Muito se tem discutido acerca dos aspectos criminais que envolvem a prática do aborto quando constatada a anencefalia do feto. A proteção ao "nascituro" tem sido contraposta aos danos psicológicos observados na mulher que suporta uma gravidez nestas circunstâncias, vendo-se aviltada em sua própria dignidade. Trata-se de questão merecedora do mais profundo debate, a exigir sejam sopesados aspectos médicos e jurídicos.
Primeiramente, observa-se a importância da delimitação do bem jurídico tutelado pelos tipos penais previstos nos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal pátrio, todos relativos à prática do aborto. Nestes casos, conforme escorreita lição de Luiz Regis Prado, a tutela penal recai essencialmente sobre "a vida do ser humano em formação". Ainda segundo o eminente jurista, neste sentido "protege-se a vida intra-uterina, para que possa o ser humano desenvolver-se e nascer" [01]. Posto isto, só se pode concluir que o objeto material do delito é o embrião ou feto humano vivo e apto a desenvolver-se, que esteja alojado no útero da gestante.
Ou seja, garante-se proteção jurídica ao embrião/feto vivo para que este tenha condições de vir ao mundo e tornar-se um indivíduo capaz de ampliar suas potencialidades enquanto tal. Trata-se de guarida correlata à que o Direito Civil confere ao nascituro e é a chave da discussão que ora se inicia e para cujo desenlace fazem-se necessárias algumas considerações acerca da anencefalia.
Conforme breve definição médica, consiste a anencefalia na má-formação congênita do sistema nervoso central, na qual o encéfalo é anaplásico (não se desenvolve) e a calota craniana está ausente, ficando a mal desenvolvida massa cerebral exposta [02]. Os hemisférios cerebrais e o cerebelo geralmente estão ausentes e identifica-se apenas um resíduo do tronco encefálico [03]. O que se observa, portanto, é um ser dotado apenas de fragmentos cerebrais, que tem seu fim inexoravelmente próximo, vez que não possui a estrutura encefálica necessária à realização das sinapses que possibilitarão a manutenção de uma respiração autônoma e o desenvolvimento de outras funções essenciais à existência.
Neste ponto, remetemo-nos a outra questão de suma relevância para o deslinde desta discussão, qual seja, a do momento de constatação da morte para efeitos legais. Como cediço, atualmente, num consenso de valores médico-jurídicos, tem-se admitido a morte quando da constatação da falência encefálica, na qual se verifica lesão ou deterioração substancial e irrecuperável do cérebro, em que o sujeito se torna incapaz de viver de forma autônoma [04], autorizando-se, inclusive, a doação de seus órgãos.
É o que preconiza a Lei 9.434/97, que em seu art. 3º, caput, assim dispõe:
"Art. 3º. A retirada
Definido este limite, como se admitir que o feto anencefálico tenha condições de vida, se as deformações constatadas em seu precário desenvolvimento indicam tratar-se de um ser que possui tão-somente resíduos do tronco cerebral, geralmente com hemisférios cerebrais e cerebelo ausentes?
Verifica-se, pois, a inviabilidade do feto, que só tem condições de manter algumas de suas funções, como batimentos cardíacos, enquanto ligado à mãe ou enquanto amparado por aparelhagem médica. E, se a tutela penal, como já dito, resguarda "a vida intra-uterina, para que possa o ser humano desenvolver-se e nascer", não se pode conceber que também recaia sobre o feto que de antemão se sabe destituído das condições mínimas de sobrevivência, não se admitindo a punição à gestante ou a quem, com sua autorização, interrompa tal gravidez.
Levando-se em consideração a legalidade restritiva que permeia o tipo penal, tem-se a conduta acima sugerida por atípica, uma vez que direcionada a objeto não protegido por normas criminais, sendo destituída de potencial lesivo aos objetos materiais contidos nos tipos delimitados nos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal Brasileiro.
Afastados os debates religiosos, há de se observar que vivemos num Estado laico, em que vige o princípio maior da dignidade da pessoa humana, cuja interpretação não permite vislumbrar-se que uma mulher seja compelida a carregar em seu ventre um feto inviável, sem o mínimo potencial necessário para viver e tornar-se um indivíduo. Como supradelineado, as condições do anencéfalo são comparáveis ao do indivíduo a que sobreveio falência encefálica, podendo, logo, ser considerado juridicamente morto.
Face às circunstâncias expostas, descabido falar-se sequer em direitos a serem sopesados proporcionalmente, eis que ao feto anencéfalo não se pode atribuir a mesma proteção jurídica conferida ao nascituro. Assim, a outra conclusão não se pode chegar senão pela atipicidade [05] da conduta da gestante que interrompe ou autoriza terceiro a interromper gestação de feto sabidamente acometido pela anencefalia, dentre as "monstruosidades fetais, das que mais impressiona médicos e leigos". [06]
Notas
01
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 2: parte especial: arts. 121 a 183. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2000. 629 p. p. 88.02
PLESS, J. P. P. Malformações do sistema nervoso central e seus envoltórios. In: VAZ, F. A. C. Monografias médicas: Série Pediatria. Rio de Janeiro: Sarvier, 1983. XXIV v. 399p. p. 96.03
HASLAN, R. H. A. Anomalias congênitas do sistema nervoso central. In: BEHRMAN, R. E.; KLIEGMAN, R. M.; ARVIN, A. M.. NELSON: Tratado de Pediatria. 15 ed. Rio de Janeiro: Guanabara. Koogan, 1997. 2v. V. 2, cap. 542. 2477p. p. 1777.04
PRADO, Luiz Regis. Op. Cit. p. 37.05
Note-se que, em se tratando de conduta atípica, prescindível que o aborto de feto anencfálico seja incluído no Código Penal dentre as hipóteses acobertadas pelo art. 128.06
REZENDE, J. R. Distocias do cordão. Macrossomia do feto. Anencefalia. In:________. Obstetrícia. 7 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1995. 1360 p. cap 42, p. 1114 – 1116.