O ramo do direito e processo penal incide sobre as questões mais problemáticas do estudo global do Direito em todo o mundo. Na verdade, constitui uma dicotomia, no sentido que ao mesmo tempo, como uma de suas funções, visa prevenir e reprimir a prática de infrações penais, quando, por outro lado, visa limitar o poder de punir do Estado.
Não diferente, é a questão da suposta prática do delito de tráfico de drogas e a inviolabilidade domiciliar. Sabe-se que o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal tutela a inviolabilidade ao domicílio, ao mencionar que: a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
Isto significa que, por questões óbvias e em razão do mínimo de garantias que o cidadão necessita para conviver numa sociedade, a inviolabilidade da residência do indivíduo é a regra no Ordenamento pátrio, exceto mediante decisão judicial devidamente fundamentada, nos moldes do artigo 93, inciso IX da CF.
Neste sentido, percebe-se que este direito fundamental é relativo, não absoluto, afinal há exceção a inviolabilidade do domicílio. Entre estas situações excepcionais, tem-se aquela objeto deste artigo, qual seja, o flagrante delito, quando, então, de acordo com a Constituição Federal, não há necessidade de ordem judicial para adentrar ao imóvel de terceiro.
O artigo 303 do Código de Processo Penal menciona, ainda, que: nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência. Ou seja, nos crimes tido como permanentes, em que a execução prolonga-se no tempo, a flagrância delitiva acompanha a execução, não cessando enquanto o delito estiver sendo praticado.
É o que ocorre, geralmente, em supostos delitos de tráfico de drogas que prevê, no caput do artigo 33 da Lei 11.343/06, em sua maioria, verbos que conduz a configuração do delito na modalidade permanente, v.g., ter em depósito, transportar, guardar.
Não rara as vezes, prepostos da polícia adentram os imóveis de “suspeitos” de estarem praticando o delito de tráfico de drogas sob o fundamento que há, nestes casos, a prática da traficância, visto que, por exemplo, existe “suspeitas” que o cidadão guarda substâncias entorpecentes em sua residência.
Em razão disto, violam o domicílio alheio com vistas a supostamente apreender as substâncias ora mencionadas ou, até mesmo, apurar eventual prática delitiva. Ocorre que nem sempre o “suspeito” está praticando o delito em apurado, muito menos em situação de flagrante delito, mas, mesmo assim, tem o seu imóvel violado pelos agentes do Estado.
Insta mencionar que o artigo 150 do Código Penal tipifica a conduta delituosa daquele que: entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências. Entretanto, os policiais que adentram legalmente ao imóvel do agente não cometem crime, ante a excludente de antijuridicidade do estrito cumprimento do dever legal, nos termos do artigo 23, inciso III do CP.
Por constituir direito fundamental, expresso na Constituição Federal, os Tribunais Superiores encontram-se atentos a violação do domicílio de terceiro por prepostos do Estado, ante as inúmeras notícias de abuso e violação deste direito por parte dos policiais, quando, em situações diversas, adentram o imóvel de outrem, sem maiores critérios técnicos, ou melhor, em desconformidade com as exceções legais.
Em sendo assim, para garantir a eficácia da proteção legal ao imóvel, face a dignidade da pessoa humana, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça possui entendimento consolidado, através do informativo n. 0606, de 02 de agosto de 2017, que o simples fato do delito de tráfico de drogas ser, em alguns verbos, permanente, isto, por si só, não autoriza a invasão de domicílio pela polícia, senão vejamos.
Não configura justa causa apta a autorizar invasão domiciliar a mera intuição da autoridade policial de eventual traficância praticada por indivíduo, fundada unicamente em sua fuga de local supostamente conhecido como ponto de venda de drogas ante iminente abordagem policial.
O STJ tem entendido corretamente que, mesmo o delito de tráfico de drogas sendo permanente, e que, teoricamente, autoriza a invasão domiciliar em virtude da exceção do flagrante delito, necessário se faz, ainda, a comprovação da justa causa.
A justa causa nada mais é do que a prova da existência do crime e os indícios suficientes de autoria, o denominado fumus commissi delicti. Neste condão, percebe-se que o STJ encontra-se com maior rigidez e acerto indiscutível, na comprovação dos indícios suficientes de autoria, na medida que não basta a mera ilação, suposta fuga, para que o preposto policial adentre o imóvel de outrem, sob pena da prisão em flagrante ser ilegal e, consequentemente, a prova ser ilícita, conforme artigo 5º, inciso LVI da CF e artigo 157 do CPP.
Este entendimento do STJ é de acerto manifesto, visto que o direito a inviolabilidade do imóvel é regra no Ordenamento, não podendo ser banalizado o ingresso de policiais por meras “suspeitas”, ilações infundadas e rasas, de que terceiro encontra-se praticando determinado crime, sobretudo o tráfico de drogas.
É mister ressaltar, ainda, que estas situações ocorrem, em sua grande maioria, nas periferias, locais onde a atuação do Estado é, basicamente, a policial e, consequentemente, não há maiores preocupações em garantir a eficácia das mínimas garantias do convívio social e da dignidade da pessoa humana. Necessário frear e podar os poderes estatais, sobretudo da polícia, sob pena de abusos manifestos.
Insta reproduzir, além do entendimento consolidado da 6ª Turma do STJ através do informativo 0606, a jurisprudência mais atual deste Tribunal, acerca do tema, em que, expressamente, atesta a nulidade da prova e do ingresso policial no imóvel de terceiro, ante a ausência de justa causa, senão vejamos.
Processo HC 494547/MA HABEAS CORPUS 2019/0050053-0 Relator(a) Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR (1148) Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA Data do Julgamento 13/08/2019 Data da Publicação/Fonte DJe 04/10/2019 Ementa HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA. FLAGRANTE. BUSCA DOMICILIAR. FALTA DE JUSTA CAUSA. NULIDADE DE PROVAS CONFIGURADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a mera denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, inexistindo, nestas situações, justa causa para a medida (REsp n. 1.790.383/SP, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 6/5/2019). 2. Hipótese em que a invasão de domicílio pelos policiais se fundou tão somente em uma denúncia anônima de que, dentro da residência, o paciente estaria portando certa quantidade de entorpecente, o que não caracteriza elemento objetivo, seguro e racional apto a justificar a medida. 3. Ordem concedida para anular as provas obtidas mediante a busca domiciliar, bem como as dela decorrentes, devendo ser desentranhadas dos autos; e para revogar a prisão preventiva imposta ao paciente.
Em suma, conclui-se que: o imóvel do cidadão é inviolável, havendo a exceção do flagrante delito. Contudo, especialmente nos possíveis delitos de tráfico de drogas, a 6ª Turma do STJ possui entendimento consolidado que não basta o delito ser permanente, mas necessita comprovar a justa causa para legitimar a violabilidade do domicílio, a fim de coibir abusos estatais, sob pena de ilegalidade da prisão em flagrante, ilicitude da prova, além da responsabilidade civil, penal e administrativa do agente estatal.
Yuri Tainan Santos Rozário
Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador – UCSal.