles portáteis ou de mesa. Os movimentos repetitivos em controles de videogames podem dar ensejo a complicações nos dedos ou no punho e ocasionar, ainda, casos clínicos que são relatados na literatura científica como tendinite, sinovite, tenossinovite, síndrome de De Quervain, epicondilite, dentre outros. Para as lesões geradas pelo console da Nintendo de grande repercussão no mundo inteiro, o Nintendo Wii, foi criado até mesmo um termo específico, as “Wiites” (IMRHAN; PROMA; RICARD, 2018). Outro termo que foi concebido pela literatura científica para designar os traumas gerados por consoles Nintendo seria “Nintendinite”, que se refere a uma forma de tendinite associada a microtrauma repetitivo (HEINEMAN et al, 2014).

Outros tipos de problemas que podem ser mencionados: dor no pescoço ao jogar consoles portáteis; alucinações em pacientes com diagnóstico prévio de esquizofrenia; dor no cotovelo; lesões no joelho – para jogares de Nintendo Wii Sports; e, por último, pode ser citado um caso mais grave e cirúrgico – “surgerii” ou “ciirurgia” em língua portuguesa –, no qual uma mulher de 55 anos de idade caiu de um sofá ao jogar tênis no Wii Sports, o que gerou um caso sério de hemotórax – derramamento de sangue na cavidade pleural (HEINEMAN et al, 2014, p. 2).

Diante dessas considerações, pergunta-se: o princípio da transparência, por meio das cláusulas de advertência e dos termos de isenção de responsabilidade contratual do fornecedor, tem o poder de, em caso de eventual dano, alocar toda a responsabilidade como culpa exclusiva do consumidor por assumir o risco de jogar o game? Repassadas as informações pelo fornecedor na embalagem ou no conteúdo do jogo, está cumprida a obrigação de informar sobre a periculosidade inerente do produto, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, ou existe margem para algum tipo de mácula quanto a este dever informativo? Existe uma margem de configuração de um eventual defeito de comercialização?


2. DA JUSTIFICATIVA DO PRESENTE DISCURSO

Em caso de demanda ajuizada perante o Poder Judiciário, na qual o consumidor pleiteie indenização por ter sofrido epilepsia induzida pelo videogame ou qualquer tipo de lesão física, o intérprete do direito se deparará com a seguinte situação: o fabricante ou o importador tentarão provar que, apesar de o produto ter sido colocado no mercado, o defeito inexiste, pois que os avisos de segurança se fazem presentes (art. 12, §3º, II do Código de Defesa do Consumidor), bem como tentarão evidenciar a culpa exclusiva do consumidor ou de seus responsáveis pela utilização indevida do produto (art. 12, §3º, III do Código de Defesa do Consumidor). O consumidor, por sua vez, buscará demonstrar o dano e o nexo causal, sendo que terá direito à inversão do ônus da prova em juízo, mas em que hipótese sua tese jurídica tem chance de ser julgada procedente?

Para dar início ao presente propósito, mencione-se que foram consultados vários sítios eletrônicos brasileiros de busca com a chave de pesquisa “epilepsia videogames”, não tendo sido encontrados resultados relacionados ao presente tema. Muitas vezes, foram achadas apenas respostas envolvendo questões de direito previdenciário e de concessão de medicamentos por parte do Estado, com base no direito social à saúde. O mesmo aconteceu com a chave de pesquisa “lesões físicas videogames” e “patologias videogames”. Chegou-se à conclusão de que não haveria fontes jurisprudenciais ou bibliográficas locais para a construção de um texto científico ou para a redação de uma petição inicial. Os relatos de casos seriam raros ou ausentes.

Dessa forma, a maior parte dos fundamentos da presente pesquisa, no que tange à crise epiléptica induzida por videogames e às lesões físicas causadas por esses aparelhos e seus jogos, às medidas adotadas pelos desenvolvedores para reduzir riscos e aos resultados judiciais de demandas consumeristas foi encontrada em sites estrangeiros e em artigos em língua inglesa.

Constatou-se que, no estrangeiro, não há, em regra, condenações judiciais das desenvolvedoras de jogos eletrônicos com base na teoria do fato do produto. De forma idêntica ocorre no Brasil. Após as desenvolvedoras terem adotado padrões informativos e de advertência em suas embalagens ou no conteúdo do próprio jogo, o problema parece se resolver no plano do princípio da transparência e da isenção de responsabilidade do fornecedor.

