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Ilegalidade de presumir-se depósitos bancários como enriquecimento ilícito do agente público para fins de improbidade administrativa

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28/04/2006 às 00:00
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V.- QUEBRA DE SIGILOS BANCÁRIO E FISCAL DO AGENTE PÚBLICO NÃO PODE SE DAR SEM MOTIVO JUSTIFICADO E FUNDAMENTADO

Com muita freqüência, a Administração Tributária, detentora da guarda dos sigilos bancários (declaração de renda) tem fornecido dados, mesmo que sem autorização judicial de agentes públicos, para que o Poder Público/Administração Pública inicie investigação, por enriquecimento ilícito presumido.

Este ato é ilegal e fere Direito fundamental da proteção de sigilos de dados (art. 5º, X e XII, da CF) do agente público investigado.

Os Direitos fundamentais são "valores supremos" [62] que possibilitam a garantia do status libertatis de toda sociedade, possuindo função social.

A ponderação dos Direitos fundamentais que a doutrina moderna tem admitido não pode chegar a medida de desnaturá-los.

Ou seja, a relativização dos direitos fundamentais da sociedade não pode retirar a função social dos mesmos, como aduz Peter Häberle: [63] "La ya descrita ‘función social’ de los derechos fundamentales, su importancia para la vida social ‘en su conjunto’ pretendida por la Ley Fundamental con su garantía, tiene en el presente contexto un interés especial: también evita una ‘relativización’ de los derechos fundamentales. Se prohibe al legislador una puesta en peligno de la ‘función social’ de los mismos. No puede reulnerar el ‘funcionalismo universal’ de la libertad en la vida social ni el ‘resultado colectivo’ a que la Constitución aspira. Al contrario. El punto de mira del legislador cuando introduce normaciones en el ámbito de los derechos fundamentales tiene que se alcanzar un grado óptimo de la significación de los mismos para la vida social en su conjunto" [aspas no original].

Não resta dúvida que a Constituição Federal estabelece princípios objetivos elencados no art. 37, que devem ser observados e cumpridos pelo Poder Público, sendo que um deles é o da impessoalidade, a exigir que não haja perseguições ou privilégios desarrazoados.

Pela imparcialidade é defeso ao Estado eleger seus agentes públicos para este ou aquele fim, visto que somente por um justo motivo é que poderá haver a devida investigação tributária/administrativa, pois "está vedado al Estado distinguir entre los indivíduos en función de su presunto valor moral." [64]

O Estado Democrático de Direito começa a existir a partir da Constituição que através de cláusulas garante a aplicação dos Direitos fundamentais, estabelecendo a devida e necessária segurança jurídica de todos.

E a aplicação dos princípios e normas constitucionais deve objetivar alcançar o equilíbrio entre a força do Estado colocada para bem servir ao indivíduo, e a manutenção dos direitos e das garantias fundamentais de uma sociedade livre, justa e solidária.Tem-se, assim, que o agente público para ser alçado à condição de investigado, não poderá ser eleito por vontade pessoal de sua chefia ou política do órgão público, visto que pelo princípio da impessoalidade e outros, sua conduta deverá subsumir-se a um tipo legal, sob pena de configurar um abuso de poder investigatório da autoridade processante.

O resguardo de informações bancárias era regido pela Lei nº 4.595/64, reguladora do Sistema Financeiro Nacional, e que foi recepcionado pelo art. 192, da Constituição Federal, com força de Lei Complementar, que possibilitava a quebra de sigilo bancário apenas por decisão judicial, até o advento da vigente Lei Complementar nº 105/2001.

Por outro lado, após a edição da Lei nº 9.311/96, que instituiu a CPMF, as instituições financeiras responsáveis pela retenção da referida contribuição, ficaram obrigadas a prestar informações à Secretaria da Receita Federal fornecendo dados a respeito de identificação dos contribuintes e os valores globais das respectivas operações bancárias.

