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O caráter pragmático das ações de guarda

20/04/2020 às 15:37

Resumo:


  • O artigo analisa questões do direito de família, com foco na guarda, no contexto do processo judicial.

  • Destaca a importância da subsidiariedade na atuação estatal, especialmente em casos envolvendo crianças e adolescentes.

  • Aborda a relevância da construção interdisciplinar de narrativas pragmáticas para a prospecção de soluções viáveis no melhor interesse da criança.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Análise acerca do pragmatismo das questões atinentes aos institutos jurídicos do direito de família e seu desenvolvimento no processo judicial, notadamente na guarda.

Introdução

O presente artigo tem por fim analisar questões atinentes aos institutos jurídicos do direito de família e seu desenvolvimento no processo judicial, notadamente na guarda. Diz-se no processo porque a importância de temas de direito de família ganham relevância quando tais institutos passam pelo crivo do processo. A questão analisada é que o caminho a se percorrer na consecução da subsunção do fato à norma, no trato instrutório, tem cunho pragmático.  É neste aspecto pragmático que o trabalho se desenvolve.


1. Enquadramento do tema

Em primeiro, faz-se um enquadramento conceitual do tema proposto. Para tanto, toma-se, primeiramente, a família - em sua acepção jurídica. A família, nesta acepção, é uma esfera de cunho eminentemente privado, com alguma regulação estatal. A regulação do Estado aqui diz respeito ao reflexo que essa esfera privada irradia perante terceiros, ou seja, perante o tecido social. Importante situar o Estado nessa esfera, com o questionamento acerca de onde se posiciona aquele frente a esta. Defende-se que o Estado intervém nas relações privadas, logo, na esfera familiar, na medida do necessário. Seu posicionamento, portanto, deve ser subsidiário.

É importante a noção da subsidiariedade na atuação Estatal, isso porque o grau de intervenção converge ao correto calibramento das provas no curso processual. Inobstante, contudo, a intensidade de intervenção ser maior quando há criança/adolescente, é importante salientar que a norma civil regulatória atinente às crianças e adolescentes atribui ao Estado-juiz margem da atuação, ou seja, na seara do direito familiar há grau de discricionariedade normativa, daí que a atuação concreta ganha em pragmatismo.

1.1. Do poder familiar

Para que se melhor visualize o grau de intervenção estatal nesta esfera privada, na ótica normativa, parte-se do conceito de poder familiar, e, consequentemente, de guarda. O corte metodológico na guarda dá-se porque tal instituto é central nas ações que envolvem crianças e adolescentes, notadamente por correrem sob o procedimento comum, com liberdade de dilação probatória.

A constatação da discricionariedade normativa vem com o regramento normativo de poder familiar. É importante tecer considerações acerca da noção de poder familiar, para que fique visualizável as pegadas pragmatistas em tais ações.

Para um melhor aprofundamento do tema, explica Berenice Dias (2016, págs. 756/757):

De objeto de poder, o filho passou a sujeito de direito. Essa inversão ensejou modificação no conteúdo do poder familiar, em face do interesse social que envolve. Não se trata do exercício de uma autoridade, mas de um encargo imposto por lei aos pais. O poder familiar é sempre trazido como exemplo da noção de poder-função ou direito-dever, consagradora da teoria funcionalista das normas de direito das famílias: poder que é exercido pelos genitores, masque serve ao interesse do filho. Conforme Caio Mário da Silva Pereira, o Estado fixa limites de atuação aos titulares do poder familiar. A ideia predominante é de que a potestas deixou de ser uma prerrogativa do pai para se afirmar como a fixação jurídica do interesse dos filhos. A autonomia dafamília não é absoluta, sendo cabível - e vez por outra até salutar – a intervenção subsidiária do Estado. O grande desafio é encontrar o ponto de equilíbrio entre duas situações opostas: a supremacia do Estado nos domínios da família e a onipotência daqueles que assumem o poder de direção da família.

Tem-se, segundo se infere da lei, que o poder familiar é um instituto composto por vários feixes, dentre os quais está a guarda. Tais feixes estão prescritos no art. 1634[1], do Código Civil.

