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Lei de abuso de autoridade

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09/05/2020 às 10:10
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Principais aspectos afetos à recente lei que tipifica o abuso de autoridade, suas consequências dentro do ordenamento jurídico, e a questionável constitucionalidade de alguns de seus dispositivos.

Conforme Guilherme Nucci argumentou, com razão, a recente Lei de Abuso de Autoridade foi editada num momento equivocado pois mais parece ser uma resposta vingativa do Parlamento contra a Operação Lava Jato. Porém, em sua essência técnica trata-se de lei absolutamente regular e sem nenhum vício de inconstitucionalidade. A despeito de existirem quatro ações questionando sua constitucionalidade.

Ad comparandum, trata-se de lei superior à anterior, a Lei 4.898/1965, sem vício de inconstitucionalidade, trazendo uma autêntica proteção aos operadores de Direito.

E Nucci prossegue, enumerando suas principais vantagens, a saber:

1. A lei anterior, que fora editada em plena ditadura militar, estava precisando de reforma integral, adaptando-se à atualidade. Sendo relevante destacar que os tipos penais previstos na lei anterior eram em demasiado abertos e não taxativos. E, para tanto, basta a leitura do artigo 3º da lei anterior, que apontava que constitui abuso de autoridade qualquer atentado à liberdade de locomoção. De sorte que era amoldável a tal tipo toda e qualquer prisão preventiva[2] decretada "sem justa causa" ou, até mesmo, a " condução coercitiva", mesmo fora das hipóteses legais. Com a atual e ora vigente lei, se tornou mais esclarecedor e taxativo.

2. É absolutamente normal existirem defeitos redacionais no que se refere aos tipos penais incriminadores. Porém, as falhas da lei anterior são muito mais expressivas do que as da atual lei. E esclareceu de forma cristalina que um abuso de autoridade somente ocorre quando manifestamente excessiva for a atitude do agente público. O que é manifesto é aquilo que é notório, patente e inegável. Nucci argumentou, questionando exatamente o que poderia ser denominado como "manifesto"? Portanto, a aplicação de nova lei de abuso de autoridade é quase nula.

3. A norma penal estabelece que, além do dolo, é preciso buscar o elemento subjetivo específico, ou seja, o dolo específico. Elogiável é o cuidado legislativo em colocar, de forma mais destacada, que todos os tipos penais configuradores de crime de abuso de autoridade exigem, além do dolo, a especial finalidade de prejudicar outrem ou mesmo beneficiar a si ou a terceiro, ou ainda, por meio capricho ou satisfação pessoal.

De forma que são várias as alternativas finalísticas, apesar de que sejam todas particularmente reprováveis, razão pela qual, se o agente público prender uma pessoa apenas com o fito de prejudicá-la, ou somente para se beneficiar disso, exclusivamente por capricho (seja uma vontade arbitrária ou teimosia) ou unicamente para mera satisfação pessoal, indiscutivelmente estão abusando do seu poder.

Afinal, a grande maioria dos agentes de segurança pública, os membros do Ministério Público e as autoridades judiciárias, atua de maneira reta e honesta, sem nem pensar em se exceder na seara de sua autoridade.

Convém recordar que a lei anterior deixou a encargo da doutrina e jurisprudência, exigir, para configurar o abuso de autoridade, a finalidade específica de se exceder para prejudicar outrem, ou ainda, satisfazer a si mesmo. E, a atual e já vigente lei é muito mais garantista e protetora. Portanto, resta amparado também o agente público pelo mando do elemento subjetivo específico que é bem mais difícil de explorar e provar;

4. Qual outra lei fornece maior proteção ao operador de Direito, evocando com clareza a divergência de interpretação? Questionou Nucci. Não existe no Código Penal brasileiro, nem em leis especiais. Portanto, a nova lei afirma que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.

Assim, duas autoridades judiciárias podem mesmo pensar e concluir em situações diametralmente opostas. Conclui-se que divergir em interpretação não constitui abuso de autoridade. Também não existe abuso de autoridade por parte de quem prendeu, e, portanto, também não se cogita em prevaricação por quem soltou.

Exemplificando, um promotor pode efetivamente denunciar, ao avaliar que o fato é típico, enquanto que outro parquet, em caso similar, pedir arquivamento, acreditando ser fato atípico. Finalmente, como outro exemplo, um delegado pode avaliar a prova e entender cabível a prisão em flagrante e, outro colega seu, de forma divergente, avaliando de forma diversa a prova, entender por ser incabível. Não existe abuso de autoridade e nem outro ilícito para a posição divergente.

5.Com relação às penas, ressalte-se que em várias destas, demonstram crimes de menor potencial ofensivo e, outras, apontam para a viabilidade de aplicação de suspensão condicional do processo. Enfim, não existe um único delito que significa pena de prisão como primeira hipótese. No fundo, o crime de abuso de autoridade é grave, mas não está sendo tratado como crime hediondo e nem tampouco com severidade extremada no tocante às penas cominadas, admitindo, claramente, penas restritivas de direitos (mesmo quando não couber a transação penal ou sursis processual[3]);

6. A nova lei representa um aprimoramento da lei processual penal que preceitua que cabe indenização à vítima, a ser fixada na sentença condenatória criminal, desde que o ofendido assim tenha requerido. O que é correto e segue a sequência das decisões pelas Cortes Superiores, sendo outra vantagem da atual lei de abuso de autoridade.

