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O problema do orçamento não-aprovado

Resumo:


  • A não aprovação do orçamento anual pelo Poder Legislativo até o início do exercício financeiro gera uma situação problemática, afetando todos os níveis da Administração Pública e sendo comum em municípios do interior, especialmente no primeiro ano de mandato.

  • Despesas públicas sem previsão legal em lei orçamentária anual são proibidas pela Constituição Federal e pela Lei nº 4.320/64, e a realização de tais despesas pode resultar em sanções penais, civis e administrativas, incluindo a perda de cargo público e a inabilitação para funções públicas por um período.

  • Existem alternativas para lidar com a falta de aprovação do orçamento, como a execução do orçamento do ano anterior em quotas duodecimais, a abertura de créditos adicionais extraordinários, a aprovação de lei para abertura de créditos especiais ou a execução do projeto de lei orçamentária anual não aprovado, cada uma com suas próprias complicações e limitações legais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Situação embaraçosa sucede quando o Poder Legislativo não aprova o projeto de lei do orçamento anual até o início do exercício financeiro. Esse problema ocorre nos três níveis da Administração Pública [1], e é muito recorrente nos rincões do interior do País, mormente no primeiro ano de mandato.

Sabe-se que, pelo princípio da legalidade, não haverá despesa sem lei anterior que a autorize. A Constituição Federal, artigo 167, I, proíbe o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual. Por outro lado, a Lei nº 4.320/64, artigo 6º, exige que todas as despesas constem da lei de orçamento. É o princípio da universalidade.

A ordem jurídica prevê sanções para quem gasta recursos públicos sem amparo na lei orçamentária anual. O Código Penal, artigo 359-D, tipifica a conduta de ordenar despesas não autorizadas em lei [2]. Se o agente for Prefeito Municipal, a condenação definitiva acarretará a perda do cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular (Decreto-Lei nº 201/67, art. 1º, V, e § 2º). Também constitui ato de improbidade administrativa ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei (Lei nº 8.429/92, art. 10, IX [3]).

Ricardo Lobo Torres, citando Stourm, pontifica que "a recusa de aprovação do orçamento é um verdadeiro suicídio do Estado, de modo que se deve procurar resolver o problema" [4]. Mas, diante da circunstância, no início do exercício financeiro, de não se ter aprovado o orçamento público, o que fazer? Aqueles que refletem sobre o assunto têm apontado quatro alternativas: a) execução, em quotas duodecimais, do orçamento do ano anterior; b) autorização de abertura de créditos adicionais extraordinários via medida provisória [5]; c) aprovação de lei autorizativa da abertura de créditos adicionais especiais; d) execução do projeto de lei do orçamento anual encaminhado pelo Poder Executivo para o Legislativo até que a LOA seja aprovada. Cabem algumas reflexões a respeito de cada uma dessas idéias.

A proposta de se executar, em quotas duodecimais, o orçamento do ano anterior, observa Ricardo Lobo Torres, foi adotada nas Constituições brasileiras de 1934 (art. 50, § 5º) e de 1946 (art. 74) e também constam em Constituições estrangeiras, como a da Espanha (art. 143, 4) e da República Federal da Alemanha (arts. 110, 4 e 111), sendo que essa última enumera taxativamente as despesas que podem ser feitas provisoriamente pelo Executivo, autorizando, assim, um orçamento de urgência [6].

Inegavelmente tal proposta é bastante precária. Imagine que essa idéia traz consigo o propósito de se fazer novamente tudo o que já foi executado no ano anterior. Pense na possibilidade de se construir uma estrada no mesmo lugar e com as mesmas especificações daquela que foi feita no ano passado. É claro que isso só tem algum sentido se compreendermos o procedimento como um artifício para financiamento do custeio da máquina administrativa. Isso significa que todo o planejamento e o cronograma de investimentos do Poder Público ficará parado, aguardando a aprovação da LOA.

Em relação à autorização para abertura de créditos adicionais extraordinários via medida provisória, também os problemas são inúmeros. Ora, se os créditos são adicionais, pressupõem, pela sua própria natureza, a existência prévia do orçamento aprovado, com o qual irão ser somados. Desse modo, é difícil compreender o aparecimento de créditos adicionais que não serão acrescentados a orçamento preexistente. Por outro lado, a Constituição Federal determina que a abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto quanto à edição de medidas provisórias (art. 167, § 3º). Se é verdade que esse dispositivo constitucional apresenta uma relação meramente exemplificativa, não há como enquadrar a necessidade de se ter o orçamento tempestivamente aprovado como imprevisível. Aliás, nada no Direito é mais esperado do que a aprovação da lei orçamentária anual.

A edição de lei que autorize a abertura de créditos adicionais especiais é a solução encontrada por José Afonso da Silva. Esse autor - com base no artigo 166, § 8º, da Constituição Federal, segundo o qual os recursos que, em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária anual [7], ficarem sem despesas correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica autorização legislativa [8] - conclui que "não é possível elaborar orçamento para o mesmo exercício financeiro", e que "a Constituição dá a solução possível e plausível dentro da técnica do direito orçamentário: as despesas, que não podem efetivar-se senão devidamente autorizadas pelo Legislativo, terão que ser autorizadas prévia e especificamente, caso a caso, mediante leis de abertura de créditos especiais" [9].