A delimitação de tal instituto jurídico, então, está no referido artigo 1.634 como um feixe do poder familiar. São nove incisos que, juntos, compõem esse enlaçamento rígido que liga pais e filhos, enquanto menores. Sempre lembrando que a quebra deste enlaçamento somente se dá em situações mais graves, previstas na lei.

Então, como parte da tratativa conceitual, interessa apontar como nasce e como se manifesta o poder familiar. Faz-se tal apontamento, pois este é um instituto mais dificilmente visualizável. O poder familiar nasce linguisticamente, constituído juridicamente por vários feixes, que liga pais e filhos, mas que pode ser redimensionado pelo judiciário de acordo com o caso concreto.

1.2. Da guarda

Entrando na guarda, em cima do conceito de poder familiar, traçam-se suas características, que vão convergir para o tema da atividade probatória.

A guarda, em si, possui característica pragmática. Aqui, faz-se uma referência ao pragmatismo, com base na filosofia sobre o assunto, para mostrar que a guarda segue os fatos que se apresentam no seio familiar ou social no qual está inserida uma criança/adolescente, ou, em linguagem mais usual no direito, no mundo fenomênico. 

Este instituto, como sendo um feixe do poder familiar, é mais flexível e modelável pelo poder judiciário. Ou seja, é a realidade fática quem vai conduzir o magistrado às soluções factíveis para criança/adolescente. Entra em cena o interesse da criança e adolescente. Então, defende-se, neste trabalho, que a guarda e a atividade probatória possuem características pragmáticas.

O pragmatismo, filosofia norte-americana, dispõe que a verdade não está assentada em teses que a sociedade deve seguir. Para o pragmatismo, o desenrolar da cotidianidade vai dando cores àquilo que a filosofia continental faria em teses a serem seguidas. Ou seja, o pragmatismo não possui um receituário para se alcançar aquilo que se chama verdade, típica do fundacionismo.

Melhor explicação do pragmatismo, encontra-se em Ghiraldelli, Rorty (2006, pág. 18):

Os bons manuais de filosofia da lógica ou de filosofia da linguagem nos dizem que, quando temos um enunciado p avaliado como verdadeiro, estamos diante de uma situação diferente daquela em que tal enunciado p é dito como bem justificado. Rorty sabe disso. No entanto, ele acrescenta: em certo limite não temos como separar, de modo rígido, a sentença “p é bem justificado” da sentença “p é verdadeiro”. Dizer que um enunciado qualquer é verdadeiro é algo que vale para um momento t, um lugar x e um público w. E ele continua: todo em qualquer enunciado, ao ser chamado por nós de “verdadeiro”, está sendo chamado, sim, de “bem justificado”, ou seja, “verdadeiro neste momento (t),para este público que está aqui (o lugar x), segundo as informações que este grupo possui (o público w)”.

A aplicabilidade da explicação acima entra no direito probatório, nas ações objeto deste artigo, na medida em que a história processual vai ser dada por cada caso concreto. Quando o juiz julga um caso concreto, os enunciados postos são verdadeiros num determinado momento, num determinado contexto familiar.

Então, onde a guarda cruza com o pragmatismo? No transcorrer processual, ou seja, a guarda está alicerçada em eventos que ocorrem no mundo fenomênico. Interessante que o Código Civil não traz a conceituação. Ele traz deveres atinentes à guarda. Logo, fica mais fácil visualizá-la pelo descumprimento desses deveres, pois o descumprimento pode resultar em perda, e aqui ganha acentuada importância o trato probatório.  Os fatos serão o norte para o poder judiciário.


2. Das provas

Então, tal instituto jurídico reserva questão fundamental: a atividade probatória. Fazendo uma diferenciação com o direito penal, percebe-se que no direito penal, o enquadramento fático à norma deve ser construído pela atividade probatória, e deve ser de tal monta que não haja probabilidade de não ter havido os eventos noticiados pelo acusador. No direito de família, notadamente, há orientação diversa. Neste, a atividade probatória é guiada pela probabilidade preponderante, e é aqui que o substrato pragmático norteia a guarda. A guarda é um instituto que está assentado na probabilidade, essencialmente em projeções. Abre-se, então, um espectro largo dentro do qual incide a atividade probatória. Quer dizer que em direito de família há as narrativas, dentre as quais prevalece a que atenda à criança/adolescente.

