SUMÁRIO: Introdução. 1. Obra e discussão sobre senso comum em Platão. 2. O movimento antivacina – realidade ou fake news?. 3. Relação existente entre a obra Críton e o movimento antivacina. Conclusão. Referências.
RESUMO: O presente ensaio tem como escopo abordar as relações existentes acerca do movimento antivacina contemporâneo e a obra “Críton”, de Platão. Para isso, o tema em questão foi dividido em três tópicos. Em primeiro lugar, foi analisada a obra em pauta, a fim de tornar possível a compreensão do artigo, mesmo sem ter realizado a leitura de “Críton”. Ademais, ainda no primeiro tópico, foi compreendida a história e os ensinamentos de Sócrates e de Platão. Em segundo lugar, o movimento antivacina foi estudado, não somente o movimento contemporâneo, mas o histórico, representado pela Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro em 1904, a fim de perceber as diferenças existentes acerca das duas fases desse movimento. Em terceiro lugar, foi relacionada a obra em pauta com o movimento antivacina, a fim de entender a maneira de Sócrates, segundo seus ensinamentos contidos em “Críton”, perceberia tal movimento. Por fim, delimitou-se que existem intensas relações entre os pensamentos socráticos e o movimento antivacina, pois Sócrates era extremamente crítico a diversas características que estão presentes nesse movimento.
PALAVRAS-CHAVE: Fake news. Sócrates. Vacina. Senso crítico.
Introdução
As obras platônicas são fundamentais para a vida contemporânea, já que, além de repassar os ensinamentos fornecidos por Sócrates, elas incentivam reflexões essenciais para a sociedade moderna. Sendo assim, uma das reflexões mais relevantes para os dias atuais, é a análise a respeito do pensamento crítico, pois em um mundo informatizado e repleto de informações disponíveis a todo o momento, é preciso que a população esteja disposta a refletir para não ser enganada. Nem todas as informações contidas nos meios de comunicação, especialmente a internet, são confiáveis, logo, é necessário que o senso crítico seja sempre utilizado.
Dessa forma, na contemporaneidade, é fato que o movimento antivacina está diretamente relacionado ao pensamento socrático existente na obra de Platão. A obra Críton, de Platão, apresenta uma reflexão de Sócrates a respeito do senso comum existente na sociedade e, além disso, do contraste existente entre a opinião pública e a opinião do especialista. Assim, os assuntos mencionados anteriormente possuem intensa relevância para a análise do movimento antivacina contemporâneo, o que por si só demonstra o quanto a obra platônica é atual. Nesse ínterim, qual a contribuição que a obra de Platão pode oferecer para a análise do movimento antivacina?
Primeiramente, nesse artigo será contemplada a história existente por trás dos filósofos em questão e de seus pensamentos e obras. Assim, será feito um estudo da vida de Platão, bem como de seus princípios e ensinamentos, tal como o que defendia e o que acreditava que faria bem à sociedade. Além disso, a biografia de Sócrates também terá espaço nesse artigo, já que a obra Críton é uma das expressões mais claras do pensamento socrático a respeito de muitos assuntos, como justiça e senso comum. Dessa maneira, a vida e a morte de Sócrates serão objetos de estudo, a fim de compreender a filosofia socrática antes de aplicá-la à vida contemporânea. Esse estudo é fundamental para que seja possível relacionar o pensamento filosófico em questão com o movimento antivacina.
Ainda no primeiro tópico, a obra Críton, a qual é o objeto de estudo deste artigo, será detalhada, com a finalidade decontextualizar todas as reflexões que serão feitas posteriormente. Essa contextualização é de imensa importância para o entendimento do artigo, já que nem todos possuem a oportunidade de ter contato com obras filosóficas clássicas ou de analisá-las criticamente.
Em segundo lugar, é essencial para a finalidade desse artigo que seja feito um estudo direcionado do movimento antivacina em suas duas formas: histórica, por meio da revolta da vacina, e contemporânea. A Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro, representa o marco inicial de um movimento contra o processo de vacinação obrigatória ocorrida na então capital do país. A contextualização histórica é importante para compreender que a resistência à vacinação não é algo que surgiu recentemente, entretanto, as circunstâncias e os motivos de ambas as formas do movimento são distintas e merecem ser considerados. Ainda neste tópico, a contemplação do movimento social e suas formas também terão espaço para que seja feita a sua análise, já que o movimento antivacina é um movimento social da modernidade.