Essa proposta também apresenta complicações. Como já foi dito, a edição de créditos adicionais especiais presume a prévia aprovação da LOA. Por outro lado, na prática, será mais difícil o Executivo negociar, caso a caso, com o Legislativo a aprovação de leis especiais, necessárias para a abertura de tais créditos orçamentários, que a aprovação da própria LOA.

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A execução do projeto de lei do orçamento anual encaminhado pelo Poder Executivo para o Legislativo, até que a LOA seja aprovada, tem precedentes, conforme assinala Ricardo Lobo Torres, nas Cartas autoritárias de 1937 (art. 72, d) e de 1967/69 (art. 68, caput), sendo que a Constituição francesa de 1958 também autoriza a aplicação do projeto de orçamento através de decreto-lei [10].

Também não são poucas as restrições quanto a essa idéia. Prima facie, salta aos olhos que tal artifício desafia a versão orçamentária do princípio da legalidade, pedra angular do Estado Democrático de Direito. A execução de despesas ainda não autorizadas em lei fere toda a concepção do sistema orçamentário brasileiro. A implementação dessa idéia geraria algumas dúvidas: e se a despesa executada com base nesse expediente não constar afinal da LOA aprovada? E se o crédito orçamentário aprovado for menor que a despesa já incorrida, em face de redução da dotação correspondente pelo Poder Legislativo? A execução antecipada da despesa não seria instrumento de pressão sobre o livre arbítrio do Poder Legislativo para fixar as despesas?

Não obstante, essa última saída tem sido a utilizada na esfera federal. A LDO para 1990 (Lei nº 7.800/89), artigo 50, previu que, se o projeto de lei orçamentária não fosse aprovado até o término da sessão legislativa, o Congresso Nacional seria, de imediato, convocado extraordinariamente pelos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, na forma do art. 57, § 6º, inciso II, da Constituição Federal, até que fosse o projeto aprovado. Por outro lado, o parágrafo único desse artigo dispôs que, caso o projeto de lei orçamentária não fosse aprovado até 31 de dezembro de 1989, a sua programação poderia ser executada até o limite de 1/12 (um doze avo) do total de cada dotação para manutenção, em cada mês, até que fosse aprovado pelo Congresso Nacional, vedado o início de qualquer projeto novo.

A LDO para 1995 (Lei nº 8.931/94) não previu a convocação extraordinária do Congresso Nacional, em caso de não-aprovação da LOA, mas estabelecia que, se o projeto de lei orçamentária anual não fosse encaminhado à sanção do Presidente da República até 31 de dezembro de 1994, a programação constante do projeto de lei remetido pelo Poder Executivo, relativa às despesas com custeio, incluídas as com pessoal e encargos sociais, e com o serviço da dívida, poderia ser executada, em cada mês, até o mês em que o projeto fosse encaminhado à sanção, no limite de um doze avo do total de cada dotação (art. 64). As leis de diretrizes orçamentárias dos anos seguintes trouxeram fórmulas semelhantes [11].

A partir da LDO para 2003 (Lei nº 10.524/02) [12], a previsão das despesas que podem ser executadas, no caso de não-encaminhamento tempestivo do projeto da LOA para sanção presidencial, ficou restrita às que representam obrigações constitucionais ou legais da União, relacionadas em anexo (art. 65). Tais autorizações ficaram resumidas às despesas relacionadas com o cumprimento de dispositivos constitucionais referentes às transferências compulsórias [13], às despesas com transferências financeiras da União para Estados e Municípios fixadas em lei [14], ao pagamento das despesas com pessoal e encargos sociais, precatórios, serviços da dívida e equalização de preços e taxas no âmbito das operações oficiais de crédito e encargos financeiros da União.

Diante da estratégia adotada no âmbito federal, pode-se imaginar que as leis de diretrizes orçamentárias da União têm, através da reedição de normas transitórias, suprido a lacuna existente no ordenamento jurídico, que não dispõe de regra que resolva tal problema.

Mas será que o direito positivo, em sua dimensão orçamentária, é mesmo lacunoso? Acredita-se que não. O sistema orçamentário brasileiro, que tem a missão de ser instrumento de planejamento e execução dos programas governamentais - e por isso é caracterizado pelo encadeamento de normas orçamentárias, começando pelo PPA, passando pelas diretrizes orçamentárias e chegando à execução do plano estipulado por intermédio das leis orçamentárias -, não admite a intempestividade de qualquer de suas leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA). Essa constatação se revela nos termos do artigo 57, §2º, da Constituição Federal que impõe a continuidade da sessão legislativa até a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias. Se é assim com a LDO, não tem por que ser diferente com o PPA, e muito menos com a LOA [15]. Outra evidência dessa vontade do sistema orçamentário está expressa no artigo 32 da Lei nº 4.320/64, segundo o qual, se não receber a proposta orçamentária no prazo fixado nas Constituições ou nas Leis Orgânicas dos Municípios, o Poder Legislativo considerará como proposta a lei de orçamento vigente [16].

