O testamento, na sua definição clássica, é um ato revogável pelo qual alguém dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio para depois da sua morte, podendo também deixar escritas disposições de ordem não patrimonial (reconhecimento de filhos, disposições sobre funeral, doação de órgãos, nomeação de tutor para administrar bens de filho menor, dentre outras). Suas modalidades, seu conteúdo e institutos jurídicos correlatos (revogação, deserdação, etc.) vêm previstos no Código Civil brasileiro, a partir do artigo 1.857 e suas disposições processuais estão contidas no Código de Processo Civil no artigo 735 e seguintes.
Em geral, a legislação brasileira exige uma série de formalidades, tais como a presença de testemunhas (o número de testemunhas varia segundo a modalidade adotada), a leitura do testamento em voz alta perante essas testemunhas a um só tempo e, em alguns casos, a presença de um notário.
Todavia, o artigo 1.879 do Código Civil prevê literalmente a possibilidade de que qualquer pessoa capaz (com pelo menos 16 anos de idade, neste caso), em “circunstâncias excepcionais” declaradas no próprio texto, pode fazer um testamento particular, de próprio punho, assinado, sem testemunhas, o qual poderá ser confirmado, a critério do juiz, após a morte do autor do testamento. É o chamado “testamento particular em circunstâncias excepcionais”.
O termo “circunstâncias excepcionais” geralmente é vinculado pela doutrina ao fato de o testador estar em lugar de difícil acesso, sem possibilidade de comunicação, ou em local atingido por eventos naturais catastróficos, tais como tufão, terremotos, inundações e epidemias, de modo que o testador encontre-se isolado e, segundo sua apreciação, em risco de perder a vida e sem a possibilidade de convocar testemunhas para assistir ao ato.
Vários ordenamentos europeus possuem dispositivos semelhantes, com menção expressa à “epidemias”, como, por exemplo, o Código Civil de Portugal (art. 2220º), o Código Italiano (art. 609), e o Espanhol (art. 701), cujo texto assim se apresenta: “En caso de epidemia puede igualmente otorgarse el testamento sin intervención de Notario ante tres testigos mayores de dieciséis años.”
Aliás, sobre o caso Espanhol, em um artigo recente*, o jurista albacetense Javier López-Galiacho Perona conta que, em 1990, quando estavam em vigor os debates de reforma do Código Civil, perguntaram ao emérito civilista Manuel Albaladejo se não seria bom aproveitar a reforma para eliminar por desuso aquele tipo de testamento especial “em caso de epidemia”, ao que o jurista mostrou sua contrariedade dizendo, ironicamente, em tradução livre que: “os bichos, assim como se vão, voltam”. O artigo foi mantido na lei civil espanhola e sua atualidade neste momento de pandemia de coronavírus, além do acerto da lição do Prof. Manuel, falecido em 2012, não podem ser contestadas. (* disponível em https://hayderecho.expansion.com/2020/03/20/la-rabiosa-actualidad-del-testamento-en-caso-de-epidemia/).
No caso brasileiro, não há dúvidas de que esse cenário se enquadraria na espécie, após a edição de uma série de documentos legais neste começo de março de 2020, e ante a postura adotada por boa parte da sociedade brasileira, em geral, mantendo-se dentro de suas casas, ou em casos mais graves, estão sendo hospitalizadas para prevenção e tratamento.
Ademais, pode-se dizer que, no momento atual, é praticamente impossível testar de outra forma, uma vez que os cartórios de notas estão com atendimento muito limitado, e que a convocação de testemunhas seria também algo raro de se conseguir.
Portanto, na prática, entendemos que qualquer pessoa capaz, maior de 16 anos (não havendo idade máxima na Lei), ainda que esteja adoentada e mesmo hospitalizada, pode então redigir seu testamento, com base no artigo 1.879 do Código Civil brasileiro, deixando bens móveis e imóveis para familiares, terceiros ou até mesmo pessoas jurídicas (instituições de caridade, igrejas, dentre outras), podendo ainda fazer disposições de ordem extrapatrimonial, tais como as mencionadas no início deste artigo.
