1. INTRODUÇÃO
O presente estudo busca verificar a realização do ativismo judicial, como forma de implementação de direitos fundamentais por parte do Estado, cuja dificuldade da efetivação, seja por questões políticas, judiciais ou até mesmo orçamentárias podem vir a ensejar o estado de coisas inconstitucional.
Diante do amplo rol de direitos e garantias fundamentais, nem sempre o Estado consegue a plena efetivação de tais direitos, atraindo situações fáticas que vão de pleno desencontro ao estabelecido na Constituição. Se o Poder Judiciário se tornou uma via alternativa de concretização de direitos constitucionais frente à inércia ou incapacidade do Executivo e Legislativo, poderia fazê-lo mediante o ativismo nas hipóteses de estado de coisas inconstitucional?
Diante desse quadro, faz-se necessário questionar os limites da atuação judicial em questões estatais, sob pena de usurpação dos Poderes, mesmo que em funções atípicas. Em contraponto, serão analisadas as hipóteses nas quais a ingerência do Judiciário é essencial, diante de situações e casos tão complexos em que o ativismo judicial se torna necessário.
Serão pincelados alguns aspectos do ativismo judicial, tratando de seu conceito, em especial no Supremo Tribunal Federal, passando para a tensão entre ativismo judicial e autocontenção judicial (self-restraint), a fim de delimitar parâmetros para o ativismo, assim como observar situações em que o Judiciário não deve imiscuir em questões da competência do Executivo.
Tratar-se-á do princípio da dignidade da pessoa humana, sob a ótica do ativismo judicial e do estado de coisas inconstitucional. Nesse sentido, após sua conceituação e análise da importância em nosso ordenamento jurídico, pretende-se relacionar a dignidade da pessoa humana ao estado de coisas inconstitucional.
Apresenta o trabalho uma análise do ativismo judicial diante do estado de coisas inconstitucional, em um contexto no qual há diversas violações de direitos amparados pela Constituição, além de analisar os limites e a legitimidade da atuação do Judiciário, bem como hipóteses onde a mesma é necessária, a fim da promoção da dignidade da pessoa humana.
Em continuidade, trata o estado de coisas inconstitucional a partir do âmbito jurídico nos países latino-americanos, especialmente na Colômbia. Posteriormente, será feita uma breve análise sobre o Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, cujo conceito foi discutido em decorrência da ação de descumprimento de preceito fundamental nº347 (ADPF 347), resultando no reconhecimento do estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário nacional.
Por fim, analisado o ativismo como justificante em situações de graves violações dos direitos, tendo em vista a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, as atenções serão voltadas a delimitar a atuação do Judiciário para que este não seja sempre o último e único responsável para cumprimento das normas constitucionais, bem como que não usurpe ou acumule funções dos outros Poderes da República.
2. O ATIVISMO JUDICIAL
É certo que o tema voltado ao ativismo judicial, não só por ser um tema em voga no campo dos debates políticos e jurídicos, é extremamente amplo e possui uma série de nuances e peculiaridades, as quais não serão tratadas em sua totalidade e profundidade, tendo em vista não ser a intenção do presente trabalho esgotar a análise sobre o tema. Pretende-se, aqui, introduzir o conceito e alguns de seus aspectos, em especial no ordenamento jurídico pátrio, para que posteriormente seja feita uma relação com os outros temas do estudo.
Nesta linha, podemos entender ativismo judicial como o fenômeno jurídico no qual o Poder Judiciário imiscui nos demais poderes e suas decisões políticas, através de decisões jurisdicionais, tendo como base a aplicação ampliada de normas constitucionais e infraconstitucionais. Afirma Carlos Alexandre de Azevedo Campos que ativismo judicial é:
o exercício expansivo, não necessariamente ilegítimo, de poderes político-normativos por parte de juízes e cortes em face dos demais atores políticos, que: (a) deve ser identificado e avaliado segundo os desenhos institucionais estabelecidos pelas constituições e leis locais; (b) responde aos mais variados fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais presentes em contextos particulares e em momentos históricos distintos; (c) se manifesta por meio de múltiplas dimensões de práticas decisórias.1
Com o advento da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal, que sempre ocupou lugar de destaque, na atualidade se encontra cada vez mais em evidência, seja negativa ou positivamente, observado que o ativismo judicial efetivado pela referida Corte se tornou um assunto recorrente em discussões doutrinárias. De toda forma, é um fenômeno que pode ser observado em diversos ordenamentos mundiais, dada a relevância do controle judicial de constitucionalidade, em caráter abstrato e concreto.
