3. Relação existente entre a obra Críton e o movimento antivacina
Esse tópico possui como foco expor a relação existente entre a obra Críton, de Platão, e o movimento antivacina, que é impulsionado pelas fake news. Assim, inicialmente, é necessário relembrar a seguinte passagem da obra em questão, na qual Críton (1972, p. 121) discorre a respeito dos boatos espalhados pela população, “ Mas bem vês, Sócrates, que não pode deixar de fazer caso também da opinião do povo. Os fatos de agora dizem claro que o povo é capaz de fazer, não os mais pequeninos males, mas como que os maiores; basta que se espalhem calúnias contra alguém”. Para Críton, o povo poderia ser responsável pelos maiores males, bastasse apenas que espalhassem calúnias. Atualmente, as formas mais fortes e perigosas de calúnias são, certamente, as fake news.
Em primeiro lugar, a Revolta da Vacina, analisada anteriormente, seria criticada por Sócrates, pois, segundo os seus ensinamentos, o mal nunca deveria ser revidado. Assim, mesmo que a ação do governo tenha sido violenta e errada, para o filósofo, a população não deveria ter reagido da mesma maneira.
Em segundo lugar, como visto anteriormente, grande parte dos adeptos ao movimento antivacina fundam suas opiniões e atitudes em fake news, a exemplo do boato mais conhecido, aquele que afirmava que algumas vacinas seriam causadoras do autismo. Assim, é necessário ressaltar que as notícias falsas foram responsáveis, dentre outros males, pelo desgaste emocional dos pais e responsáveis de crianças autistas, como indica Vasconcellos-Silva, Castiel e Griep (2015, online):
É inegável que o impacto emocional que incide sobre pais responsáveis por crianças portadoras de autismo não é desprezível. Tal desgaste torna parentes e conhecidos próximos especialmente vulneráveis a qualquer tipo de discurso que atribua sentido de causalidade ao autismo - condição ainda mal esclarecida perante o imaginário social. Nesse ponto a proximidade física entre os solidários aliada ao sentido de causalidade das vacinas em relação ao autismo passa a configurar situações de riscos secundários sob o olhar epidemiológico.
Assim, fica claro que, além do risco do movimento antivacina em si, já que diversas crianças possuem suas vidas expostas sem a devida imunização, as fake news também contribuem para o desgaste emocional dos pais e responsáveis de crianças autistas.
Fatos como os citados acima permitem compreender a crítica feita por Críton ao povo, pois, por meio de calúnias, ou seja, da propagação de notícias faltas, o povo tornou-se responsável por um movimento que hoje representa uma das dez maiores ameaças para a saúde mundial, como citado no tópico anterior. Por sua vez, o movimento antivacina é responsável pelo impacto emocional incidente sobre pais e responsáveis de crianças autistas e pela exposição de diversas crianças a doenças em todo o mundo.
Além disso, existe outra relação possível na obra de Platão, que é entre a reflexão feita por Sócrates a respeito da opinião do instrutor de ginástica, ou seja, o especialista e entre a opinião da multidão. Para Sócrates, a opinião do especialista deveria ser sempre seguida, pois ele teria conhecimentos mais específicos e, consequentemente, saberia melhor o que fazer a respeito do assunto que estivesse em seu domínio. Tal pensamento é extremamente relevante para o presente artigo, já que os integrantes do movimento antivacina estariam indo de encontro ao pensamento Socrático, pois, mesmo com a existência de diversas comprovações científicas a respeito da eficácia das vacinas, os adeptos a esse movimento insistem em ignorar a opinião dos especialistas.
Ademais, é preciso ressaltar que os meios de comunicação, com ênfase na internet, contemporaneamente, influenciam diretamente as pessoas na formação de suas opiniões, pois, segundo Rosário e Bayer (2014, online) “A Mídia tem um papel importante no campo político, social e econômico de toda sociedade. Através desse mecanismo essa instituição incute na população uma consciência, uma cultura, uma forma de agir e de pensar”. Logo, já que os meios de comunicação possuem tal importância na formação das opiniões da sociedade, ao ter acesso a notícias falsas, parte da população tende a acreditar nelas, por consequência, deixam de realizar diversas ações por acreditarem ser prejudiciais à saúde de suas crianças, dentre essas ações está a vacinação.
