Não obstante as previsões otimistas para o ano de 2020, este ficará marcado como o ano que subitamente surpreendeu a população global com o advento do novo Coronavírus. Diante do cenário alarmante e da rápida disseminação do vírus em proporções aceleradas, a Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2020, declarou pandemia do novo Coronavírus, por considerar a doença infecciosa que atingiu esse patamar em razão do grande número de pessoas infectadas espalhadas pelo mundo.
O Coronavírus é um teste não apenas dos sistemas e mecanismos de assistência médica para responder a doenças infecciosas, mas também da capacidade de readequação da sociedade ao novo cenário.
Nesse contexto, há uma mutação inclusive do ordenamento jurídico pátrio, nem sempre planejada, diga-se de passagem, de modo a promover a compatibilização da norma à realidade fática.
Sem embargo, em meio a esse cenário incerto, algumas questões ainda permeiam de incontáveis dúvidas. De fronte à flexibilização das normas de direito público, e a situação excepcional vivenciada, encontra-se, portanto, a lei eleitoral, a ser aplicada nas vindouras eleições municipais.
Neste diapasão, a situação atual suscita novos desafios à luz do estado de calamidade pública que emerge em vários entes federados, em choque com a aplicabilidade da legislação eleitoral vigente, ao passo que, diversas condutas nela delineadas como vedações, são hoje medidas imperativas aos gestores públicos no intuito de preservar principalmente a população que se encontra em vulnerabilidade social.
Como medida apta a orientar as autoridades públicas no combate epidêmico e assegurar aos administradores a concretização de decisões administrativas céleres e eficazes na gestão da saúde púbica, foi sancionada a Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que - dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.-, posteriormente alterada pela Medida Provisória nº 926/2020, que- dispõe sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus-
Cuidam-se de normativas destinadas a flexibilizar as normas correlatas ao trato das contratações públicas, diante da situação emergencial instalada pelo Coronavírus e, concomitantemente, promover a celeridade na aquisição de bens e serviços necessários ao combate da pandemia, conquanto demonstrado o vínculo de pertinência da contratação, à vista da escorreita fundamentação da situação emergencial vivenciada, frente à adoção de medidas destinadas ao imediato combate pandêmico.
Dada a situação excepcional vivenciada, que vêm repercutido nas relações públicas e privadas e impactado de um modo geral a economia mundial, no trato de questões diversas, os aplicadores do direito têm empregado variadas hermenêuticas das prerrogativas concedidas pelas normativas citadas. E assim, distintas medidas estão sendo adotadas, no emprego de maior discricionariedade permitida ao administrador público no ato sua gestão.
Determinação de fechamento de comércio, suspensão do calendário letivo escolar, fechamento de estradas e rodovias, concessão de benefícios financeiros e fiscais, doações de cestas básicas aos familiares de alunos, dentre tantos outras medidas, estão sendo adotadas para minimizar os impactos tanto de propagação do vírus, quanto econômicos e sociais.
Entretanto, não se pode olvidar que, sincrônico à situação emergencial instalada, encontra-se vigente o calendário eleitoral, cujas regras impostas aos agentes públicos aptas a salvaguardar a igualdade do pleito, encontram-se intocavelmente previstas na Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997- e impõem aos agentes, determinadas condutas, inclusive proibitivas.
Tais condutas expressamente previstas na lei eleitoral tutelam a essência democrática nacional e objetivam custodiar a plena isonomia do pleito, e, de igual modo, impedir qualquer benefício com o uso da máquina pública na disputa eleitoral.
Nessa seara, à guisa de exemplo, a supramenciona lei, ao traçar as condutas vedadas aos agentes públicos em ano eleitoral, consoante previsão do§ 10º do art. 73, impõe a proibição de distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração, excepcionada, contudo, em casos de calamidade pública, estado de emergência ou de programas sociais autorizadas em lei e já em execução orçamentária.
Alhures, não se pode negar que a decretação do estado de calamidade pelos entes estatais, e o emprego oportunista da hermenêutica das normas de direito público, medidas costumeiramente adotadas no atual cenário, abrem aso à excepcionalidade da situação e podem afastar a imputação de determinadas condutas vedadas aos agentes públicos excepcionalmente nestas eleições.
Entretanto, a decretação do estado de calamidade não desprestigia, por si só, o método eleitoral. É fundamental que haja coerência principiológica na flexibilização das normas de direito eleitoral, ainda de modo que, sejam válidas exclusivamente as ações que guardem pertinência com a prevenção e assistência de necessidades vinculadas à situação emergencial presente.
Vem-se consignar ainda que, quaisquer dessas ações devem estar desprovidas de cunho eleitoral, sem evidenciar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.
Imperativo que haja uma sistemática adequada de controle que permita verificar a correlação do destinatário do benefício e a sua fragilidade social de forma a fazer jus ao benefício.
A situação requer a proteção iminente da vida, bem jurídico maior a ser tutelado, bem como o direito à saúde, parte fundamental do direito à vida (a todos assegurado e dever do estado).
Contudo, a maleabilidade das vedações eleitorais só é concebível mediante incontestável vínculo de pertinência ao atendimento das necessidades decorrente da pandemia.
Por conseguinte, certo é que, a precitada obediência à coerência na aplicação das normas eleitorais, transcende a lisura do sufrágio, caracterizando pilar fundamental para a sobrevivência do estado democrático de direito.