Entretanto, a capacidade de juízes e tribunais tomarem decisões políticas é frequentemente criticada, sob a alegação de violação à independência dos poderes, bem como de outros princípios democráticos que tornariam o Estado Democrático de Direito em um Estado Jurisdicional de Direito2.
Deixa-se para melhor análise em casos concretos sobre os posicionamentos que, de plano, repudiam o ativismo judicial, até mesmo porque parte dos casos submetidos ocorrem devido à inércia dos demais poderes na resolução das questões, motivados muitas das vezes pelo receio de tomar medidas impopulares e que comprometem pretensões políticas futuras.
Pode-se afirmar que os demais Poderes bem como a sociedade transferem a responsabilidade de decidir questões de alta relevância política3 e social ao Judiciário, o qual por sua vez também não pode se manter inerte diante do conflito.
Nesse sentido, é preciso salientar que é vedado ao julgador e às Cortes o julgamento non liquet, positivado na Lei de Introdução de Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei 4.567/424.
Ademais, é necessário ressaltar o espaço onde o ativismo judicial se mostra mais presente: o dos hard cases, situações onde se verifica uma lacuna legal ou obscuridade de regras aplicáveis para a solução do conflito, de modo que enseja profunda reflexão pelo julgador e o uso de concepções que correlacionem o Direito com outros campos do saber, filosofia, política, dentre outros – inclusive a moral e ética. Nesta esteira:
Esse espaço especial do ativismo judicial é o das importantes questões constitucionais, aquelas que interferem marcadamente nos processos político-democráticos, que se ocupam de tormentosos conflitos de valores morais e políticos, alguns mesmo divisores de águas que, de tão relevantes, ‘determinam a natureza de uma sociedade e a qualidade de uma civilização’. Esses são os conflitos, principalmente envolvendo direitos fundamentais e limites de autoridade do governo, que mobilizam os poderes políticos e a sociedade em torno da solução a ser dada pela corte.5
Portanto, não se trata apenas de uma deliberação dos julgadores e das cortes constitucionais, mas também de uma gama de fatores, dentre eles a inércia dos demais poderes da república. Insta salientar que, da mesma forma em que ocorre a politização do judiciário, há também a judicialização da política, o que motiva a estruturação do ativismo judicial.
2.1 Ativismo Judicial x Self-restraint
Em contraponto à teoria do ativismo judicial, destaca a teoria da autocontenção, autorrestrição ou self restraint, de origem norte-americana que ganhou força no final do século XIX, cujas propostas têm procurado diminuir a participação das cortes em decisões políticas e morais complexas, da qual se destacam como expoentes as teses de James Bradley Thayer, com a proposta do minimalismo substantivo; Alexander Bickel e as virtudes passivas; Cass Sunstein e o minimalismo judicial e Adrian Vermeule e a análise institucional da capacidade decisória das cortes, visando estabelecer limites na ingerência judiciária nos demais poderes, vistas no presente trabalho de forma superficial, eis que não se direciona ao principal objeto do estudo.
Segundo a teoria, uma vez que o Judiciário não é composto por representantes eleitos pelo povo, o mesmo carece de legitimidade para decidir questões de ordem pública-política. Nesse sentido, pela tese da autorrestrição,
Exige-se que os juízes evitem intromissões intensas e frequentes na esfera de liberdade do legislador. Trata-se da doutrina da autocontenção (self-restraint) do Judiciário, fortemente presente nos Estados Unidos. Critério básico é o requisito de inconstitucionalidade clara-evidente, aplicando-se a “regra do caso duvidoso”. Na dúvida, prevalece a opção do legislador, devendo o julgador abster-se de declarar a inconstitucionalidade: in dubio pro legislatore.6
No âmbito da autorrestrição judicial, podemos mencionar também algumas de suas dimensões. Segundo Carlos Alexandre de Azevedo Campos7, as condutas judiciais são orientadas pelos propósitos de deferência e da prudência, que são os núcleos da postura judicial autocontida que classifica como i) autorrestrição judicial estrutural, que subdivide-se em razão da autoridade jurídica constitucional e razão da capacidade epistêmica; ii) autorrestrição judicial prudencial, que subdivide-se em política e funcional.