Ainda no segundo tópico, faz-se necessário o ensaio acerca da contemporaneidade do movimento antivacina, tal como o que ele representa para a sociedade moderna. Ademais, a sociedade midiatizada apresenta diversos riscos à veracidade da informação, considerando que a propagação de notícias falsas é uma das maiores preocupações da modernidade. Posteriormente, é preciso compreender a deficiência existente no sistema educacional e que tal deficiência prejudica, futuramente, toda a sociedade.
Já no terceiro tópico, será explicitada toda a relação existente acerca dos dois tópicos anteriores e seus conteúdos, a fim de encontrar a ligação existente entre o pensamento socrático e o movimento antivacina, já que Sócrates reflete a respeito do contraste que há entre opinião do especialista e a opinião da multidão e a respeito do senso crítico. Ademais, também no terceiro tópico, será estudada a influência e o papel exercidos pelos meios de comunicação na sociedade contemporânea e como tal influência está relacionada com o movimento antivacina e, consequentemente, com o pensamento exposto por Sócrates.
Ainda no terceiro tópico, a questão jurídica deverá ser contemplada, a fim de evidenciar se os pais que escolherem não vacinar seus filhos podem estar transgredindo o ordenamento jurídico, já que evitar a vacinação representa, de fato, grande perigo, não apenas para aquela pessoa, mas para toda a sociedade. Assim, mais uma vez, os pensamentos socráticos mostram-se importantes para a sociedade contemporânea e para o presente artigo, já que ele sempre partia do princípio da obediência às leis.
Dessa maneira, após abordar, refletir e estudos todos os temas citados acima, será possível concluir qual a contribuição que a obra de Platão pode oferecer para a análise do movimento antivacina. Essa conclusão só será possível após intensa reflexão acerca dos assuntos apontados anteriormente.
1. Obra e discussão sobre senso comum em Platão
Platão nasceu, segundo Castilho (2019, p. 50-52), em 428 a.C e foi o principal discípulo de Sócrates e graças a ele, hoje o mundo moderno possui acesso aos pensamentos de seu mestre. Dessa forma, Platão veio de uma família rica aristocrata e foi quem registrou, de forma mais completa, os ensinamentos de Sócrates. Além de exercer tal função, foi o fundador da Academos, uma escola que ensinava ciências, retórica e filosofia. Assim, Platão foi, acima de tudo, um educador que acreditava que a educação, do corpo e da mente, era o que conseguiria resolver os problemas humanos existentes na ordem social. Ademais, esse filósofo defendia que a educação deveria ser oferecida pública e gratuitamente pelo Estado, pois, segundo ele, era de interesse estatal que os homens fossem instruídos e trabalhassem pelo bem da pólis.
Já Sócrates era, segundo Castilho (2019, p. 49-50), pobre. Filho de uma parteira, ensinava onde pudesse reunir seus alunos e, ao contrário de seu discípulo Platão, não criou uma escola para que pudesse ensinar a seus discípulos. Foi um homem que sempre teve como princípio de seus pensamentos e atitudes a ética (CASTILHO, 2019, p. 49):
Sócrates percorria a cidade de Atenas, praticando a sua técnica do diálogo com os jovens, sempre em lugares públicos. Essa técnica, chamada maiêutica, ou parto de ideias, consistia em manter um diálogo irônico que conduzia o interlocutor a aprender e a atingir conclusões. Se pensamento tinha uma sólida base ética. Achava que o homem chegava a ser virtuoso quando alcançava o conhecimento (“Conhece-te a ti mesmo”, dizia ele) e em decorrência do conhecimento inclinava-se à obediência da lei – para Sócrates, a obediência à lei era o que diferenciava o homem do bárbaro.
Segundo Peixoto (2010, p. 664-666):
Atenas foi pioneira quanto a instituição da democracia: o poder político, as decisões administrativas e políticas da cidade, os rumos e destinos da sociedade, estavam sob a responsabilidade não mais de uma pessoa ou de um grupo, mas de todos os que eram considerados cidadãos. Isso obrigou os atenienses a desenvolverem a arte política, a arte do debate, da crítica, da argumentação, do ouvir o outro, do contestar, do votar, do decidir, da consideração do que era justo e injusto e do executar as decisões do coletivo.