7. O sentenciado por abuso de autoridade pode tornar-se inabilitado para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de um a cinco anos, além de perder o cargo, mandato ou função pública. A lei ainda prevê a recuperação do direito, e se tornar outra vez, autoridade. E, no âmbito original do Código Penal brasileiro, a perda do cargo, mandato ou função é definitiva. E, quem age abusivamente, sendo por isso, condenado, não deveria mesmo voltar ao poder. A vigente lei é favorável ao agente público, principalmente quando comprovada sua inocência.

Sustenta Nucci ainda que, apesar do péssimo momento e contexto histórico da edição da lei, analisando o conjunto da lei atual de abuso de autoridade,  observa-se que é mais favorável ao agente público. Cumpre ainda analisar alguns tipos penais que confirmam a vantagem da atual lei em comparação com a lei anterior e revogada.

Preceitua o artigo 9º que constitui crime de abuso de autoridade "decretar medida de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as penas legais. E, incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro do prazo razoável deixar de: relaxar a prisão manifestamente ilegal; substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder a liberdade provisória, quando manifestamente cabível; deferir a liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.

Novamente, Nucci questiona qual juiz decretaria a prisão preventiva, de réu que sabe ser legalmente incabível? Ou mesmo qual o magistrado deixaria de relaxar a prisão em flagrante quando nitidamente ilegal? Ou mais adiante, qual desembargador ou ministro deixaria de conceder liminar em ordem de habeas corpus quando for evidentemente cabível? Logicamente, nenhum membro do Judiciário pátrio, agindo dentro de suas funções, com boa-fé, cometeria tais absurdos. E, são intangíveis pela vigente lei.

É verdade que o conceito[4] do que seja "manifestamente ilegal" é vago e impreciso. Porém é forte o suficiente para indicar o correto caminho da interpretação, mas é fundamental relembrar dois pontos, segundo Nucci, a saber: a) a finalidade específica de prejudicar terceiro ou se favorecer; b) não se pode punir a divergência de interpretação. Afinal, nesse caso, não há como atingir o agente público.

Registram-se alguns tipos penais que foram esculpidos especialmente à operação Lava Jato, conforme é o caso do artigo 10 da nova lei de abuso de autoridade. Com relação à nova modalidade de condução coercitiva, mesmo sob a égide da lei anterior, é inviável.

Pois, segundo Nucci, não se pode conduzir uma pessoa, seja testemunha ou suspeito, para prestar esclarecimento à autoridade sem nunca antes tê-la intimado a comparecer para fornecer o seu depoimento, livre de constrangimento. Com a devida vênia, o argumento de que a condução coercitiva (sem prévia intimação e fora dos termos legais) é melhor do que a decretação da prisão cautelar é frágil. Se cabia a prisão temporária, fosse essa decretada nos termos legais. Sendo inviável utilizar-se do meio alternativo.

Com relação o suspeito, lembremos que este pode calar-se, pois tem efetivo e concreto direito ao silêncio[5], e quanto à testemunha não se sujeita à prisão cautelar, a bem da verdade. Inexiste no ordenamento jurídico brasileiro nenhum dispositivo permitindo prender a testemunha, exceto nos casos de falso testemunho. Portanto, a condução coercitiva criada pela Operação Lava Jato configurava, positivamente, um abuso de autoridade. Mas, ninguém foi indiciado, processado ou punido, sob a lei anterior, muito mais aberta do que a vigente e recente lei.

Resta confirmada a criação do tipo penal para a Operação Lava jato, quanto à impropriedade dessa condução coercitiva e também pelo Plenário do STF. Especialmente o artigo 10 que afirma in litteris: Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo. Prevendo a pena de detenção de um a quatro anos e multa.

Constitucionalmente, recomenda-se ao agente policial, ao executar prisão, que se identifique, assim como quem vai conduzir para o interrogatório (artigo 5, LXIV). Surge novo tipo penal incriminador, que é previsto no artigo 16, qual seja: deixar de se identificar, ou identificar-se, falsamente ao preso, por ocasião de sua captura, ou quando deva fazê-lo durante sua detenção ou prisão.

E, incorre na mesma pena quem, como responsável por interrogatório em sede de procedimento investigatório de infração penal, deixa de identificar-se ao preso ou atribui a si mesmo, falsa identidade, cargo ou função. O presente tipo penal encontra-se em perfeita sintonia e harmonia com a vigente norma constitucional.

Já quanto ao órgão acusatório, há o artigo 30 que in litteris menciona: "dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente". O que é também muito improvável principalmente na vigência do Estado Democrático de Direito.

Também o artigo 38 prevê o crime de abuso de autoridade, in litteris: antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”. Este é outro delito criado para a operação Lava Jato.