A possibilidade de quebra do sigilo bancário foi levada a efeito pelo art. 6º, da Lei Complementar nº 105/2001: "Art. 6º. As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente."

Como visto, para haver a quebra de sigilo bancário/fiscal na atualidade, deverá haver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, sendo certo que tais exames sejam considerados imperiosos e fundamentais pela autoridade administrativa competente. Esta autorização legal não serve como um poder para a Administração Pública, visto ser necessária a justa causa e a devida razoabilidade da medida. O que temos presenciado é justamente o contrário, onde o Poder Público primeiro acusa, depois tenta reunir provas, para após formalizar o procedimento administrativo solicitando autorização judicial para respaldar a já efetuada quebra de sigilos. [65]

A pretexto de possibilitar uma pseudo investigação do contribuinte/agente público, o Poder Público tem vilipendiado os respectivos direitos de sigilo de dados, da intimidade, da privacidade, através da quebra do sigilo bancário/fiscal, sob o fundamento que está verificando se houve a prática de enriquecimento ilícito presumido, sem contudo, demonstrar um nexo de causalidade com a função pública. Ou seja, é invertida a presunção de inocência do agente público acusado, com a quebra de seus sigilos de dados, sem ao menos ser demonstrada uma violação a preceito administrativo, ou a prática de um ilícito por parte do mesmo. Deveria ser demonstrado, em primeiro lugar, a prática de um ilícito, vinculada a função pública exercida pelo agente público investigado, para após ser apurado se houve o enriquecimento ilícito presumido. A inversão destes papéis é extremamente danosa, pois a Administração Pública parte do princípio de que se houver uma movimentação bancária incompatível com os vencimentos do agente público resta caracterizado o enriquecimento ilícito presumido.

Como já aduzido anteriormente, a movimentação bancária não demonstra a aquisição de renda, sendo indevido o lançamento tributário baseado apenas em saldo bancário.

Além do mais, os valores depositados em conta-corrente bancária podem ser oriundos de movimentação lícita, tal como compra e venda de bens imóveis, recebimento de herança, contas conjuntas, doação, dividendos de empresas, ações, fundos de investimentos, etc.

Presumir a ilicitude ou a desproporcionalidade da movimentação financeira, sem um nexo de causalidade com a função pública configura uma indevida e injustificada quebra de sigilo de dados, visto que para ela ser considerada justificável deverá vir precedida de um motivo justificado e fundamentado, que possua ponto de apoio em um ato ilícito praticado no exercício da função pública.

E não basta a autoridade que investiga o agente público alegar que o motivo e o fundamento da quebra do sigilo é a verificação do aludido enriquecimento ilícito presumido do agente público, pois sem o estabelecimento de um ponto de conexão com o exercício da função pública não haverá a demonstração do indevido exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade, nas entidades mencionadas no art. 1º, da Lei nº 8.429/92, consoante determinação expressa do art. 9º, da citada lei.

Sem a devida fundamentação, com a demonstração de graves indícios de que o agente público se utiliza de suas funções para auferir vantagens indevidas, verifica-se a ausência de um justo motivo para possibilitar a quebra do sigilo bancário/fiscal do investigado. O exercício indevido da função pública é o elo de plausibilidade para a solicitação da quebra de sigilo de dados do agente público investigado. Sendo ilegal partir-se tão somente dos saldos bancários para se construir um enriquecimento ilícito presumido, desacompanhado de uma atividade irregular do mesmo, além de não estar configurado o empobrecimento de outrem. Ou seja, parte-se de um enriquecimento sem se demonstrar que o ente público foi lesado ou empobrecido, além da inexistência de um ilícito funcional.

É nulo de pleno direito a quebra do sigilo fiscal e bancário, quando ausente a indispensável fundamentação, [66] estabelecida a partir de fatos tidos, em tese, como ilícitos ou ilegais.

