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Evolução histórica da inimputabilidade penal:

uma abordagem cronológica da loucura na humanidade e seus reflexos na legislação criminal brasileira até o Código de Piragibe

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Nem sempre as pessoas consideradas hoje como portadoras de problemas mentais foram interpretadas como enfermas - vítimas de uma doença. Esta visão da loucura como fato médico é relativamente recente na cultura ocidental.

Sumário: 1 – Evolução da loucura na história, 1.1. Pré-história, 1.2. Antiguidade, 1.3. Idade média, 1.4. Idade moderna, 1.5. Idade contemporânea, 1.6. Quadro comparativo; 2 – Evolução da loucura na legislação criminal brasileira, 2.1. O aborígine, 2.2. Características gerais das ordenações, 2.2.1. Conceito, 2.2.2. Origem, 2.2.3. Estrutura, 2.2.4. Matéria criminal e tipos de penas, 2.3. Ordenações Afonsinas (1446-1521), 2.4. Ordenações Manuelinas (1521-1569), 2.5. Código de Dom Sebastião (1569-1603), 2.6. Ordenações Filipinas (1603-1830), 2.7. Código do Império (1830-1890), 2.8. Código Republicano (1890-1932), 2.9. Consolidação das Leis Penais ou Código de Piragibe (1932-1940); Referências bibliográficas.


1. EVOLUÇÃO DA LOUCURA NA HISTÓRIA

            A loucura surge com o homem e o acompanha durante toda a história da sua evolução: é como se esta qualidade de indivíduo fizesse parte da estrutura de qualquer grupo, sociedade ou civilização, seja ela politicamente organizada ou não.

            Nem sempre essas pessoas consideradas hoje como portadoras de problemas mentais foram interpretadas como enfermas - vítimas de uma doença. Esta visão da loucura como fato médico é relativamente recente na cultura ocidental. Tivemos ao longo dos tempos inúmeros outros conceitos para este tipo de mau: trazendo conteúdos religiosos ou morais, poéticos e científicos. Tal evolução é fruto de um longo processo de organização social, gerando diferentes formas de observação e interpretação de seus comportamentos, aliada ao surgimento da ciência teórica no Ocidente pelos filósofos gregos no séc. VI a.C.

            1.1. Pré-História

            Como a história se baseia em documentos escritos, este período que corresponde à primeira etapa da evolução humana, tendo seu início com o surgimento dos primeiros hominídeos, estendendo-se até o aparecimento dos primeiros registros escritos, por volta de 4000 a.C. [01], pode ser estudado hoje graças as pinturas e pequenas esculturas que foram deixados para nós como herança, devido ao modo sensível como observavam a natureza, já que dependiam da caça e da coleta de frutos para sobreviver.

            Para a população primitiva, o louco era visto como um indivíduo diferente, com dons sagrados e atitudes divinas, uma criatura digna de todo o respeito e credibilidade. A loucura era atribuída à ação de forças externas ao corpo humano, como interferência temporária dos deuses sobre o pensamento e ação dos homens. Não sofriam, portanto, qualquer tipo de exclusão, participando normalmente do convívio social.

            A origem da loucura é, portanto, teológica, onde os responsáveis pelos atos que praticassem não eram atribuídos aos homens, mas sim as forças exteriores ao corpo físico. Idéia esta que perdurou durante muitos séculos. A cura, todavia, também seria divina, obtida em templos com cerimônias religiosas. Algumas tribos indígenas americanas chegavam a fazer rituais em adoração a estes indivíduos, demonstrando respeito e veneração.

            1.2. Antiguidade

            Na Antiguidade (4000 a.C. a 476 d.C.) as crises de agitação já começam a ser interpretada com outros olhos, ainda ligadas ao sobrenatural, porém decorrentes de possessões demoníacas, causando medo nos homens e o ódio aos mentalmente enfermos. Começava a nova visão da sociedade para estes indivíduos.

            Não existiam procedimentos ou espaços sociais especificamente para os loucos. Aqueles que tinham a sorte de ter uma família com recursos ficavam isolados nas suas próprias residências, na presença de uma acompanhante, longe dos olhares curiosos, já aos pobres restavam-lhes as ruas onde circulavam livremente e sobreviviam de caridade da população ou fazendo pequenos serviços a particulares, sendo freqüentemente alvos de chacota e de violência da população. 

            O louco já passa a ser considerado um problema, porém de caráter privado ou particular, não cabendo ao poder público fazer qualquer tipo de intervenção, exceto quando eram envolvidos assuntos como invalidação ou anulação de casamento quando um dos cônjuges enlouquecia ou proteção patrimonial de insanos perdulários.