Entretanto, é necessário deixar claro que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), artigo 14, parágrafo primeiro: “É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.”. Para o TJ-SP, segundo o site da revista Consultor Jurídico (ROVER, 2019, online), pais não podem deixar de vacinar seus filhos por questões ideológicas:
Pais não podem deixar de vacinar uma criança por liberdade filosófica ou religiosa, pois esse direito não tem caráter absoluto quando atinge terceiros. Assim entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo ao obrigar um casal a regularizar a vacinação do filho de três anos. Caso a decisão não seja cumprida em até 30 dias, o Conselho Tutelar deverá fazer busca e apreensão da criança para garantir a imunização. "A tutela da saúde da criança tem prioridade absoluta no que diz respeito à proteção dos interesses do menor, prevalecendo sobre interesses particulares ou decorrentes de posições ideológicas próprias dos genitores", afirmou o relator, desembargador Fernando Torres Garcia.
Dessa maneira, ainda segundo matéria publicada pela revista Consultor Jurídico, o desembargador Torres Garcia afirmou que “a falta de vacinação fez aumentar o número de epidemias de doenças já erradicadas. Por isso, publicações especializadas têm recomendado a imposição de vacinação mandatória como forma de garantir a saúde de cidadãos em geral.”. Então, ao negar vacinar seus filhos, esses pais estariam prejudicando não apenas as suas crianças, mas, certamente, estariam colocando em risco a saúde local, já que pessoas não vacinadas podem contrair doenças já erradicadas e voltar a espalhá-las pela sociedade.
Além disso, ainda segundo Torres Garcia “a doutrina penal classifica como crime de perigo abstrato a conduta do agente que dificulta determinação do poder público para impedir a vacinação obrigatória.”. Assim, o ato de não vacinar-se ou não vacinar seus filhos seria considerado, claramente, um desrespeito ao ordenamento jurídico.
Novamente, é possível relacionar o pensamento Socrático com tal acontecimento, pois, para esse filósofo, a justiça só seria alcançada por meio da obediência às leis. Para Castilho (2019, p. 49) “Seu pensamento tinha uma sólida base ética. Achava que o homem chegava a ser virtuoso quando alcançava o conhecimento (“Conhece-te a ti mesmo”, dizia ele), e em decorrência do conhecimento inclinava-se à obediência da lei – para Sócrates, a obediência à lei era o que diferenciava o homem civilizado do bárbaro.”. Assim, tomando como base o pensamento desse filósofo, a atitude dos pais que decidem contrariar o ordenamento jurídico e não vacinar seus filhos estariam comportando-se como bárbaros e, além disso, estariam contribuindo para que a justiça não fosse alcançada.
Ademais, como visto anteriormente, Sócrates obedeceu à sentença lhe proclamada e morreu cumprindo a lei, pois acreditava que ao fazer isso estaria beneficiando a pólis. Dessa maneira, é possível encontrar semelhanças com o pensamento socrático na seguinte afirmação do presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB-PR, em entrevista concedida para a BBC (MODELLI, 2018, online):
Os pais que não vacinam, independente do motivo, devem entender que nenhum direito individual pode sobrepor ao direito coletivo. A vacinação é um direito coletivo porque também atinge a sociedade como um todo no sistema de imunização. Desrespeito às vacinas previstas no PNI é, por si só, um ato grave contra a saúde pública.
Segundo a revista Super Interessante (LUISA, 2018, online), o número de crianças não vacinadas quadruplicou desde 2001:
Usando dados do National Immunisation Survey-Child, o relatório mostrou que a porcentagem de crianças sem vacinação básica aos 2 anos de idade aumentou de 0,9%, em 2011, para 1,3%, em 2015. Em 2001, esse número era de apenas 0,3%. A pesquisa constatou que as vacinas menos aplicadas eram contra Hepatite A e rotavírus. 1,3% pode parecer pouco, mas o aumento de 1% em menos de 15 anos é algo bem significativo. A Dra. Amanda Cohn, consultora sênior de vacinas do CDC, disse que as razões para este aumento podem ser diferentes: “Alguns pais querem vacinar e não tem acesso a um profissional de saúde, mas outros optam por não vacinar o filho”. E essa parcela que escolhe não submeter seus filhos a vacinas tem crescido nos últimos anos. O movimento “antivacina” teve seu primeiro argumento “forte” em 1998, quando uma pesquisa publicada pela revista científica “The Lancet” dizia que que a Vacina Tríplice Viral (sarampo, caxumba e rubéola) desencadearia o autismo. O artigo foi desmascarado quando outros cientistas fizeram novos estudos e confirmaram que a correlação era falsa. O britânico Andrew Wakefield, autor do artigo, perdeu seu registro de médico e a publicação foi tirada de circulação. Mas daí veio a faísca do movimento. Hoje essa crença cresce e já mostra resultados alarmantes: em agosto do ano passado, um surto de Sarampo na Itália registrou 4 mil casos — e 86% dos afetados não haviam se vacinado. Na década de 90, essa doença matou mais de 2 milhões de pessoas — e ela voltou a aparecer no Brasil, depois de ter sido oficialmente erradicada do país em 2016.