A autorrestrição judicial estrutural é a clássica autolimitação do poder judicial como exigência da própria ideia de estrutura de divisão dos poderes, constitucionalmente estabelecida, respeitada a equiparação e não intervenção.
Sua subdivisão resulta primeiramente do status de autoridade constitucionalmente atribuído ao agente que praticou o ato normativo sujeito a controle de constitucionalidade.
Quanto à capacidade epistêmica, esta consiste na deferência como modéstia judicial em favor do conhecimento mais privilegiado de outros poderes sobre as matérias em discussão.
No tocante a autorrestrição judicial prudencial, propõe-se a preservação institucional das cortes. Subdivide-se politicamente no temor das mesmas a possíveis reações adversas e funcionalmente é observada na preocupação dos Juízes com os efeitos sistêmicos e negativos das decisões sobre a própria funcionalidade da corte.
Destarte, ao tempo que o ativismo judicial significa o poder dos juízes e tribunais frente a outros agentes políticos, a autorrestrição significa contração e deferência aos demais Poderes. Assim, tal núcleo clássico, voltado a autorrestrição estrutural, deve ser ampliado a fim de encontrar situações de restrição judicial que não são exatamente de acatamento de posicionamentos de outros poderes, mas sim com finalidade de preservar as próprias instituições do Judiciário. Não é incomum que juízes se abstenham de julgar casos que possam incidir em aumento de litigância ou que cause reflexos institucionais.
Retornando à tensão do ativismo judicial e autocontenção, os críticos do ativismo judicial, como Lenio Luiz Streck8, acusam os juízes de muitas vezes criarem o direito ao invés de aplicar a legislação vigente. Nesse sentido, o julgador ativista realizaria uma atividade substitutiva da atividade legislativa, garantindo aspectos que distorceriam ou até mesmo iriam de contramão à vontade do legislador. De tal modo, especialmente no que tange às cortes constitucionais, o ativismo judicial estaria sendo utilizado para atribuir competências legiferantes aos julgadores, em uma espécie de normalização de uma função que, em tese, deveria ser atípica e limitada à própria estrutura do judiciário.
Ocorre que, de fato, juízes e cortes ativistas não se sentem restringidos à literalidade das Constituições e da legislação infraconstitucional. Há certa deliberação em utilizar da equivocada abstrativização de princípios, tendo como norte o cumprimento dos preceitos constitucionais e estruturantes do ordenamento jurídico frente às transformações sociais. Adeptos do ativismo judicial enxergam nas normas constitucionais certa plasticidade e, dado seu dinamismo, afastam o sentido literal do texto se necessário, a fim de aproximar a norma aos casos concretos e ao momento histórico presente. Além disso, é importante ressaltar a ocorrência da omissão legislativa inconstitucional, situação em que o Legislativo ou o Executivo são inertes em suas funções típicas, podendo resultar em quadros graves como o Estado de Coisas Inconstitucional.
Portanto, em tensões como a do ativismo judicial e autorrestrição, observamos que em determinadas circunstâncias a divisão dos Poderes e Funções delineadas na Constituição são, pelo exercício do primeiro, mitigados. Na realidade de muitos ordenamentos jurídicos, a exemplo do pátrio, em que pese as atribuições de cada Poder, o Judiciário, por sua coercibilidade e maior estabilidade institucional se torna responsável pela efetivação de diversos direitos assegurados constitucionalmente. O próprio ativismo judiciário, em que pese as tentativas de autocontenção, é decorrente de certa judicialização de questões públicas e, nesse sentido, tem se reforçado a atuação ativista em face da crise de representatividade das instituições democráticas e dos demais poderes alheios ao Judiciário.
2.2 Breve consideração sobre o Ativismo judicial no Brasil
No que concerne ao ativismo judicial no Brasil, para a finalidade deste trabalho teremos como escopo sua observância pós Constituição de 1988, haja vista diversas modificações na estrutura do Judiciário, bem como ao funcionamento do Supremo Tribunal, que não se limita à Corte Constitucional. Ademais, promulgada poucos anos após o fim da ditadura militar, a Constituição de 1988 é responsável pelo renascimento ampliado do Direito constitucional no Brasil, carregando em seu texto um vasto rol de direitos e garantias fundamentais os quais requerem esforços de todos os entes da federação e dos Poderes para sua efetivação.