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Recomenda-se também que antes de colocar na mídia quem seja o culpado, deve-se mesmo guardar sigilo[6], respeitando-se a figura do réu, e aguardando a conclusão da investigação criminal. De sorte que não se deve banalizar a violação da reputação alheia e jamais deve-se eleger um alvo preferido para ser o culpado, por mais que tudo indique ser o conduzido o real culpado.

A partir de 03 de janeiro de 2020 passou estar em vigência a Lei de Abuso de Autoridade e dentre tantas previsões da nova lei há a punição de agentes públicos que decretar condução coercitiva de testemunha ou de investigado antes de intimação judicial, bem como promover escuta telefônica ou quebrar segredo de justiça sem prévia autorização judicial, e divulgar gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, e continuar  interrogando suspeito que tenha decidir permanecer calado ou ainda que tenha solicitado a assistência de advogado, interrogar à noite, quando não for caso de flagrante delito e, ainda procrastinar a investigação sem a devida justificativa.

Totalizaram-se cinquenta e três condutas definidas inicialmente como abusos de autoridade.  E, apesar da Presidência da República vetar vinte e três dispositivos, dezoito desses acabaram sendo restauradas durante a análise dos parlamentares brasileiros.

Pelo menos quarenta e cinco condutas delitivas[7] são punidas com até quatro anos de detenção, multa e indenização da pessoa prejudicada. E, em caso de reincidência, o servidor poderá perder o cargo e ainda ficar inabilitado para retornar ao serviço público por até cinco anos.

Segundo a Associação de Magistrados Brasileiros, a AMB quer venha o STF reconhecer a inconstitucionalidade de todos os que afetem o Judiciário. Entendeu que a lei tem o propósito de amordaçar a magistratura e ainda prejudica a liberdade de julgar, especialmente quanto as ações de combate à corrupção.

De sorte que a entidade venho ingressar com a ação direta de inconstitucionalidade junto a Suprema Corte para ver reconhecida a inconstitucionalidade de todos os artigos que afetem a independência do Poder Judiciário.

Atualmente já são cinco as ações de inconstitucionalidade ajuizadas no STF contra diversos dispositivos da recente Lei de Abuso de Autoridade. Em outubro do ano passado, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) protocolou a ADI 6.240 em face do flagrante estado de inconstitucionalidade sobretudo o afeta o trabalho dos funcionários do Fisco.

No caso da ação da Anfip, a associação sustenta que os artigos 27, 29 e 31 da lei inibem o poder de tributação da administração pública, ao estabelecer penas de privação de liberdade e de multa em situações em que a autoridade, no seu entendimento, atua no livre exercício da função na qual foi investida.

Segundo os auditores, a lei não é clara ao conceituar o abuso de autoridade e representa uma perda significativa do poder de arrecadação do Estado.  “A carreira se sente acuada e amedrontada com a possibilidade de sofrer com denúncias vazias, a qualquer instante, no exercício regular de suas atribuições”, afirma”.

Em verdade, já tinham ajuizado ações similares as seguintes entidades: Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e três associações nacionais dos integrantes do Ministério Público, Conamp, ANPR e ANPT, AMB e relator de todos estes feitos é o Ministro Celso Mello.

A propósito, há notável parecer jurídico de Ayres Britto que aponta inconstitucionalidades na lei de abuso de autoridade.

Afirma o renomado jurista que a lei inibe a prestação jurisdicional e independência do magistrado que se vê visceralmente criminalizado. E, nenhum diploma infraconstitucional pode ter a pretensão de ditar as coordenadas mentais do juiz, ou instância judicante colegiada, para conhecer do descritor e do prescritor dessa ou daquela norma geral a aplicar por forma tipicamente jurisdicional.

Ayres Britto, in litteris afirma: “É exatamente essa autonomia de ordem técnica (autonomia de quem presta a jurisdição como atividade estatal-finalística ou por definição) que assiste a todo e qualquer magistrado. Seja qual for o grau de sua jurisdição. Agindo solitariamente ou então como integrante desse ou daquele tribunal judiciário.”

De acordo com o referido parecer, são inconstitucionais (material e formalmente) os seguintes dispositivos da lei:

Art. 9º   Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais;

Art. 10º Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo;

Art. 20º Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado;

Art. 25º Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito;

Art. 36º Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la;

Art. 43 Altera a Lei Federal 8.906/94, Estatuto da Advocacia e da OAB, estabelecendo como crime a violação das prerrogativas profissionais do advogado.

Com relação a esse último artigo, ressalta o parecer no sentido de que o tema se inscreve nos concomitantes princípios da reserva de Constituição e da Lei Complementar veiculadora do Estatuto da Magistratura.

E, ainda, recomenda que cabe à Lei da Advocacia aportar outros meios de conciliar a aplicabilidade dos dois orgânicos diplomas, porém, sem criminalizar jamais a interpretação judicial dessa ou daquela norma geral (que seria o inconcebível crime de hermenêutica).

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Sobre a autora
Gisele Leite

Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores POA -RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Gisele. Lei de abuso de autoridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6156, 9 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81872. Acesso em: 22 nov. 2024.

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