A quebra dos sigilos fiscal e bancário é medida excepcional, necessitando que hajam indícios suficientes da prática de um delito, sendo insuficiente meras matérias jornalísticas, [67] tendo em conta que a acusação deverá ter plausibilidade e verossimilhança, sob pena de se produzir prova ilícita (art. 5º, LVI, da CF).

Se é certo que não é absoluta a garantia dos sigilos bancário e fiscal, destaca-se que a respectiva relativização desta prerrogativa deve vir precedida de interesse público relevante e suspeita razoável de infração penal/administrativa, fazendo-se necessário a demonstração cabal de um nexo de causalidade entre o exercício da função pública e a movimentação bancária/fiscal produto de ilícito. Sendo insuficiente partir-se de saldos ou movimentações bancárias para se justificar a quebra do respectivo sigilo, visto que a motivação deve ser concreta e absoluta, longe de especulação ou de devassas indevidas e ilegais. A motivação deverá estar interligada a um ato ilícito consistente na prática do indevido exercício da função pública (art. 9º, Lei nº 8.429/92): "Mandado de Segurança. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Quebra de Sigilo Bancário, Fiscal e Telefônico. Falta de fundamentação. Nulidade do Ato Impugnado. Precedentes. 1. Se não fundamentado, nulo é o ato da Comissão Parlamentar de Inquérito que determina a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico. 2. Meras ilações e conjecturas, destituídas de qualquer evidencia material, não têm o condão de justificar a ruptura das garantias constitucionais preconizadas no artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal. Segurança concedida." [68]

Corroborando o que acabamos de afirmar, basta verificar que o STF [69] vem repudiando devassa da intimidade de pessoas por meras conjecturas veiculadas em matéria jornalística: "Mandado de Segurança. Constitucional. Comissão Parlamentar de Inquérito. Roubo de Cargas. Quebra de Sigilos Bancário, Fiscal e Telefônico do Impetrante com base em Matérias Jornalísticas. Excepcionalidade da garantia constitucional da vida privada dos cidadãos se revela na existência de fato concreto. Ausência da causa provável justificadora das quebras de sigilo. Segurança Concedida."

A falta de fundamentação é suficiente para invalidar as quebras dos sigilos bancário e fiscal, consoante remansosa jurisprudência do STF: "Privacidade. Sigilo de Dados. Regra e Exceção. A regra, constante do rol constitucional de garantias do cidadão, é a manutenção de privacidade, cujo afastamento corre à conta da exceção. Decisão Judicial. Fundamentação. Sigilo de Dados. Afastamento. O princípio da vinculação resulta na necessidade imperiosa de os pronunciamentos judiciais serem fundamentados. Implicando o afastamento de garantia constitucional - intangibilidade de dados relativos à pessoa -, indispensável é a análise dos parâmetros do caso concreto, fundamentando o Estado-Juiz a decisão." [70] "Mandado de Segurança. Comissão Parlamentar de Inquérito. Quebra de Sigilo Bancário e Fiscal. Falta de fundamentação. Legitimidade Ativa ad causam da ABAF. Desnecessidade de Procuração dos associados se há autorização expressa para representá-los. Precedentes. 1. As entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar judicial ou extrajudicialmente seus associados, sem necessidade de instrumento de mandato (CF, artigo 5º, XXI). 2. Os poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias de que as CPIs são constitucionalmente investidas (CF, artigo 58, § 3º) não são absolutos. Imprescindível a fundamentação dos atos que ordenam a quebra dos sigilos bancários, fiscais e telefônicos, visto que, assim como os atos judiciais são nulos se não fundamentados, assim também os das comissões parlamentares de inquérito. Precedentes. 3. A legitimidade da medida excepcional deve apoiar-se em fato concreto e causa provável, e não em meras conjecturas e generalidades insuficientes para ensejar a ruptura da intimidade das pessoas (CF, artigo 5º, X). Segurança concedida." [71]

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Como muito bem dito por Anna Maria Goffi Flaquer Scartezzini, [72] os poderes previstos no texto da Lei Complementar nº 105/01, "devem ser cautelosamente utilizados pela Administração, sob pena de ofensa injustificada ao contribuinte, a pretexto de instrução de processo administrativo. Como se trata de atividade sujeita ao exame da conveniência do exame e da oportunidade desse procedimento junto às instituições financeiras, a atividade do Poder Judiciário se revela preponderante na fixação de limites para que se evite o abuso de direito ou de poder."