No entanto, este artigo vai levantar a hipótese e tentar confirmá-la, no sentido de que existe sim uma situação excepcional em que o fornecedor poderá ser responsabilizado pelo fato do produto na realidade brasileira, com base na lei e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: trata-se do jogo comprado de importador brasileiro que não traga as informações de segurança em língua portuguesa. Assim, constata-se uma mácula informativa ou defeito de comercialização, tendo o consumidor direito à indenização caso venha a suportar danos físicos ou epilépticos. Trata-se de situação em que a periculosidade inerente se converte em periculosidade adquirida.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de Recursos Especiais, já se pronunciou sobre a necessidade de a informação ser: correta (verdadeira), clara (de fácil entendimento), precisa (não prolixa ou escassa), ostensiva (de fácil constatação ou percepção) e, por óbvio, em língua portuguesa.

Uma matéria jornalística veiculada no site Estadão, na data de 12 de dezembro de 2000 refere que as principais problemáticas enfrentadas pelos consumidores no momento da aquisição de produtos importados seriam a falta de peças e componentes de reposição, atrasos nas assistências técnicas, além de manuais de instrução, rótulos e informações de composição que não são traduzidos para a língua portuguesa (AGÊNCIA ESTADO, 2000). Dessa forma, pode acontecer de o consumidor adquirir o jogo ou console de um importador e ficar sem entender, o idioma em língua inglesa ou japonesa, ficando incapacitado de tomar ciência dos riscos normais e previsíveis que aquele produto oferece à sua vida, saúde ou segurança. Há, nesse caso, um defeito de instrução.

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Neste texto, objetiva-se analisar as questões suscitadas, utilizando como recursos de sustentação a Lei 8078/90 – Código de Defesa do Consumidor –, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, artigos de literatura médica de fácil compreensão para o público leigo e cuja análise só se estende naquilo que não adentra na competência dos profissionais da medicina, bem como a melhor doutrina jurídica nacional sobre: previsibilidade e normalidade dos riscos provocados por um produto; legítimas expectativas do consumidor; fato do produto; erro de comercialização; informação e transparência; bem como a teoria do dano direto e imediato no plano da responsabilidade civil.  

Busca-se contribuir com a literatura jurídica, com os cursos de Jogos Digitais e Design de Games e com todas as áreas de conhecimento interessadas, em virtude da ausência ou escassez de conteúdo sobre o tema no Brasil. Visa-se, também, a dar nas mãos do consumidor mais uma arma, na forma de argumentos jurídicos, para que ingresse no Poder Judiciário, buscando a realização de seus direitos por suportar danos causados por fornecedores no mercado de consumo.


3. A REAFIRMAÇÃO DA RELEVÂNCIA DE INTERAÇÃO ENTRE DIREITO E GAME STUDIES: A ASCENSÃO DOS CURSOS SUPERIORES DE JOGOS DIGITAIS E A TUTELA DO CONSUMIDOR NO MERCADO DE MASSA

Tércio Sampaio Ferraz Jr., em sua obra Introdução ao Estudo do Direito, trabalha o ensino jurídico sob a perspectiva da dogmática e da zetética. O autor estudou na Alemanha, onde teve a oportunidade de adquirir essa linha de raciocínio com o professor Theodor Viehweg. No campo das indagações zetéticas, porém, o operador do direito não poderá fazer a inserção de coisas irrelevantes ou banais, sob pena de se perder em mera fantasia:

[...] Introduzir-se no estudo do direito é, pois, entronizar-se num mundo fantástico de piedade e impiedade, de sublimação e de perversão, pois o direito pode ser sentido como uma prática virtuosa que serve ao bom julgamento, mas também usado como instrumento para propósitos ocultos ou inconfessáveis. Estudá-lo sem paixão é como sorver um vinho precioso apenas para saciar a sede. Mas estudá-lo sem interesse por seu domínio técnico, seus conceitos, seus princípios é inebriar-se numa fantasia inconsequente. Isto exige, pois, precisão e rigor científico, mas também abertura para o humano, para a história, para o social, numa forma combinada que a sabedoria ocidental, desde os romanos, vem esculpindo como uma obra sempre por acabar (FERRAZ JR., 2003, p. 21-22).

Com a disseminação dos cursos superiores de Jogos Digitais e Design de Games no Brasil, devidamente regulamentados pelo Ministério da Educação, tanto na modalidade presencial como na modalidade de ensino à distância (EaD), urge a construção de uma literatura científica nacional interdisciplinar que auxilie os operadores da ciência tecnológica – os game designers – e os operadores do direito.