A prova é caminho que leva à verdade, ou seja, a prova emana um conhecimento sobre a verdade. Isso significa que a verdade é objetiva, mas o caminho que leva à verdade é um ato de conhecimento. No direito, esses caminhos são as provas. Toma-se um exemplo: Casal com um filho se divorcia. Um dos cônjuges está inapto ao exercício da mesma, pois é pessoa violenta e coloca em risco a integridade física da criança. Trabalhando com a verdade objetiva, tem-se que o casal se divorciou e que um dos cônjuges é pessoa violenta. Parte-se do pressuposto que esses dois eventos são verdadeiros. Para a análise do conhecimento sobre a verdade, infere-se uma sentença do tipo p->q. Então, supondo-se que tais acontecimentos acima são verdadeiros, como chegar até essa verdade?

Defende que as ações de direito de família, notadamente nas ações que correm sob o procedimento comum, estão, como acima já indicado, sob narrativas, e a narrativa vencedora será a que melhor dizer sobre o interesse da criança. O órgão habilitado a atribuir valor às narrativas é o judiciário, mas há uma confluência de colaboradores nas narrativas postas, numa espécie abertura a diversos intérpretes da constituição e da lei.

Importância repousa sobre os fatos veiculados pelas partes em litígio. No que atine a fatos veiculados pelas partes, tanto na petição inicial, como na contestação e nos laudos psicossocial, cabe uma observação de Taruffo (2014, pág. 19):

Fatos e enunciados. Uma importante observação merece ser feita aqui sobre fatos e a maneira como esses se determinam [...]. Em conseqüência, salvo alguns elementos de prova circunstancial, os fatos não podem ser percebidos pelo juiz: esses devem ser reconstruídos pelo julgador com base na prova disponível [...]. Quando se fala da verdade de um fato, na realidade fala-se da verdade de um enunciado acerca desse fato. Por conseguinte, o que se prova ou se demonstra no processo judicial é a veracidade ou falsidade dos enunciados acerca dos fatos em litígio.  

O excerto acima diz que no direito probatório há a noção de verdade por correspondência; ou seja, os enunciados colocados pelas partes devem encontrar correspondência em algum, ou alguns, eventos do mundo do ser, do mundo real.  No direito, chega-se nestes últimos por meio de caminhos, e tais caminhos são os meios de prova, como se fossem estradas que levam à almejada verdade.

Em outras palavras, tais eventos noticiados entram no processo, primeiramente, como uma proposta de verdade, mas, para que tais eventos narrados tenham valor verdade, precisam passar pela comprovação. Se a parte enuncia, verbaliza, qualquer evento no processo, tal evento não se torna verdade por ato de imposição ou retórica, mas, sim, por meio da prova.

2.1. Do lado assistencial e psicossocial

Na deflagração da atividade probatória interdisciplinar, ganha peso a prova técnica. Ao final da demanda, é rotineiro o magistrado atribuir maior peso probatório aos laudos dos profissionais da área da psicologia e assistência social na confecção da sentença. Contudo, há de se fazer algumas observações.

No que toca ao direito, sem adentrar nos meandros dessas atividades técnicas, a construção do laudo trabalha também com fatos veiculados pelas partes, mas neste ponto coloca a questão: o estudo psicossocial é o filtro da verdade, no que atine aos fatos verbalizados? Tal questão é importante porque em estudos assistenciais/psicológicos não há contraditório. Contudo, inobstante isso, tal meio de prova é essencial à construção da narrativa multidisciplinar. Nas palavras de Taruffo (2014, pág. 310):

Deixar essas valorações ao improviso do juiz, que dificilmente é aparelhado para fazê-las, mostra-se uma solução arriscada e inadequada, que acaba por se apoiar em uma discricionariedade quase absoluta do próprio juiz.