Como se vê, o ideal do sistema orçamentário brasileiro não tolera demora nas várias etapas de planejamento e execução das ações governamentais. Disso resulta, pela própria natureza, que não é possível editar norma que resolva os problemas decorrentes do atraso na aprovação das leis orçamentárias.


NOTAS

  1. A LOA da União do ano de 2.000 (Lei nº 9.969/00) foi aprovada no dia 11 de maio de 2.000.
  2. A pena prevista é de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
  3. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito ao ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos (Lei nº 8.429/92, art. 12, II).
  4. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Orçamento na Constituição. Volume V. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 247.
  5. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que os Estados-membros podem adotar a figura da medida provisória mediante a previsão na Constituição Estadual (ADI 812-9 MC / TO, Rel. Min. Moreira Alves, Plenário do STF, 01/04/1993, D.J. 14.05.93, p. 09002). Como bem diz Alexandre de Moraes, também é possível que, no âmbito municipal, haja previsão de medidas provisórias a serem editadas pelo Prefeito Municipal e analisadas pelo Poder Legislativo local, desde que essa faculdade esteja expressa na Constituição Estadual e na respectiva Lei Orgânica do Município (MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atras, 2002, p.1139).
  6. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Orçamento na Constituição. Volume V. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 247.
  7. Em verdade, não cabe ao Poder Legislativo simplesmente rejeitar o projeto de LOA. A elaboração do orçamento público é tarefa afeta à Casa Legislativa, tanto é assim que, caso o Executivo não encaminhe o projeto em tempo hábil, deve o Legislativo trabalhar o orçamento corrente como proposta orçamentária (Lei nº 4.320/64, art. 32). Se o projeto de LOA encaminhado pelo Executivo for ruim, na avaliação do Legislativo, o que esse Poder deve fazer é proceder aos ajustes que entender necessários, aprovando o projeto de lei conforme seu arbítrio (observadas as restrições impostas pela Constituição Federal, artigo 166, §§ 3º e 4º), encaminhando o projeto aprovado para sanção do Executivo. Na forma do processo legislativo, os vetos apostos pelo Chefe do Executivo serão submetidos à apreciação final do Legislativo, que poderá derrubá-los (CF, art. 66, § 4º).
  8. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25º ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 747.
  9. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25º ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 748.
  10. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Orçamento na Constituição. Volume V. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 247.
  11. Vide Lei nº 9.082/95, art. 49; Lei nº 9.293/96, art. 53; Lei nº 9.473/97, art. 63; Lei nº 9.692/98, art. 72; Lei nº 9.811/99, art. 84; Lei nº 9.955/00, art. 81; Lei nº 10.266/01, art. 78.
  12. Vide Lei nº 10.707/03, art. 68; Lei nº 10.934/04, art. 70; Lei nº 11.178/05, art. 74.
  13. São as transferências constitucionais por repartição de receita (FPE, FPM, IPI - proporcional às exportações, etc.) e o Fundef complementação.
  14. São despesas relativas a programas referentes à alimentação escolar, bolsa alimentação, atendimento ambulatorial, emergencial e hospitalar pelo SUS, atendimento assistencial básico do SUS, distribuição de medicamentos para doenças sexualmente transmissíveis, dinheiro direto na escola, fundo partidário, saúde da família (SUS), farmácia básica (SUS), ações de vigilância sanitária (SUS), ações de prevenção e controle das doenças transmissíveis (SUS), ações de combate às carências nutricionais (SUS), programas municipais de garantia de renda mínima, auxílio-alimentação, salário-educação, compensação da isenção do ICMS aos estados exportadores, pagamento de benefícios do regime geral da previdência social, subvenções econômicas, contribuição à previdência privada, indenizações e restituições do Proagro, abono salarial, benefícios para pessoas idosas e para portadoras de deficiência, seguro-desemprego, auxílio-transporte, transferências da receita de concursos de prognósticos.
  15. Nesse sentido, conforme já consta neste capítulo, a LDO para 1990 (Lei nº 7.800/89), artigo 50, caput, dispôs que, se o projeto de lei orçamentária não fosse aprovado até o término da sessão legislativa, o Congresso Nacional seria, de imediato, convocado extraordinariamente pelos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, na forma do art. 57, § 6º, inciso II, da Constituição Federal, até que fosse o projeto aprovado.
  16. Essa norma coloca o peso maior na responsabilidade do Poder Legislativo, que pode prescindir do projeto do Executivo para cumprir sua missão.
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Sobre o autor
José de Ribamar Caldas Furtado

conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão, mestre em Direito pela UFPE, professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário da UFMA, instrutor da Escola do Ministério Público do Maranhão

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURTADO, José Ribamar Caldas. O problema do orçamento não-aprovado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 949, 7 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7929. Acesso em: 22 dez. 2024.

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