Capa da publicação O governo federal e a ameaça de etnocídio às comunidades quilombolas de Alcântara (MA)
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O governo federal e a ameaça de etnocídio às comunidades quilombolas de Alcântara/MA:

31/03/2020 às 14:44
Leia nesta página:

Em meio à pandemia de coronavírus, que atinge, sobretudo, os mais vulneráveis social e economicamente - como as comunidades quilombolas, por exemplo - é publicada a Resolução 11/2020 do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro, que parece querer acentuar, ainda mais, a precariedade da situação desses povos.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em meio à pandemia de coronavírus, que atinge sobretudo os mais vulneráveis social e economicamente, tal o caso das comunidades quilombolas, em 27/03/2020, na Edição 60, Seção 1, página 3, do Diário Oficial da União, a RESOLUÇÃO 11 de 26 de março de 2020 “publica as deliberações do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro na Sétima Reunião Plenária” e representa mais um risco de etnocídio às comunidades quilombolas de Alcântara/MA.

Grosso modo, trata-se de uma resolução que prevê a remoção compulsória de Comunidades Quilombolas de Alcântara, no Estado do Maranhão. Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), tal medida impacta aproximadamente 800 famílias quilombolas, distribuídas em 30 comunidades remanescentes de quilombos, terminologia dada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que, em seu art. 68 do ADCT, reconhece tais grupos como portadores do direito à titulação do território que tradicionalmente ocupam.

A RESOLUÇÃO do Governo Federal configura-se uma medida que viola direitos constitucionalmente assegurados e previstos em normas internacionais das quais o Brasil é signatário, com especial destaque à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trata-se, portanto, de uma violação de direitos humanos.


AS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE ALCÂNTARA/MA E O HISTÓRICO DE CONFLITOS

A territorialidade quilombola em Alcântara remete ao século XVII, tratando-se da área quilombola mais populosa do Brasil. Segundo informações da Comissão Pro-Índio, em 2019, as comunidades quilombolas de Alcântara representavam 3350 famílias. As atuais famílias remanescentes, a despeito do reconhecimento do direito ao território tradicional, vivem sob contante ameaça diante de interesses do Governo Federal quanto ao Programa Espacial Brasileiro.

Na Ditadura Militar definiu-se que Alcântara sediaria um centro de lançamento e, para tanto, foram reassentadas compulsoriamente centenas de famílias quilombolas, já com graves violações de direitos fundamentais que acarretam consequências socioculturais até a contemporaneidade. O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia “Quilombolas Atingidos pela Base Espacial de Alcântara” registrou que, na década de 1980, mais de 300 famílias, moradoras de 23 povoados quilombolas foram compulsoriamente deslocadas.

Na época, o Governo do Maranhão desapropriou 52.000 hectares de áreas quilombolas, cedendo à União (governo Figueiredo) para que, através da Força Aérea Brasileira (FAB), fosse implementado o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Em 1991, o então presidente Collor desapropriou outros 10.000 hectares para tal projeto, totalizando 62.000 hectares de áreas ancestralmente ocupadas por remanescentes de quilombos. No Governo Temer foi anunciada a ampliação da base da Força Aérea, o que se tornou uma promessa de campanha de Jair Bolsonaro em 2018.


O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DAS COMUNIDADES DE ALCÂNTARA NOS TERMOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Em 2002, o laudo antropológico de autoria do Prof. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida foi elaborado no âmbito do Convênio da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) com o Ministério Público Federal (MPF) e subsidiou o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), do INCRA.

O processo administrativo de reconhecimento e titulação do território quilombola foi instaurado no INCRA em 2006, sob o número 54230.002401/2006-13. O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação da área quilombola foi publicado no Diário Oficial da União em 05 de novembro de 2008, prevendo como área a titular 78.105,3466 hectares em favor das comunidades remanescentes de quilombos. Ademais, restringiu-se o espaço da base aérea a 8.000 hectares. Nos termos publicado no DOU:

“As terras identificadas e delimitadas neste Relatório Técnico, constantes da planta e memorial descritivo, são reconhecidas como terras que pertencem à Comunidade Remanescente de Quilombo de Alcântara”.

O Laudo Antropológico concluiu que as comunidades quilombolas de Alcântara, confrontadas em 110 povoados, configuram um abrangente território étnico a ser titulado coletivamente, nos termos do Art. 68 do ADCT/CF-88 e do Decreto 4883/2003, à associação quilombola representativa.