Até mesmo as Comissões Parlamentares de Inquérito, que possuem prerrogativas amplas e excepcionais, ("poderes de investigação próprios das autoridades judiciais", CF, art. 58, § 3º) para decretarem legitimamente a quebra dos sigilos de dados de pessoas ou empresas investigadas, devem demonstrar, a partir de fortes indícios ou provas, a existência concreta de causa provável que legitime a medida sugerida, justificando a necessidade de sua ultimação no respectivo procedimento de ampla investigação dos fatos, sob pena de cometer abuso de poder.

Aliás, este posicionamento também está consagrado pelo STF através de firmes julgados: STF. Rel. Min. Octávio Galloti, MS nº 23.619/DF, Pleno, DJ de 7 dez. 2000. p.7; STF. Rel. Min. Maurício Corrêa, MS nº 23.882/PR, DJ de 1 fev. 2002. p. 85; STF. Rel. Min. Celso de Mello, Ms nº 23.868/DF, Pleno, DJ de 21 jun. 2002. p. 98; STF. Rel. Min. Maurício Corrêa, MS nº 24.029/DF, Pleno, DJ de 22 mar. 2002. p. 32; STF. Rel. Min. Celso de Mello, MS nº 23.964/DF, Pleno, DJ de 21 jun. 2002. p. 98.

Até mesmo na hipótese de execução da Fazenda Nacional, sem que se tenha esgotado todas as tentativas de obtenção dos dados do devedor pela via extrajudicial, não é cabível a quebra de sigilo fiscal ou bancário do executado; [73] pois a proteção dos respectivos sigilos vigora como norma fundamental para toda a sociedade.

Desta forma, meras ilações e conjecturas não são suficientes para dar azo a quebra do sigilo de dados do agente público, quando necessária para investigação de ocorrência de qualquer ilícito, se dissociada de uma causa justa e coerente, através de uma fundamentação séria e robusta, visto que esta providência é uma excepcionalidade a regra, só cabível em casos de extrema relevância, onde a verossimilhança dos motivos embasadores do pleito se façam presentes.

Em assim sendo concluímos que o puro e simples pedido requerendo a quebra dos sigilos bancário e fiscal do agente público, sob argumento de que são necessários para a verificação de um possível enriquecimento ilícito presumido, deverá vir precedido do nexo de causalidade, consistente do exercício da função pública de maneira grave e ou ilícita pois, do contrário, prevalece a manutenção do direito fundamental do sigilo de dados do investigado.

Este é o justo e igualitário ditame da Constituição para preservar a segurança jurídica de todos, objetivando que não haja perseguições de cunho político ou social por parte de quem detém o poder investigatório e sancionador.

Transformar a investigação administrativa em um conjunto de arbitrariedades, com violações de preceitos constitucionais e infraconstitucionais, objetivando denegrir a imagem do homem público investigado é nocivo à sociedade e fere a dignidade e a moral do servidor público, merecendo severa reprimenda e repúdio por parte de todos, principalmente dos operadores do Direito, tendo em conta que os valores de segurança jurídica e de respeito aos direitos fundamentais são supremos e devem imperar num país cujo fundamento é o Estado Democrático de Direito.

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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Ilegalidade de presumir-se depósitos bancários como enriquecimento ilícito do agente público para fins de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1031, 28 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8224. Acesso em: 24 abr. 2024.

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