            Alguns dos grandes filósofos de toda a humanidade fizeram referências em seus textos sobre os loucos: Empédocles (490–430 a.C.) tratou da importância das emoções e assinalou que o amor e o ódio eram fundamentais na determinação de alterações do comportamento humano; Platão (429–347 a.C.) propôs que a biografia psicológica do indivíduo fosse escrita a partir dos seus primeiros anos de vida, com base em seu relacionamento com os membros da família e com os educadores, para explicar seu comportamento mais tarde como adulto. Descreveu também dois tipos de demência: causada por deterioração progressiva e irreversível das funções mentais intelectuais, em que a alma apetitiva (instintos) perde o domínio da alma racional; provocada e ou inspirada pelos deuses. Aristóteles (384–322 a.C.) descreveu os afetos: desejo, raiva, medo, coragem, inveja, alegria, ódio e pena.

            No Direito Romano, sua preocupação maior foi adentrar na capacidade civil em relação aos loucos. Mesmo sendo o berço do Direito Privado, encontramos alguns resquícios da norma penal em suas escritas. De acordo com os seus textos históricos, passou a existir uma classificação dos vários tipos de comportamentos dos enlouquecidos: o furiosus, a loucura enraivecida, agitada, com intervalos lúcidos, a dementia ou demens, loucura plena, desequilíbrio total, sem intervalos lúcidos, monomaníaco, a mente captuse e mentis alienatione, alienação da mente, e imbecilitas, louco incapaz de gerir seus próprios bens.

            Em Roma a guarda dos alienados também era entregue aos parentes mais próximos, a diferença vem quanto ao tratamento daqueles que não tinham família. O Poder Público chama para si, pela primeira vez na história, a responsabilidade de tratar destes insanos, mesmo que de forma grosseira: "Furiosis si non possint per necessarios contineri, eo remedio per praesidem obviam eundum est: scilicet ut carcere contineantur" [02].

            Bastante evoluída para a época, também foi à idéia dos romanos de que a punição dos loucos não seria cabível, pois a sua doença, considerado como um castigo dos deuses devido à falta cometida anteriormente ou por livre arbítrio destes, já seria a própria pena. Vejamos as duas correntes que explicavam e defendiam a irresponsabilidade dos loucos por seus atos: para Modestino, o louco era digno de compaixão; para Gaio, faltavam aos loucos a compreensão da realidade.

            Foi, contudo, na Grécia Antiga, que teve início às observações terapêuticas. Hipócrates (460–380 a.C.), médico e professor, considerado por muitos como o pai da medicina, de forma muito rudimentar apresentou pioneiramente uma interpretação de cunho científico para a origem das alienações mentais, resultando na elaboração de uma classificação destes, onde descrevia algumas espécies de forma singular, como a epilepsia, considerada o mal do sagrado.

            Com a chegada do Cristianismo, no final da Antiguidade, criou-se um maior grau de respeito ao louco, passando a ser visto como uma figura "pobre de espírito".

            1.3. Idade Média

            Durante algum tempo na Idade Média (476 a 1453), ainda sob a influência das palavras deixadas por Jesus, a loucura passou a ser tratada com mais tolerância e aceita com maior naturalidade, "como um fato cotidiano, normal, sans peur et sans reproche. O louco participava dos acontecimentos sociais. Durante grande parte da ‘idade das sombras’ a loucura passou despercebida. Era o tempo da loucura livre" afirma Maximiliano Führer [03].

            Porém, a Igreja, baseada em interpretações errôneas das passagens do Novo Testamento, além de fazer com que houvesse um declínio desta mentalidade, retrocedendo para a antiga idéia do misticismo, onde tudo que não poderia ser explicado continha sementes diabólicas e malignas, ainda perseguia aqueles estudiosos que iam de encontro com as idéias divinas, ocasionando um avanço quase que insignificante nesta época, pois muito pouco pode ser feito especificamente pelos doentes mentais. A Igreja também proibiu a entrada de loucos em seus templos, os que não obedeciam eram arrastados pelos padres e seus assistentes para fora da casa do Senhor.