Resta lembrar que os estudos sobre jogos eletrônicos são relevantes também para vários outros campos do conhecimento, como Publicidade e Propaganda, Jornalismo – que lida diretamente com a questão dos newsgames –, Psicologia e à própria neurociência – destaquem-se nesse âmbito os estudos da neurocientista Daphne Bavelier.

Na revista eletrônica francesa Sciences Humaines, em janeiro de 2007, foi veiculada a matéria intitulada “Les jeux vidéo sont-ils bons pour le cerveau?”, de autoria da psicóloga Celia Hodent-Villaman. A autora faz uma leitura dos jogos de videogame segundo os resultados dos estudos publicados na Revista Nature em 2003, e menciona que a exposição visual aos jogos eletrônicos de ação e a habitualidade da prática de jogo podem afetar para melhor as capacidades cognitivas cerebrais e que concernem ao grau de atenção da pessoa. Esses estudos na área de neurociência têm relevância até mesmo para que haja a concepção de novos jogos sérios ou serious games pelos game designers, vez que o conhecimento da estimulação sináptica que esses softwares induzem conduz ao desenvolvimento de produtos voltados à reabilitação fisioterápica de pacientes ou para a área médica. Veja-se:

Depuis les récentes découvertes sur la plasticité cérébrale, on sait que l’environnement peut modifier les connexions synaptiques du cerveau. Une exposition répétée de l’organisme à un environnement visuel donné (un jeu vidéo par exemple) peut donc affecter à plus ou moins long terme les processus cognitifs qui traitent spécifiquement cet environnement. Dans une étude publiée en 2003 dans le journal Nature, C. Shawn Green et Daphne Bavelier, du département neurosciences de l’université de Rochester, n’observent pourtant pas d’effets aussi spécifiques. Ils trouvent au contraire que la pratique de jeux vidéo d’action modifie tout un ensemble de capacités visuelles attentionnelles. Les auteurs ont comparé les performances de «joueurs» réguliers face à des «non-joueurs» dans différentes tâches. Les résultats font apparaître que l’attention visuelle des joueurs fatigue moins vite que celle des non-joueurs lorsqu’ils doivent rechercher une cible, malgré l’augmentation constante de la difficulté de la tâche. Les joueurs arrivent également à appréhender un plus grand nombre d’objets d’un seul coup d’œil. Par ailleurs, la distribution spatiale de leurs ressources attentionnelles visuelles est plus efficace, en vision centrale comme périphérique: ils repèrent mieux une cible quelle que soit sa distance par rapport au point qu’ils fixaient initialement. Enfin, ils parviennent plus rapidement à recentrer leur attention à la recherche d’une nouvelle cible, après qu’une première ait été détectée. Tout porte à croire que la pratique régulière de jeux vidéo d’action améliore globalement l’attention visuelle sélective (HODENT-VILLAMAN, 2007).

Um perfeito exemplo: o jogo digital MentalPlus. É sabido que os jogos eletrônicos têm a potencialidade de estimular e incrementar habilidades como criatividade, estratégia, capacidade de tomada de decisão e percepção visual. Os games podem alterar a estrutura e a função da arquitetura cerebral. É nesses termos que dispõe Livia Valentin:

So, we started to design the nonviolent game geared toward people with brain injuries or cognitive deficits as a POCD. Considering this capable of digital games offer, we create the MentalPlus® digital game. This tool is very useful to multitask required, improve the executive attention and memory functions. MentalPlus® was created first to evaluate this cognitive functions in POCD but due to its high usefulness for rehabilitation, created twelve themes similar with the first to propose the proper rehabilitation way. MentalPlus® digital game is set up with the aim of being a tool for the cognitive evaluation in a fun way. It based upon rules, tasks, planning and the search for strategies for making a decision. It evaluates the cognitive performance through memory, attention and executive functions (VALENTIN, 2017, p. 161).

Hodges et al (2013), mencionam que, ao lidarem com pessoas que têm a deficiência física denominada hemiparesia, além do problema motor, muitas vezes os pacientes ainda são acometidos de depressão e desmotivação com os métodos tradicionais de fisioterapia. É aí que entram os denominados exergames ou jogos eletrônicos dotados de recursos interativos motores no que diz respeito ao gameplay, de forma a proporcionar uma experiência de jogo divertida e que, ao mesmo tempo, estimula o exercício físico.