Assim, o ambiente em que Sócrates viveu foi propício para que ele pudesse desenvolver suas habilidades argumentativas e reflexivas, pois, historicamente, era um momento revolucionário, já que a Democracia começava a tomar forma. Dessa maneira, o pensador desenvolveu um pensamento crítico, que ia de encontro ao senso comum. Assim, Sócrates criticou as convenções atenienses e ensinou os jovens da pólis a fazerem o mesmo. Ele contestou dogmas instaurados na sociedade e, devido a isso, foi acusado de corromper a juventude e negar os deuses da pólis. Nesse ínterim, foi condenado à morte pela ingestão de cicuta.
Para Peixoto (2010, p. 668):
A sua condenação à morte demonstra que filosofar pode ser um perigo para a própria vida, porque o pensar filosófico é um pensar livre, seu compromisso é com a verdade, por isso é um pensar crítico, autônomo e criativo. A crítica e a verdade presentes no pensamento de Sócrates incomodavam porque superavam, as superficialidades, as aparências, o particular e revelavam as essências, o universal, os fundamentos das coisas. Sua filosofia desinstalava as pessoas do seu comodismo; oferecia elementos que lhes permitiam esclarecer e julgar o sentido do mundo, seja ele o da política, do trabalho, da educação, do pensamento, da cultura.
Ou seja, ao criticar o senso comum e propor à sociedade que saísse do comodismo do senso comum, foi preso e sentenciado à morte. Esse fato demonstra, por si só, que aqueles que se dispõem a questionar os dogmas instaurados em uma sociedade correm riscos, podendo perder inclusive a vida.
Sócrates demonstrou lidar com a morte de uma maneira diferente, pois em nenhum momento se mostrou desesperado com a sentença que recebeu. Foi um filósofo que seguiu sereno até seu último dia de vida, provavelmente porque tinha orgulho do que havia ensinado e não se arrependeu do que fez.
A obra “Críton” ou “O dever”, escrita por Platão, relata exatamente o momento em que o amigo rico de Sócrates, Críton, adentra a cela do filósofo a fim de tentar convencê-lo a fugir e não cumprir a pena dada a ele. Nesse contexto, os dois mantém um diálogo acerca do senso comum, do conceito de justiça e do valor e influência da opinião popular e da opinião do especialista.
Inicialmente, Críton acorda Sócrates, que estava dormindo profundamente, para avisar que sua morte estava próxima. O amigo rico lamentava perder uma amizade tão importante e, ainda nessa passagem, afirma que a morte de Sócrates seria mais dolorosa para ele e seus demais amigos do que para o próprio filósofo, que se mostrava calmo. No decorrer da obra, Críton demonstra que a amizade de Sócrates era especial e diz que nunca mais irá encontrar uma relação tão única quando a que havia entre os dois.
Críton afirma que (1972, p. 120-121):
Contudo, meu pobre Sócrates, ainda uma vez, dá-me ouvidos e põe-te a salvo; porque, para mim, se vieres a morrer, a desdita não será uma só; à parte a perda de um amigo como não acharei nenhum igual, acresce que muita gente, que não nos conhece bem, a mim e a ti, pensará que eu, podendo salvar-te, se me dispusesse a gastar dinheiro, não me importei. Ora, existe reputação vergonhosa do que a de fazer caso do dinheiro que dos amigos? O povo não vai acreditar que tu é que não quiseste sair daqui, a despeito de o querermos nós mais que tudo.
Para Críton, Sócrates deveria fugir da prisão utilizando do poder econômico do amigo. Ele se preocupava com o que poderia a população pensar a seu respeito, já que como levava uma vida abastada, teria a oportunidade de custear a fuga do filósofo e sustentá-lo em outra cidade ou país.
Assim sendo, os dois começam uma discussão acerca do valor da opinião da multidão. Segundo Críton “Os fatos mesmos de agora dizem claro que o povo é capaz de fazer, não os mais pequeninos dos males, mas como que os maiores; basta que entre eles se espalhem calúnias contra alguém”. Ou seja, para ele, o povo poderia acabar com a vida de alguém apenas acusando falsamente alguém, o que aconteceu com Sócrates, já que ele foi acusado falsamente de corromper a juventude e negar os deuses da pólis e, devido à essa acusação, perdeu a sua vida.