            Estes auto intitulados representantes da divindade na terra, afirmavam que os loucos encontrariam a salvação na própria exclusão, no abandono social, onde sua comunhão estaria numa espécie de reintegração espiritual, no esperar de uma mão que nunca iria se estender. Atitudes estas eram refletidas nas pessoas que acreditavam no desprezo e rejeição destes "irmãos", para a contribuição de um encontro mais rápido com os sãos. "Meu companheiro, diz o ritual da Igreja de Viena, apraz ao Senhor que estejas infestado por essa doença, e te faz o senhor uma grande graça quando te quer punir pelos males que fizestes neste mundo. Por isso, tem paciência com tua doença, pois o Senhor não te despreza por tua doença, e não se separa de tua companhia; mas se tiveres paciência serás salvo, como o foi o lazarento que morreu diante da casa do novo-rico e foi levado diretamente ao paraíso" [04].

            Os delinqüentes endemoniados eram submetidos a tormentos de horríveis suplícios. Alguns eram insultados, perseguidos, apedrejados e chicoteados publicamente, além de serem alvos de maus-tratos com varas de madeira, para outros a expulsão de suas cidades era o castigo, deixando que corressem livremente pelos campos, ou eram-lhes entregues a grupos de mercadores e peregrinos.

            Os loucos foram inicialmente recebidos em hospitais, porém com os anos teve-se início a construção de casas especiais na maior parte das cidades da Europa (Châtelet de Melun, Torre dos Loucos de Caen, Narrturmer da Alemanha, Lubeck ou o Jungpfer de Hamburgo). Fruto da inquietude européia surgiu também a "Nau dos Loucos", barcos construídos para armazenar e transportar todas as cargas insanas, sendo levados de uma cidade para a outra, uma forma simples e fácil de resolver os problemas com seus desequilibrados sociais. Tais viagens tinham um caráter simbólico, tornando-se umas das formas de exílio da época. Segundo relata Michel Foucault em sua clássica obra "História da Loucura" [05], os barcos, em regra, eram para estrangeiros, ficando cada cidade encarregado dos seus cidadãos: "(...) confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca. (...) A água e a navegação têm realmente este papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada". [06]

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            Com o desaparecimento da lepra do mundo ocidental nos fins da Idade Média e a não exclusão e o isolamento dos portadores de doenças venéreas, pois pertenceram ao quadro das doenças que exigiam tratamento médico, diferentemente da anterior vítimas da marginalização, a loucura herdava além de toda uma estrutura física de 19.000 leprosários distribuídos por toda a Europa, tratamento dispensado para estes dois males que andavam em paralelo com os insanos, também os valores e imagens ligadas a eles. Lugares estes antes obscuros e sem utilidade, passaram a abrigar loucos, pobres, vagabundos, presidiários e incuráveis de todas as espécies. A loucura seria uma espécie de novo espantalho da sociedade, em sucessão a lepra.

            Em 1409, Valência, o padre Juan Gilabert Jofré fundou o primeiro hospital psiquiátrico da história, com o fim de proteger os doentes mentais dos tratamentos discriminatórios que a sociedade lhes colocavam diariamente.

            1.4. Idade Moderna

            Neste período (1453 a 1789) começam a ocorrer muitas modificações, uma nítida evolução sob a influência dos loucos na vida do cotidiano. Grandes nomes emergem devido ao alto grau de sensibilidade e memoráveis obras, hoje verdadeiros clássicos, conseqüentemente são escritos sob a vida destes insanos, vejamos algumas com breves comentários a respeito que merecem ser lembrado.

            O "Elogio a Loucura" de Erasmo de Rotterdam escrito em 1509, foi uma crítica irônica ao seu tempo, onde a vida e loucura se misturam. Apresentando esta como uma deusa, com vida própria e merecedora de auto louvores, orientava todas as boas ações humanas, como o casamento: já que "nenhuma pessoa seria capaz de se casar por livre e espontânea vontade: quem abriria mão de desfrutar os muitos prazeres da vida para se amarrar para sempre a uma só pessoa em sã consciência? Somente a loucura possibilita que o homem se amarre a uma mulher e que através dela se estabilize"; a infância, "pois a causa das crianças serem tão felizes e verdadeiras, despreocupadas com o que falam seria a ausência total de sabedoria"; a velhice, "pois um homem que entra na velhice e continua sábio provavelmente se enforcará na primeira árvore", seriam responsáveis também pela formação das cidades, governos, religião e justiça.

            A primeira das "Meditações" de René Descartes: "E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus, senão talvez me comparando a certos insanos cujo cérebro está de tal forma perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile, que se convencem constantemente de que são reis quando, ao contrário, são muito pobres; de que estão vestidos de ouro e púrpura, quando estão nus, ou que imaginam serem jarras, ou terem um copo de vidro? Mas qual! estes são loucos, e eu não seria menos extravagante se me orientasse por seus exemplos".