A própria Constituição estabeleceu em seu texto ações e remédios jurídicos em caso de descumprimento de seus preceitos, de forma a ter eficácia máxima, a exemplo o mandado de segurança, habeas data, habeas corpus, dentre outros. Assim, em que pese a existência destes meios, têm se mostrado insuficientes, de modo a ser frequente a ingerência do Judiciário em questões de políticas públicas, em especial saúde e educação, bem como em processos eleitorais dadas as frequentes ilegalidades.
Em que pese o excesso de demandas no Judiciário, em especial no Supremo Tribunal Federal,9 e decorrente disso, a demora na prestação jurisdicional, os avanços sociais foram significativos, sendo muitos deles creditados a uma postura proativa do Judiciário.
Nessa esteira, o ativismo judicial foi fundamental para a efetivação de uma série de direitos que foram assegurados na Constituição sob a forma de norma programática, e seja por desídia ou opção dos demais poderes, jamais foram efetivados. Não obstante o Poder Público utilizar o princípio da reserva do possível em demandas coletivas e particulares, a técnica do ativismo judicial foi crucial para que o Supremo Tribunal Federal afastasse o referido princípio, ao se tratar de direitos que envolvem o mínimo existencial10.
No que tange à efetivação de direitos fundamentais e ativismo judicial, é assaz oportuna os dizeres do professor e mestre Daniel Sarmento:
Até então, o discurso predominante na nossa doutrina e jurisprudência era o de que os direitos sociais constitucionalmente consagrados não passavam de normas programáticas, o que impedia que servissem de fundamento para a exigência em juízo de prestações positivas do Estado. As intervenções judiciais neste campo eram raríssimas, prevalecendo uma leitura mais ortodoxa do princípio da separação de poderes, que via como intromissões indevidas do Judiciário na seara própria do Legislativo e do Executivo as decisões que implicassem controle sobre as políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos sociais. Hoje, no entanto, este panorama se inverteu. Em todo o país, tornaram-se frequentes as decisões judiciais determinando a entrega de prestações materiais aos jurisdicionados relacionadas a direitos sociais constitucionalmente positivados. Trata-se de uma mudança altamente positiva, que deve ser celebrada. Atualmente, pode-se dizer que o Poder Judiciário brasileiro ‘leva a sério’ os direitos sociais, tratando-os como autênticos direitos fundamentais, e a via judicial parece ter sido definitivamente incorporada ao arsenal dos instrumentos à disposição dos cidadãos para a luta em prol da inclusão social e da garantia da vida digna. [...]
As complexidades suscitadas são, contudo, insuficientes para afastar a atuação do Poder Judiciário na concretização dos direitos sociais. Com a consolidação da nova cultura constitucional que emergiu no país em 1988, a jurisprudência brasileira deu um passo importante, ao reconhecer a plena justiciabilidade dos direitos sociais. No entanto, essas dificuldades devem ser levadas em conta. Vencido, com sucesso, o momento inicial de afirmação da sindicabilidade dos direitos prestacionais, é chegada a hora de racionalizar esse processo. Para este fim, cumprem importante papel, como parâmetros a orientar a intervenção judicial nesta seara, duas categorias que vêm sendo muito discutidas na dogmática jurídica: a reserva do possível e o mínimo existencial[...].11
É importante ressaltar que, apesar dos demais Poderes questionarem em demandas individuais ou relativas a relações verticais de direitos fundamentais a reserva do possível, quando se tratam de casos de maior repercussão ou que envolvam uma atuação maior dos Poderes, os mesmos são inertes e não apresentam tanta resistência às decisões do Judiciário12, tampouco o protagonismo do Supremo Tribunal Federal.
Desse modo, os próprios Poderes contribuem para que a Corte Constitucional pátria amplie seu poder decisório e, consequentemente, pratique o ativismo judicial, sendo o que for objeto de discordância resultante de reação legislativa13.
3. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A observância da dignidade da pessoa humana adquiriu um status de super princípio 14 em grande parte do ocidente, presente em todos os ordenamentos jurídicos como um princípio basilar do Estado Democrático de Direito. Não obstante as mais diversas aplicações e interpretações particulares sobre o princípio, de uma forma geral ele pode ser entendido como:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.15
A definição acima de dignidade da pessoa humana, vista como contemporânea, possui raízes religiosas, no sentido do homem ser feito à imagem e semelhança de Deus16. Posteriormente ao advento das ideias iluministas e consequentemente, à concepção do homem como o centro do Universo, a definição de dignidade da pessoa humana migrou para o campo da filosofia, baseada na razão e autonomia do ser. O conceito a partir deste ponto se torna um valor, um axioma atrelado à noção de justo e bom, situando-se lado a lado de outros valores caros ao Direito como justiça e solidariedade e se tornando a justificação moral de direitos humanos e fundamentais.
Às décadas iniciais do Século XX, o conceito de dignidade da pessoa humana começou a aparecer de forma tímida em documentos jurídicos como a Constituição Mexicana (1917) e de Weimar (1919), ainda sem a relevância que teria a partir do fim da primeira metade do século17.
Dado o impacto da II Grande Guerra nos mais diversos âmbitos, o conceito de dignidade da pessoa humana evoluiu em razão do surgimento de uma corrente pós-positivista, que reaproximou o Direito da Ética e Política, a chamada “Virada Kantiana”, assim como a inserção do conceito e observância do princípio da dignidade da pessoa humana em diversos tratados 18, cartas e Constituições19 de Estados. Aqui, a dignidade da pessoa humana além de ser um valor moral fundamental, se torna um princípio jurídico. Nesta linha, os ensinamentos de Ingo Sarlet:
[...] importa retomar e enfatizar a noção de que a capacidade de o conceito e referencial normativo (político, moral e jurídico) da dignidade da pessoa humana cumprir sua função no contexto da já mencionada globalização jurídica depende acima de tudo do grau de comprometimento com a dignidade de cada uma e de todas as pessoas por parte do Estado, da comunidade e dos indivíduos, estando, portanto, vinculado também aos níveis vigentes do que se tem designado de um “patriotismo constitucional. Assim, se é certo que a pretensão universalista da dignidade está diretamente relacionada à sua secularização e sua abertura ao pluralismo, também parece correto vislumbrar que a expansão do discurso da dignidade guarda relação com uma espécie de caráter religioso da própria noção de dignidade da pessoa humana, no sentido de uma crença (sempre também um ato de fé!) na condição humana e no valor reconhecido a cada pessoa, razão pela qual já se tem até mesmo falado num tipo de “religião civil”.20
Insta ressaltar que essa própria difusão do princípio nos mais diversos ordenamentos e tratados também foram responsáveis por certa abstrativização do conceito e de nuances que não são aplicadas de modo uniforme de forma que a noção de dignidade variou e teve impactos diferentes em cada povo, o que pode ter criado um princípio retórico e ambíguo, em hipóteses de má aplicação e interpretação, bem como o princípio banalizado por se encaixar em praticamente qualquer hipótese de violação de direitos fundamentais:
Outros estudiosos apontam os riscos de utilização da dignidade em nome de uma moral religiosa ou paternalista. Nos Estados Unidos, já foi criticada como sendo manifestação de um constitucionalismo de valores, comunitarista e com aspectos socialistas, sobretudo por admitir direitos sociais, que geram prestações positivas, como trabalho, planos de saúde ou meio-ambiente saudável. Tal tradição europeia, alega-se, seria incompatível com o constitucionalismo americano, fundado na liberdade individual e na proteção dos direitos.21
O princípio da dignidade da pessoa humana, segundo o Ministro Luís Roberto Barroso22, pode ser sistematizado em três grandes categorias, sendo estas a direta, a interpretativa e a negativa. Através da eficácia direta, o princípio é aplicado sob o caso concreto como se fosse uma regra jurídica, em observância ao seu núcleo aplicável. Pelo princípio da dignidade da pessoa humana se extraem diversas regras constitucionais ou infraconstitucionais, o que densifica o princípio. Pela eficácia interpretativa, a dignidade humana se torna um parâmetro de valoração e um norte a ser seguido em hipóteses de ponderação de princípios e conflitos de direitos. Por sua vez, a eficácia negativa influi em abstenção de qualquer norma – regra ou princípio – que confronte ou anule o princípio da dignidade humana. Neste aspecto, sua eficácia negativa pode implicar inconstitucionalidade da norma confrontada.