Recomenda-se que o documento:
a) seja manuscrito ou digitado, sem rasuras;
b) contenha data e número das páginas (de preferência com o recurso “nº da página atual – barra – nº da página final”, por exemplo “1/8”, “2/8” e assim por diante);
c) seja rubricado em todas as páginas e assinado ao final (Obs. A 2ª Seção do STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1633254, em março de 2020 aceitou, sem unanimidade de seus ministros componentes, um documento não assinado, mas que continha a digital da testadora);
d) faça menção ao isolamento social provocado pela pandemia e, se for o caso, ao fato de o testador possuir algum tipo de sintoma, estar hospitalizado, viver sozinho, dentre outras situações que demonstrem a impossibilidade de fazer um testamento ordinário;
e) possua a identificação completa do testador, as disposições que pretenda fazer de forma clara, a descrição mais completa possível dos bens que pretenda deixar e das pessoas que pretenda contemplar;
f) e ainda, indique uma pessoa (herdeiro ou não) para apresentar o testamento após a morte do testador e que irá diligenciar para que as disposições contidas no documento sejam cumpridas – o chamado testamenteiro.
Além disso, rememore-se que o testador pode indicar outras pessoas para receber os bens, no lugar das pessoas originalmente indicadas, caso estas morram antes do autor do documento, ou ainda, quando chamadas, não aceitem ser contempladas (a chamada “renúncia”).
Pode ainda o testador deserdar herdeiros necessários (descendentes, ascendentes, cônjuges ou companheiros) nas hipóteses descritas nos artigos 1.814 e 1.962/1.963 do Código Civil).
De todo modo, sendo a legislação bem específica e plena de detalhes, recomenda-se fortemente o auxílio de um advogado especializado na área, o qual pode atender remotamente o interessado, para a redação do documento, não havendo nenhum problema em se ter este tipo de apoio jurídico, desde que seja possível se verificar que o documento trazia mesmo a expressão da vontade do testador e, evidentemente, não seja o advogado (ou parente muito próximo a ele) pessoa contemplada no próprio testamento, o que poderá levantar dúvidas sobre sua idoneidade, levando até mesmo à nulidade da disposição, na forma dos artigos 1.801 e 1.802 do Código Civil brasileiro.
Por fim, o fato de o testador não vir a falecer neste período de isolamento social não leva necessariamente à perda de efeitos do documento, o qual continuará válido enquanto não for revogado formalmente, no todo ou em parte.
Ainda assim, pela especialidade da situação em que vivemos, recomenda-se que o testador reveja posteriormente seu conteúdo e, se não for o caso de sua revogação, transforme-o em um testamento público ou particular, com as testemunhas em número previsto na lei civil, as quais possam atestar – em uma eventual ação anulatória pós morte - sua capacidade no momento de fazer suas disposições de última vontade.
Em caso de falecimento atual ou futuro, deverá o testamento ser apresentado perante um Juiz competente para que seja analisado e, uma vez aprovado por sentença transitada em julgado, cumpram-se as determinações do testador.
A título de curiosidade, em um julgamento de novembro de 2019, oriundo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, os Desembargadores aceitaram como prova a ensejar a capacidade do testador, já enfermo e hospitalizado, a juntada de uma gravação audiovisual em que este aparentava lucidez ao ler e revisar o documento que, aliás, nem houvera sido redigido por ele (Apelação Cível nº 0301788-24.2014.8.24.0007, Relator Desembargador Luiz Felipe Schuch).
Desta forma, nada impede que o testador isolado pelo coronavírus, além de redigir seu testamento sozinho, sem testemunhas, nos moldes acima recomendados, faça também um vídeo de si próprio lendo e ratificando suas disposições, o que pode auxiliar em sua aprovação futura, em caso de discórdia entre os herdeiros.