            Somente no século XVI ocorre o encontro da medicina com a loucura, pois até então tal elo não existia, e só no século seguinte é que começa o processo de exclusão do indivíduo louco das ruas e do contexto social. A partir deste momento o fato do indivíduo ser louco começa a ser visto como uma doença, passando a ser denominado de doente mental, porém, ainda, de forma muito superficial. Poderíamos então nos perguntar: como se poderia afirmar que uma pessoa era louca antes deste encontro? Tal definição era baseada somente em observações de comportamentos exteriores, sendo a família a principal encarregada de analisar tais mudanças de comportamento.

            Inúmeros estabelecimentos de correção e de trabalho são criados para armazená-los. O problema é que tais casas, como Hospitais Gerais ou Santas Casas não os abrigavam somente, mas também a criminosos, mendigos, vagabundos, prostitutas e demais anti-sociais, com a função de punir a ociosidade e reeducá-los para a moralidade. No entanto a realidade era outra bem diferente: maus tratos, torturas e violência era o que existia nestes locais. A real função de hospital não existia, funcionavam sim como verdadeiros depósitos humanos, retirando da visão social aqueles indivíduos que não se adequassem às normas ditadas como normais e corretas à época.

            1.5. Idade Contemporânea

            A Revolução Francesa (1789 a 1799) aparece neste momento histórico (1789 até nossos dias) como o divisor de águas, pois podemos afirmar que foi no início do séc. XIX o princípio da interpretação da doença como ciência, uma verdadeira revolução científica, trazendo aos insanos um tratamento adequado e saudável, e porque não dizer, humano, movimento este denominado de "Reforma Humanitária do Tratamento dos Insanos".

            Philippe Pinel (1745-1826), sintonizado com os ideais revolucionários franceses de liberdade, igualdade e fraternidade, publica em 1801 o "Tratado médico-filosófico sobre a alienação ou mania", [07] focalizado na psicose maníaca, doença mental mais freqüente a época. Seu trabalho, hoje um clássico, descreveu também uma nova especialidade médica, que viria a ser chamada psiquiatria em 1847, preconizando o tratamento moral para os alienados. Ao ser nomeado para o cargo de médico-chefe do Asilo de Bicêtre, destinado somente a doentes mentais masculinos, e posteriormente para o mesmo cargo no Hospício La Salpêtrière, exclusivo de mulheres, ambos na capital francesa, onde os loucos e criminosos ainda eram reunidos sem qualquer distinção, determinou a abolição das tão usadas correntes, [08] tratando-os como doentes comuns e, somente em casos de crises de agitação e violência aplicar-se-ia a camisa-de-força. Acabou também com a sangria, purgações e vesicatórios (abertura de veias). [09]

            O médico e professor francês foi um dos pioneiros no tratamento de doentes mentais, contemplado como o fundador da psiquiatria e pai da revolução psiquiátrica. Acreditava que a maneira com que os pacientes eram tratados se tornava um fator adicional na produção da insânia, daí sua frase: "O manicômio deve diferir o mínimo possível de uma casa particular". Esta foi sua postura ao dirigir durante muitos anos a Clínica de Munique, Alemanha, onde se buscou oferecer ao doente um ambiente semelhante ao doméstico. Considerou corretamente a doença mental como resultado de tensões sociais e psicológicas excessivas, de causa hereditária, ou ainda originárias de acidentes físicos, desprezando a crendice entre as pessoas e mesmo entre os médicos de que fossem resultados de possessão demoníaca, falha de caráter ou castigo de Deus. Pinel foi o primeiro a distingui os vários tipos de psicose e a descrever as alucinações, o absentismo, dentre outros.

            Reformador de asilos e hospitais franceses, o psicólogo Jean-Étienne Dominique Esquirol (1772-1840), precursor da psiquiatria científica iniciada por Pinel, funda o primeiro curso para o tratamento das enfermidades mentais e luta pela aprovação da primeira lei de Alienados na França. Trabalho este resultou na Lei de 30 de junho de 1938, determinando, entre outros, a construção de estabelecimentos públicos para os insanos, chamados de asilos, pois o termo "hospital" tinha má fama na época. No mesmo ano escreveu a obra "Des maladies mentales considerées sous les rapponts medical, hygienique et medico-legal", onde definiu uma série de fenômenos psicopatológicos empregados até os dias de hoje, tais como a idiotia, demência e alucinações, diferenciando também a mania (delírio geral ou loucura propriamente dita) das monomanias (loucura parcial).