No entanto, mesmo com a publicação do laudo antropológico e do RTID e, por conseguinte, com o reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades quilombolas de Alcântara, o processo de titulação não foi concluído por força de contestações e recursos interpostos pela Aeronáutica e pelo Ministério da Defesa, que tramitam e protelam a regularização fundiária em favor das comunidades até o presente momento.


NOVOS RISCOS, VELHOS CONFLITOS: O ACORDO DE COOPERAÇÃO DE 2019 DO GOVERNO BOLSONARO COM OS EUA E A RESOLUÇÃO 11/2020

Em março de 2019, em Washington (EUA), o Governo Brasileiro assinou um acordo de cooperação com o Governo Estadunidense: o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) que, grosso modo, dá o direito aos EUA de explorar a base de Alcântara, permitindo o lançamento de satélites e de foguetes. O documento indica também projetos para ampliação da área.

O acordo firmado entre os Jair Bolsonaro e Donald Trump, segundo especialistas, concede a base aérea brasileira à ações dos EUA, limitando inclusive o espaço brasileiro nela, ferindo os princípios da soberania nacional.

Além da violação à soberania nacional, outra vez a presença ancestral quilombola na área é posta na ordem do dia, como entrave aos planos do Governo Federal, tal como fora na Ditadura Militar. É justamente o que denota a Resolução da qual se ocupa esta Nota Técnica.

A recente RESOLUÇÃO 11, assinada pelo General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, como coordenador do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB), é direcionada, segundo seu art. 5o, às “comunidades quilombolas localizadas na área de interesse do Estado para a consolidação do Centro Espacial de Alcântara”.

Da redação supracitada depreende-se que o território tradicional quilombola é reduzido às “áreas de interesse do estado” e as comunidades quilombolas, sujeitos de direitos, reduzidas a mero obstáculo a tais interesses. Sendo assim, a RESOLUÇÃO 11 prevê que sejam realocadas, nos termos do art. 6o, I, pelo Ministério da Defesa que irá “providenciar, por meio do Comando da Aeronáutica, a execução das mudanças das famílias realocadas, a partir do local onde hoje residem e até o local de suas novas habitações”.

A historia que se repete, como farsa e como tragédia, tal como ocorrera na Ditadura Militar. Vale se indicado que, embora a RESOLUÇÃO 11 cite, em seu art. 4o, um Plano de Consulta às comunidades quilombolas nos termos da Convenção 169 da OIT, a remoção já é posta como um fato consumado.

A referida Convenção é um instrumento internacional de salvaguarda de direitos de minorias étnicas e prevê a consulta livre, prévia, informada e de boa fé sempre que medidas tomadas pelos governos afetem suas vidas e/ou territórios. De acordo com o art. 7º da Convenção 169, os povos:

“terão o direito de definir suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento na medida em que afete sua vida, crenças, instituições, bem-estar espiritual e as terras que ocupam ou usam para outros fins, e de controlar, na maior medida possível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, eles participarão da formulação, implementação e avaliação de planos e programas de desenvolvimento nacional e regional que possam afetá-los diretamente”.

Em suma, a RESOLUÇÃO 11/2020, ao prever a realocação compulsória de comunidades remanescentes de quilombos de Alcântara, viola princípios fundamentais, configurando-se em uma medida autoritária com potencial de reprodução das violações de direitos deste grupo, tal como já ocorreram na Ditadura Militar. Tal medida não se coaduna com a legislação nacional que reconhece os direitos das comunidades quilombolas, nem tampouco com normas internacionais de salvaguarda de direitos de minorias etnicamente diferenciadas, reproduzindo lógicas coloniais e racistas.


DAS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E DO RISCO DE UM ETNOCÍDIO QUILOMBOLA EM ALCÂNTARA/MA

As comunidades quilombolas de Alcântara já tiveram o direito de permanência no território tradicional sistematicamente violado desde a década de 1980. O quadro constatado é de recorrentes e graves as violações de Direitos Humanos destas comunidades remanescentes de quilombos, cujas consequências acabam por acentuar graves desigualdades sociais e podem gerar, se realocados, situações de miséria, desestruturação social, familiar e individual.