Por fim, resta frisar que o princípio da dignidade humana possui três conteúdos essenciais, sendo estes o valor intrínseco, a autonomia (autodeterminação) e o valor social da pessoa humana (proteção dos direitos perante terceiros e si mesmo). Afirma Luís Roberto Barroso:
[...] para finalidades jurídicas, a dignidade da pessoa humana pode ser dividida em três componentes: valor intrínseco, que se refere ao status especial do ser humano no mundo; autonomia, que expressa o direito de cada pessoa, como um ser moral e como um indivíduo livre e igual, tomar decisões e perseguir o seu próprio ideal de vida boa; e valor comunitário, convencionalmente definido como a interferência social e estatal legítima na determinação dos limites da autonomia pessoal23.
Esse trinômio – valor intrínseco, autonomia, valor comunitário – sofre de forte influência pelo pensamento kantiano e apresenta suporte na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
3.1 A Dignidade da Pessoa Humana em destaque no direito brasileiro
O princípio da dignidade da pessoa humana ocupa posição ímpar no ordenamento jurídico brasileiro, e está positivado logo no primeiro artigo de nossa Constituição Federal24 como um dos fundamentos da República. Afirma-se, inclusive, que o princípio é um vetor interpretativo, ou seja, valor-fonte a nortear toda a interpretação de nosso ordenamento jurídico, de modo que a sua observância é obrigatória até mesmo para a manutenção dos demais princípios democráticos e republicanos. Nesta esteira, o pensamento do Ministro Alexandre de Moraes:
O princípio consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário entre semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria. 25
No que concerne à aplicação do princípio nas decisões judiciais, por muitas das vezes o princípio é citado de forma argumentativa a justificar a aplicação de outros princípios ou regras, dado o vasto rol de direitos fundamentais elencados na Constituição. Foi utilizado em demasia no conflito de normas e ponderação de princípios constitucionais, bem como em casos de lacuna normativa (a exemplo da união homoafetiva e a recente discussão a respeito da criminalização da homofobia26).
No âmbito dos julgados do Supremo Tribunal Federal em específico, a dignidade da pessoa humana além dos exemplos supracitados recorrentemente é utilizada em casos que envolvem a liberdade do indivíduo. Desse modo, foi um dos fundamentos centrais que permitiu a mudança de entendimento da Corte no que concerne à prisão por dívida, considerando ilegítima sua aplicação na hipótese de depositário infiel, resultando na edição da Súmula Vinculante n. 25.27
Relativo à esfera penal e processual penal, não são raros os julgados que impedem a instrumentalização do acusado ou preso frente ao Estado, tendo como parâmetro a dignidade da pessoa humana28. É conferido ao acusado e ao preso um vasto rol de direitos e garantias, como o direito ao contraditório, ampla defesa, livramento condicional, progressão de regime, permissão de saída, uso de algemas somente em situações necessárias, salubridade e humanização dos estabelecimentos prisionais, dentre outros. Nesta mesma linha, a Corte Constitucional teve como norte o princípio da dignidade humana a fim de não permitir tortura e tratamento desumanos.
Neste ponto, vale reproduzir trecho o voto do Ministro Eros Grau nos autos da Arguição de Preceito Fundamental 153, referente à Lei da Anistia:
[...] As coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. A dignidade não tem preço, vale para todos quantos participam do humano. Estamos, todavia, em perigo quando alguém se arroga o direito de tomar o que pertence à dignidade da pessoa humana como um seu valor (valor de quem se arrogue a tanto). É que, então, o valor do humano assume forma na substância e medida de quem o afirme e o pretende impor na qualidade e quantidade em que o mensure. Então o valor da dignidade da pessoa humana já não será mais valor do humano, de todos quantos pertencem à humanidade, porém de quem o proclame conforme o seu critério particular.29
Por fim, é importante ressaltar as observações que o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso realiza acerca da dignidade da pessoa humana.30A primeira delas é que a dignidade da pessoa humana é parte do conteúdo de direitos fundamentais materiais, não se confundindo com os mesmos, vez que é um vetor, objeto de ponderação na hipótese de colisão entre esses direitos. A segunda observação é que a dignidade da pessoa humana não é revestida de caráter absoluto, de forma que mesmo sua eficácia irradiante e posição no ordenamento podem ser sacrificados a depender do caso concreto, como por exemplo, em determinadas formas de manifestação e expressão. Por fim, a dignidade da pessoa humana se aplica tanto nas relações entre Estado e indivíduo (vertical) como nas relações privadas (horizontal).