            Seu trabalho serviu de modelo para muitos países, inclusive o Brasil, influenciando de sobremaneira a criação do Hospício de Pedro II, primeira instituição brasileira de assistência aos doentes mentais. [10] Inaugurado em 8 de dezembro de 1852, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, em uma chácara afastada do centro da cidade, com a presença do Imperador, o Hospício de Dom Pedro II foi construído com dinheiro de subscrições públicas. O edifício em estilo neoclássico, provido de espaços amplos e suntuosos e decoração de luxo, ficou popularmente conhecido como "Palácio dos Loucos". A disciplina, o rigor moral, os passeios supervisionados, a separação por classes sociais [11] e diagnósticos e a constante vigilância do enfermo, materializada arquitetonicamente como um panóptico, representam o nascedouro da psiquiatria no Brasil. [12]

            O livro "Psychiatrie" de 1883, do psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1855-1926), serviu de referência a muitas gerações de especialistas em doenças mentais. O autor isolou as formas básicas da enfermidade psíquica: psicose maníaco-depressiva e demência precoce; promoveu a separação entre demência senil e paralisia geral, além de descrever um tipo de depressão logo após a menopausa, e nos homens depois da idade tardia, vindo a ser conhecida como melancolia. Fundou a psicopatologia, tornando-se base científica do alienismo.

            O austríaco Sigmund Freud [13] (1856-1939) cria a psicanálise como método de tratamento das neuroses de leve ou média gravidade, e faz com que o ato de ouvir não possa jamais se afastar da prática cotidiana em saúde mental. Neuropsiquiatra, professor e cientista por natureza, fica conhecido como "arqueólogo da psique", devido ao seu afã de penetrar nos espaços mais ocultos do ser, um método de investigação psicológica através da procura das tendências ou influências reprimidas no inconsciente do indivíduo e do seu retorno ao consciente pelo processo da analise. Suas idéias popularizam-se em todo o mundo e se impõem como marco no campo da saúde mental.

            Um dos psiquiatras mais discutidos no mundo em razão de seus trabalhos e reflexões desenvolvidos

            Franco Basaglia (1924-1980), psiquiatra italiano, ao assumir a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia em 1961 no norte da Itália, percebeu que a simples humanização dos internos não seria suficiente, era necessário profundas transformações tanto no modelo de assistência psiquiátrica quanto nas relações entre a sociedade e a loucura.

            Acaba com as medidas institucionais de repressão, cria condições para reuniões entre médicos e pacientes e devolve ao doente mental a dignidade de cidadão. O conceito de Reforma Psiquiátrica sofre uma radical transformação: ao invés de reforma do hospital psiquiátrico - um espaço de reclusão e não de cuidado e terapêutica - postula-se a sua própria negação. Uma sociedade sem manicômios, capaz de abrigar os loucos, os portadores de sofrimento mental, os diferentes, os divergentes, uma sociedade de inclusão e solidariedade. Seu livro "A instituição negada", uma obra-prima da psiquiatria contemporânea,

            Neste período histórico surgiram muitas autoridades brasileiras sobre o assunto. Entre médicos, psicólogos e docentes, em cargos políticos ou assumindo diretorias de hospícios, estes profissionais contribuíram para a mudança e evolução do tratamento dos alienados mentais em nosso território, ajudando a escrever a história da loucura local: Teixeira Brandão (1854-1921), Juliano Moreira (1873-1933), Ulysses Pernambucano (1892-1943), Nise da Silveira (1905-1991), Luiz Cerqueira (1911-1984), Wilson Simplício (1924-2001), Oswaldo Santos (1933-2000).

            1.6. Quadro Comparativo

            Período Histórico

            Atribuições à Loucura

            Pré-História

            Sobrenatural (dons santos)

            Antiguidade

            Pré-Cristianismo: Sobrenatural (detenções diabólicas)

            Pós-Cristianismo: Pobre de espírito

            Idade Média

            1º Momento: Fato do cotidiano

            2º Momento: Sobrenatural (detenções diabólicas)

            Idade Moderna

            Doença da mente

            Idade Contemporânea

            Doença da mente (ciência)

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Sobre o autor
Marco Antonio Praxedes de Moraes Filho

especialista em Processo Penal e Direito e Processo Administrativo pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), sócio-fundador do Instituto Cearense de Direito Administrativo (ICDA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES FILHO, Marco Antonio Praxedes. Evolução histórica da inimputabilidade penal:: uma abordagem cronológica da loucura na humanidade e seus reflexos na legislação criminal brasileira até o Código de Piragibe. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1017, 14 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8234. Acesso em: 19 abr. 2024.

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