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 Mas atenta-se que a utilização unicamente de tais laudos não é suficiente para uma cognição mais profunda. Para tal, o valor V ou F de fatos veiculados pelas partes, ou pelos técnicos via partes, são atribuídos pelo Estado-juiz, após o procedimento contraditório previsto na lei processual. Em outras palavras, os laudos devem ser complementados com outros meios de provas, como o testemunhal, para, inclusive, depurar o que as partes expuseram aos profissionais da assistência e psicologia.


3. Por que a construção interdisciplinar de narrativas?

Pode-se inferir que o caráter pragmático das ações que envolvem crianças está no fato de que possuem natureza prospectiva. Prospectar é fazer projeções, trazer várias possibilidades factíveis para a criança. Ou seja, o judiciário, numa ação de guarda, olha para o futuro. Daí o princípio do melhor interesse da criança. Isso significa que, em ações deste tipo, o sistema de proteção à infância almeja a construção de narrativas multidisciplinares que permitam ao magistrado a prospecção de caminhos possíveis e realizáveis para a criança.

No que atine à multidisciplinaridade, ensina Ishida (2017, pág. 29):

Finalmente, surge, como fase mais recente, a doutrina da proteção integral, com destaque para os direitos fundamentais da criança e do adolescente. Dentre essas diretrizes, surge o próprio ECA, passando a abranger uma gama variada de disciplinas voltadas à proteção dos direitos da criança e do adolescente. Essa autonomia abrange o estudo de todas as relações sociais em que a criança ou adolescente ocupa a posição de sujeito ou de objeto de políticas sociais de proteção (Clara Sottomayor, Temas de direito das crianças, p.63).

O que se pretende neste artigo é o caminho pragmático no trato com a infância pelo judiciário. O ECA, art. 2º[2], por exemplo, estabeleceu balizas temporais que classificam pessoas como crianças. Mas tenta-se ir além ao incorporar neste artigo a concepção pragmática, que não estabelece conceitos. Nas palavras de Ghiraldelli Júnior (2013, pág. 90):

Ora, por que não adotar a palavra “infância” apenas como palavra, e não como conceito? Não seria melhor? Não seria mais interessante fazer como a escola de Pinóquio, que nunca criou nenhum crivo sério para matriculá-lo ou não?

Aqui, tenta-se demonstrar que o caso concreto vai desenhar o cenário no qual o magistrado constrói a norma aplicável, diante das narrativas postas.


4. Conclusão

Diante do exposto, pode-se concluir que as ações que envolvem crianças possuem caráter pragmático na medida em que servem à construção de projetos factíveis para estas. A sentença do caso concreto deve se sustentar na melhor narrativa posta, depois da depuração das provas em contraditório. O tema toca no pragnatismo na medida em que este prima pelas narrativas dos casos que se apresentam.


5. Referências bibliográficas.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4 ed.em e-book baseada na 11 ed. Impressa. Editora Revista dos Tribunais, 2016.

GHIRALDELLI Jr, Paulo. Filosofia Política para Educadores: democracia e direito de minorias. Barueri,SP: Manole, 2013.

ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência . 18ª edição. Salvador: Juspodium, 2017.

RORTY, Richard; GHIRALDELLI Jr, Paulo. Ensaios pragmatistas: sobre subjetividade e verdade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

TARUFFO, Michele. A Prova. 1ª edição. São Paulo: Marcial Pons, 2014.


Notas

[1] Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:      (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)

I - dirigir-lhes a criação e a educação;      (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)

II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584 ;      (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)

III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;      (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)

IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior;      (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)

V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;     (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)

VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;      (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)

VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;      (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)

VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;      (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014)

IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.      (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014)

[2] Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

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Sobre o autor
Marcelo Bodoco

Mestrado em Direito Negocial (2011) / UEL. Atuação profissional na advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BODOCO, Marcelo. O caráter pragmático das ações de guarda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6137, 20 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81368. Acesso em: 22 dez. 2024.

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