Outrossim, para Críton, a atitude de Sócrates de escolher obedecer às leis, mesmo não concordando com a sentença dada a ele, era injusta. Na seguinte passagem ele deixa claro o que pensa sobre o amigo se entregar e mostra-se preocupado com o futuro dos filhos de Sócrates, que se tornariam órfãos (1972, p. 122):
Demais, Sócrates, acho que cometes uma injustiça entregando-te, quando te podes salvar; estás trabalhando para que te aconteça exatamente aquilo a que visariam teus inimigos. - a que visaram quando decidiram tua perda. Demais a mais, ao meu ver, atraiçoa também os teus filhos; podendo criá-los e educá-los, tu queres ir-te, abandonando-os; no que te concerne, fiquem eles entregues à sua sorte; a deles, é natural, será a sorte costumeira dos que caem na orfandade. A gente deve ou não ter filhos, ou sofrer juntamente com eles, criando-os e educando-os. Tu me dás a impressão de estarem escolhendo a sua maior comodidade.
Assim, Sócrates pede para que o amigo não insista e inicia outro questionamento, retomando um assunto tratado anteriormente: “Será retomando, em primeiro lugar, aquela razão que alegas a propósito das opiniões? Estávamos certos ou errados ao repetirmos que das opiniões umas devemosacatar, outras não?”. Para o filósofo, algumas opiniões deveriam ser acatadas, já outras, não. Para ele, a opinião do especialista devia ser sempre levada em consideração, já que ele iria possuir maior conhecimento acerca do assunto. Segundo Sócrates, aquele que seguisse a opinião da multidão e não seguisse a do especialista estaria prejudicando-se imensamente (1972, p. 125):
Logo, meu excelente amigo, não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade emmatéria de justiça e injustiça, a única, a Verdade em si. Assim sendo, paracomeçar, não apontas o bom caminho quando nos prescreves que nosinquietemos com o pensamento da multidão a respeito do justo, do belo, do bem e de seus contrários. A multidão, no entanto, dirá alguém, é bem capaz de nosmatar.
Por meio desse pensamento, Sócrates diz ao amigo que, já que a opinião do especialista era dotada de maior valor, então, deveriam seguir o que os especialistas da justiça diziam e ignorar a opinião da multidão. Assim, justamente por desejar seguir o pensamento dos especialistas, Sócrates disse que iria obedecer às leis e cumprir a sentença que lhe havia dado.
A fim de convencer o amigo de que fugir da prisão não seria justo, Sócrates propõe um debate de ideias, assim, caso Críton conseguisse provar, por meio de argumentos, que a sua fuga seria algo justo, eles iriam tentar escapar. Entretanto, caso Sócrates comprovasse a sua teoria de que fugir era algo injusto e ruim, ele iria permanecer na prisão e cumpriria a pena. Assim, o pensador começa sua reflexão afirmando que nunca deve-se proceder contra a justiça e que nunca deve-se retribuir a injustiça com mais injustiça. Para ele, “Em suma, não devemos retribuir a injustiça, nem fazer mal a pessoa alguma, seja qual for o mal que ela nos cause”.
Sócrates continua sua reflexão afirmando que em todos os momentos de sua vida as leis de Atenas foram boas e suficientes e ele as seguiu. Então, agora não seria diferente, mesmo que ele não concordasse com sua sentença, ele a cumpriria como sempre fez com as demais decisões e legislações da pólis. Além disso, se Sócrates permaneceu em Atenas e escolheu construir sua vida lá, foi porque ele acatou às leis da pólis, ou seja, Atenas e suas leis tinham sido suficientes. Em nenhum momento de sua vida Sócrates cogitou morar em outra cidade, pois onde ele vivia agradava-o e satisfazia suas necessidades. Dessa forma, ele afirma que a lei consideraria a sua fuga injusta, pois Atenas havia sido seu berço e de seus filhos, lá ele havia sido educado e pôde educar. Logo, seria injusto que naquele momento, por não considerar justa a sua morte, ele fugisse com a ajuda de Críton. Sendo assim, Críton encontra-se sem argumentos capazes de refutar as reflexões de Sócrates e desiste de tentar convencer o amigo a fugir.
Assim, considerando os argumentos e análises realizados anteriormente, faz-se necessária a discussão acerca do movimento antivacina, pois, como visto anteriormente acerca do pensamento socrático, a opinião do especialista deveria sempre ser levada em consideração e, a respeito dos integrantes desse movimento, as pesquisas científicas acerca do assunto não são consideradas. Além disso, também é essencial compreender a historicidade existente na resistência populacional a vacinar-se, a fim de que seja possível notar as diferenças entre o movimento passado e o contemporâneo.