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A RESOLUÇÃO 11, de 26/03/2020, sistematicamente ignora a complexidade e diversidade social, o modo de vida tradicional, as várias unidades domésticas de parentesco, violando direitos fundamentais daquelas que família que, por si e por seus antepassados, detêm a posse da área desde o século XII. Alcântara é o lugar da história, da memória e da vida de famílias que, além de perdas materiais, podem novamente sofrer perdas subjetivas existenciais, que põem em risco a continuidade do grupo étnico em questão.

Outra vez citando a Convenção 169 da OIT, de acordo com seu art. 16, comunidades tradicionais, como regra, não podem ser deslocadas das terras que tradicionalmente ocupam e, em casos extremos, o deslocamento ainda dependerá do “consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa”. Também o art. 27 da Convenção Americana de DDHH prescreve igual entendimento: somente em caso de guerra, perigo público ou de outra emergência seriam justificadas realocações de comunidades tradicionais.

Conclui-se que as comunidades quilombolas de Alcântara, notadamente configuram um grupo étnico culturalmente diferenciado, que possui condições sociais, culturais e econômicas próprias, mantêm relações específicas com um território determinado e com o meio ambiente no qual estão inseridos; territorialidade esta já reconhecida nos termos da legislação.

A despeito destes reconhecimentos, a RESOLUÇÃO 11/2020 do Governo Federal apresenta o risco de realocação compulsória de famílias quilombolas que significaria um processo de expropriação dos meios de produção e reprodução da vida da comunidade tradicional quilombola como um todo, o que representaria uma grave violação aos direitos humanos do grupo e poderia ocasionar o que, em Antropologia, denomina-se etnocídio. Por isso, ressalta-se a urgência de providências no sentido de impedir que as famílias quilombolas sejam compulsoriamente realocadas, de medidas para garantia do território tradicionalmente ocupado na forma da regularização fundiária e titulação, conforme o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação publicado em 2008.

Por fim, reitera-se as recorrentes e graves violações de Direitos Humanos das Comunidades Quilombolas de Alcântara ocorridas a partir da década de 1980, com a expansão dos projetos da Ditadura Militar na área. Atualmente, as violações tomam nova forma com as propostas de remoção compulsória imposto pelo Governo Federal, que ameaçam provocar um deslocamento em precariedade de condições aos remanescentes de quilombo, com risco de ruptura definitiva dos seus modos de vida, provocando quebra de relações importantes para a reprodução social e a identidade do grupo, o que pode gerar danos irreversíveis e irreparáveis, um genocídio. Em sua forma étnica, um etnocídio quilombola pode estar em curso.

É essencial a luta pela permanência das comunidades quilombolas de Alcântara no seu território tradicionalmente ocupado e pela titulação deste território nos termos do Art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988 e do Decreto Federal 4887/2003.

Nenhum Quilombo a menos!


NOTAS

Para cronologia do conflito em Alcântara: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=ma-comunidade-quilombola-de-alcantara-continua-luta-contra-o-centro-de-lancamento-e-pelo-seu-direito-de-ficar-na-terra

O edital de publicação do Relatório Técnico de Delimitação e Identificação do Território Quilombola de Alcântara está disponível em: http://cpisp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/R_AlcantaraMA2008.pdf

Informações sobre as comunidades quilombolas de Alcântara atualizadas em: http://cpisp.org.br/direitosquilombolas-observatorio-terras-quilombolas-alcantara-ma/

O Laudo Antropológico de reconhecimento das comunidades quilombolas de Alcântara foi transformado em livro e publicado pelo Governo Federal em 2006. está disponível em: https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_publicacao/168_publicacao03022009105833.pdf

A Resolução 11, de 26/03/2020, publicada pela Presidência da República e que representa o risco de etnocídio das comunidades quilombolas de Alcântara está disponível em http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-11-de-26-de-marco-de-2020-249996300

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Sobre a autora
Rebeca Campos Ferreira

Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Graduanda em Direito, Bacharel em Ciências Sociais (USP), Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (USP), Professora voluntária da UNEAFRO Brasil e Perita em Antropologia do Ministério Público Federal (MPF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Rebeca Campos. O governo federal e a ameaça de etnocídio às comunidades quilombolas de Alcântara/MA:: considerações sobre a Resolução 11/2020 do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6117, 31 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80667. Acesso em: 19 mar. 2024.

Mais informações

Essa análise da conjuntura dos Quilombos de Alcântara diante da Resolução 11/2020 foi elaborada a pedido da UNEAFRO-Brasil.

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