No âmbito jurídico, Rocha (2019) analisa como as operadoras de planos de saúde devem prestar os serviços dos tratamentos de gameterapia aos pacientes, para fins de reabilitação, levando em consideração não só a lógica contratual, mas também o princípio da fraternidade e o Acórdão 38/2015 CREFITO. O mesmo se diga quanto à prática terapêutica denominada realidade virtual.

Veja-se, então, como é importante a interação entre o Direito e os Game Studies. No Brasil, verificam-se interessantes iniciativas metodológicas em algumas faculdades de Direito, as quais priorizam a instrução interdisciplinar e reflexiva. Veja-se a passagem do texto de Alex Canal Freitas e Fausto Siqueira Gaia, muito adequada à realidade do consumo de jogos eletrônicos de que se está a falar:

As novas necessidades do mercado consumidor, decorrentes do processo de globalização da economia e da massificação da sociedade, exigem uma mudança na formação do corpo discente, permitindo que estes desenvolvam a capacidade de argumentação e de raciocínio crítico a partir de situações concretas que lhe são postas à apreciação.

Adquire o professor, inserido nesse contexto pedagógico, um novo papel nas atividades de ensino e aprendizagem. Por consequência, as estratégias de ensino outrora utilizadas, como a aula expositiva, devem ser reanalisadas e combinadas com novas estratégias do ensino jurídico, de modo a envolver o aluno no processo de aprendizagem (FREITAS; GAIA, 2015, p. 87).

Tanto o formador de opinião como quem vai se formar devem ter a capacidade de relacionar contextos. Os mercados de trabalho para todas as áreas de conhecimento já estão por demais saturados. Os bons profissionais serão aqueles com ânimo para a inovação, criatividade, percepção para pesquisa e acuidade técnica. Veja-se opinião doutrinária no sentido de que a ênfase na dogmática analítica pura e simples não é suficiente, devendo estar presente a dicotomia entre dogmática e zetética jurídica:

Deste modo, enquanto as tendências tradicional e tecnicista, por exemplo, tinham como pressupostos da aprendizagem a mera repetição do conteúdo aprendido e apreendido, outras tendências, como a libertadora e a crítico-social dos conteúdos, preocupam-se muito mais com a consciência do aluno acerca da realidade em que se encontra inserido, desenvolvendo, assim, sua capacidade crítica.

A opção por uma tendência pedagógica reflete, evidentemente, o modelo de ensino a que se propõe. Nesta perspectiva, analisando-se especificamente o Direito, observa-se a prevalência de tendências que não privilegiam a crítica, mas, ao contrário, os profissionais das Ciências Jurídicas são formados para serem meros repetidores de normas prontas e acabadas, sem que reflitam sobre a própria dogmática em si (ALMEIDA; COSTA, 2015, p. 10).

No mundo do consumo, a filósofa espanhola Adela Cortina utiliza a expressão homo consumens para designar o consumidor atual que atua segundo a lógica mercadológica (CORTINA, 2002). Diversos outros autores usaram expressões como homo ludens para designar o homem que joga; homo faber para distinguir o homem que trabalha e produz; homo sapiens para fazer referência ao homem que tem a capacidade de pensar.

O consumidor de jogos eletrônicos pode ser considerado o homo consumens e homo ludens, aquele que joga, que se entretém, aquele que a partir das décadas de 70 e 80 passou a encontrar na diversão eletrônica uma via de expressão da própria identidade.

A era dos jogos eletrônicos teve início no ano de 1962, com Steve Russell, um estudante do Massachussets Institute of Technology. O jovem criou um jogo denominado Space War, que teve uma ampla repercussão perante os demais alunos das ciências de tecnologia (GLANCEY, 1996). Naquela época, o jogo era extremamente rústico para os padrões atuais, mas já era uma iniciativa que demonstrava que os computadores poderiam um dia oferecer entretenimento e isso ser comercialmente viável. A rentabilidade, porém, não foi encontrada pelo criador originário, mas sim por terceiros que sobrevieram ao seu trabalho.

Outros jogos surgiram com o empenho de outros interessados, tais como Computer Space, concebido por Nolan Bushnell, que teve a ideia de criar a primeira companhia de videogames em 1972, a Atari, que lançou comercialmente o jogo Pong (GLANCEY, 1996). Trata-se do famoso game em que uma bolinha branca permanece rebatendo numa tela de fundo preto, sendo que os jogadores controlam duas pequenas colunas brancas, simulando uma espécie de jogo de tênis.