Assim, fica claro que mesmo com as consequências jurídicas exploradas anteriormente, o movimento antivacina fica cada vez mais forte, claramente com a ajuda da internet. O que também fica explícito é que muitos pais escolhem conscientemente não vacinar os filhos pelo medo ocasionado pelas fake news. Para eles, talvez seja melhor contrariar o ordenamento jurídico a perder seus filhos para os supostos malefícios da vacina.
Conclusão
Diante do exposto, fica evidente que os ensinamentos contidos na obra “Críton”, de Platão, podem utilizados para relacionar o movimento antivacina, assim como a Revolta da Vacina de 1904. Sócrates, nos escritos de Platão, realiza diversas afirmações pertinentes à contemporaneidade, tais como a importância da obediência às leis, a relevância da opinião do especialista, as consequências sociais da disseminação de uma notícia falsa e, consequentemente, os efeitos do senso comum.
Dessa maneira, como citado anteriormente, a Revolta da Vacina aconteceu devido à falta de informação por parte da população, o que demonstra o que a carência de conhecimento pode gerar em uma sociedade. O poder público, além de não fornecer as informações necessárias ao povo, agiu violentamente e os moradores reagiram da mesma forma. Tal acontecimento seria questionado por Sócrates, já que, para ele, o mal e o injusto nunca deveriam ser retribuídos da mesma maneira, pois isso tornaria o processo de alcançar a justiça mais lento e difícil.
Revoltas como a analisada anteriormente são consequência da escassez informacional. Entretanto, em contraste, o movimento antivacina, na atualidade, é consequência do excesso informacional. Assim, fatos como esses demonstram que os extremos são prejudiciais. A falta prejudica e o mesmo ocorre com o excesso.
Dessa forma, é possível afirmar que existe, por parte dos integrantes do meio social, grande deficiência de entusiasmo para pesquisar as fontes das notícias que chegam até eles. As redes sociais fomentam a predominância do senso comum nos pensamentos das pessoas, sendo assim, essa falta de interesse em pesquisar as fontes das informações obtidas é catalisada pela internet. Além disso, fica explícito que o ordenamento jurídico carece de uma legislação específica e eficiente para combater a disseminação de fake news, pois, no mundo contemporâneo, essa questão é um dos maiores desafios encontrados na sociedade. As fake news interferem em todas as esferas sociais possíveis, já que podem abordar os mais diversos assuntos.
Durante a condenação de Sócrates, que foi culpado por crimes os quais não cometeu, os juízes de sua sentença mostraram-se influenciados por notícias falsas e a população, por não questionar a condenação do filósofo, mostrou-se influenciada pelo senso comum. Sócrates tentava, por meio de seus ensinamentos, incentivar o senso crítico. Assim, ainda a respeito dos juízes, é possível afirmar que existia o desejo de manter a população sem senso crítico e, consequentemente, adeptos ao senso comum, a fim de manter a dominação sobre o povo. Assim, é possível concluir que o pensamento socrático deveria ser a base para o sistema educacional, pois a finalidade da educação deve ser sempre instaurar o pensamento crítico em seus alunos para que eles possam se tornar bons cidadãos.
Além disso, o pensamento desse filósofo acerca da importância da opinião do especialista é extremamente atual e relevante, pois o especialista tem sido desprezado, já que movimentos pautados em informações falsas, como o movimento antivacina, ganharam tamanha força no cenário nacional e internacional. Assim, se os ensinamentos de Sócrates fossem estudados profundamente, movimentos irracionais como esse não teriam tanta força. Nesse ínterim, aulas de filosofia mostram-se extremamente necessárias para a formação de bons cidadãos, pois caso os estudantes e futuros adultos compreendessem verdadeiramente os ensinamentos de Sócrates, as atitudes deles seriam diferentes e certamente teriam o senso crítico como base.
Por fim, fica evidente que a obra de Platão, contendo os pensamentos de Sócrates, é extremamente relevante para a contemporaneidade, pois todos os assuntos abordados por ele possuem alguma influência no contexto atual. A sociedade deveria basear seus pensamentos nos ensinamentos socráticos, a fim de tentar alcançar um ideal maior de justiça, basearpensamentos apenas em fatos verídicos e estudados por especialistas, ter a obediências às leis como base do comportamento social e tentar ao máximo apurar o senso crítico, por meio de críticas às informações obtidas.
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