A companhia de Bushnell lançou o Atari Video Computer System, que teve como jogos Combat, Space Invaders, Pitfall! e Pac Man (GLANCEY, 1996).  Alguns desses jogos antes eram disponibilizados apenas em espaços públicos de entretenimento eletrônico – os arcades – e logo depois foram convertidos para a versão doméstica.

Atualmente, além da função de entretenimento, os jogos eletrônicos inserem-se em diversos outros contextos. No artigo intitulado “Direito médico e game studies”, são destacadas as aplicações práticas dos jogos eletrônicos em diversos temas, evidenciando o campo de aplicação dos Game Studies:

Diante dessas considerações e uma vez já evidenciada a repercussão prática do tema abordado perante os tribunais, veja-se que, neste artigo, foi necessário traçar um plano de trabalho ou recorte: primeiramente, observar o que seria a realidade da cultura eletrônica do consumo e da comunicação como sendo um contexto mais abrangente ou galáxia dentro da qual se encontram as problemáticas a seguir: o mundo da gamificação (gamification); do consumo dos eventos de e-sports, ou seja, as partidas de jogos online patrocinadas e desenvolvidas enquanto esportes (ROCHA; RODRIGUEZ; VITÓRIA, 2016); dos tratamentos fisioterápicos na forma de gameterapia devidamente reconhecida pelo Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (ROCHA, 2017); do cyberbullying, que precisa ser combatido no ambiente virtual, até mesmo por meio de princípios como os da prevenção e precaução (PRUX, 2016); da publicidade veiculada por meio de advergames (ROCHA, 2018a); do jornalismo que chega na forma de newsgames (BARBOZA; SILVA, 2014); além de algumas realidades que dizem respeito à identificação de gêneros nos ambientes virtuais – identidade queerness e heteronormatividade (KROBOVÁ; MORAVEC; ŠVELCH, 2015) (ROCHA, 2019).

Os Game Studies preocupam-se com o design e o projeto do jogo, com a forma como o usuário interage com aquilo que foi concebido pelos game designers e com as repercussões sociais ou antropológicas da utilização dos jogos eletrônicos. Ora, se no Direito do Consumidor existe uma espécie de fato do produto que pode se dar por defeito ou erro de design ou projeto, logo se chega à conclusão que a interação entre as duas áreas de conhecimento é perfeitamente possível. Ainda: o fato do produto por defeito de comercialização ou mácula informativa por parte do fornecedor também pode ocorrer, sendo também objeto de estudo dos juristas e designers de produto.

Tem-se falado em “Publicidade e Direito”, “Psicologia e Direito”, “Neurociência e Direito”, dentre vários outros diálogos. No campo de estudos aqui promovido, o juiz, o advogado, o defensor público ou mesmo o promotor de justiça terão a capacidade de, num caso concreto envolvendo jogos eletrônicos, fazer a imersão na seara dos temas tecnológicos e perceber que existe uma cientificidade a partir do tema “Game Studies e Direito”.

Justiça social, fraternidade e solidariedade passam a ter um escopo maior de resultados práticos, voltados para a pessoa humana no plano de um processo judicial e na busca das soluções e interpretações a serem encontradas pelo operador jurídico. Na doutrina brasileira, tal configuração ganhou a denominação de despatrimonialização ou repersonificação do direito privado.

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Sobre o autor
Thiago dos Santos Rocha

Thiago dos Santos Rocha é um advogado e autor de livros e artigos jurídicos, graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. É especialista em Direito do Consumidor, em Direito Constitucional Aplicado e em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Em seus textos acadêmicos, promoveu o diálogo entre Direito e Game Studies, abordando temas como: videogames e epilepsia; advergames e publicidade infantil; gameterapia e planos de saúde; videogames e política nacional de educação ambiental; etc. Também publicou obras na área de Direito Médico, tendo escrito os livros "A violação do direito à saúde sob a perspectiva do erro médico: um diálogo constitucional-administrativo na seara do SUS" (Editora CRV) e "A aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação médico-paciente de cirurgia plástica: visão tridimensional e em diálogo de fontes do Schuld e Haftung" (Editora Lumen Juris).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Thiago Santos. A informação-advertência no âmbito dos videogames:: por uma proteção consumerista pelos danos causados por epilepsias e lesões físicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6055, 29 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79177. Acesso em: 29 mar. 2024.

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