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Evolução histórica da inimputabilidade penal.

Uma abordagem cronológica da loucura na humanidade e seus reflexos na legislação criminal brasileira até o Código de Piragibe

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2. EVOLUÇÃO DA LOUCURA NA LEGISLAÇÃO CRIMINAL BRASILEIRA

A lei, como norma geral e abstrata imposta pelo Estado e servindo de exteriorização do comportamento social de época, vem cumprindo seu papel ao longo da história da humanidade: acompanhar a evolução da loucura, regulamentando-a. Optamos neste tópico, por fazer menção especificamente ao desenvolvimento gradativo da legislação brasileira penal e processual penal que dizem respeito ao doente mental, já com alguns resquícios do tema da inimputabilidade, sem, contudo, adentrarmos no assunto propriamente dito onde trataremos mais amiúde no capítulo II deste trabalho.

2.1. O Aborígine

Antes da chegada dos desbravadores europeus e a conseqüente extensão da aplicação de suas lei em solo brasileiro, já existia em nosso País o direito penal indígena. Entretanto, não podemos fornecer um preciso conteúdo deste sistema punitivo, muito menos apresentar um rol taxativo com os tipos penais praticados à época do século XVI pelos povos que habitavam o nosso território, em virtude de vários fatores: muitos eram os grupos que aqui existiam, cada qual com diferentes mentalidades e hábitos de vida, gerando uma falta de homogeneidade entre eles; a influência que recebiam de outros aborígines; a frágil organização social; a ausência de documentos escritos narrando suas idéias e costumes; a variedade desarmonizada de textos escritos pelos cronistas. Tamanha é a dificuldade, que na obra "O Direito Penal Indígena", o ilustre professor João Bernardino Gonzaga para dar uma direção em seus trabalhos foi necessário concentrá-lo em uma única tribo: "Tomaremos como base dêste estudo os tupis, que constituíam o grupo dominante e porque principalmente a êles se referem as observações legadas pelos cronistas" 14.

Fundado em costumes, tradições, convencionalismos, tabus, todas oralmente conservadas e em geral de natureza mística, a prática repressiva nativa em nada influenciou as legislações que aqui vigorariam mais tarde. Os nossos indígenas interpretavam o crime de forma automática, imediata e objetiva, gerando uma condenação independentemente das qualidades e intenções do agente. "A ausência de intenção, por parte daquele que se torna culpado de uma infração, constitui mais pròpriamente circunstância agravante do que escusa. Nada sobrevém por acaso. Logo, como se pode ter dado que tal homem haja sido assim conduzido a praticar sua falta sem querê-la e sem o saber? Seguramente êle já será vítima de um poder oculto, ou objeto de certa cólera que se deve apaziguar, salvo – hipótese ainda mais grave – se esconde em si próprio, à sua revelia, algum princípio malfazejo. Em lugar pois de se sentir tranqüilizado pelo fato de que êle não podia conhecer sua falta no momento em que a cometeu, e que esta em conseqüência, era inevitável, sua inquietação redobra. Torna-se indispensável, agora, procurar (em geral pela adivinhação) o motivo pelo qual êle foi colocado em situação tão perigosa" 15.

Assim, os loucos, como também as mulheres 16 e as crianças 17, não tinham qualquer tipo de tratamento diferenciado em relação aos demais membros da comunidade indígena, sendo condenados pelos atos insanos que vinham a cometer. Encaravam o estado de perturbação como um momento de manipulação por forças malignas, onde seu corpo estaria dominado por um espírito e sendo usado como mero instrumento para a execução do ato, encontrando-se somente no mundo invisível a sua verdadeira e real causa, portanto, uma condição secundária do crime. As anomalias mentais além de não trazer qualquer efeito em benefício do gentio, era usado em seu desfavor, confirmando as suspeitas a cerca da presença das forças do mal.

Eram punidos os homicídios, a deserção, o adultério, a perfídia, o roubo, este somente entre tribos ou tabas diferentes, pois já que no mesmo agrupamento tudo era de todos, neste caso o dano ou delito deixa de ser pessoal e se converte numa espécie de crime de Estado. As penas mais severas - de caráter corporal, provações até a morte ou entrega do criminoso para a própria vítima ou parentes seus - eram aplicadas proporcionalmente nos casos de delitos com maior gravidade, por um juiz ou uma espécie de assembléia, constituída em tribunal.

2.2. Características Gerais das Ordenações

É de fundamental importância o exame das Ordenações do Reino, pois sendo estas as primeiras leis que vigeram em solo brasileiro, marca-se o início científico da evolução na história da matéria criminal no Brasil. Procuramos fazer uma pequena introdução buscando entendê-las primeiro no contexto geral antes de adentrarmos amiúde na análise de cada uma delas.

2.2.1. Conceito

As ordenações nada mais são do que uma compilação de leis, elaboradas a partir da necessidade de suprir contradições e lacunas oriundas do grande número de leis, ordens, alvarás, dentre outros da época.

2.2.2. Origem

O direito lusitano teve como espelho o Decreto de Graciano, como é tradicionalmente conhecido. Escrito entre os anos de 1141 e 1150, a este monge do mosteiro de São Félix, na cidade de Bolonha, Itália, deu-se à autoria da primeira reunião didaticamente organizada das coleções canônicas, incorporando ao direito eclesiástico a metodologia do direito romano. Mesmo sendo a obra fruto de sua organização usada com freqüência nas universidades, transformando-se inclusive numa referência para o estudo do Direito Canônico, não se tornou uma compilação legislativa. Vindo esta a ser criada somente em 1234, a mando de Gregório IX, baseada na obra de Graciano e em outras coleções posteriores, chamando-se de Decretais de Gregório IX, ou Decretais. Tendo as ordenações, portanto, como fontes principais o direito romano e o direito canônico, usando largamente sua fundamentação nos preceitos religiosos, onde o crime era confundido com o pecado e com a ofensa moral (direito, religião e moral).

2.2.3. Estrutura

Todas as três ordenações (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), vigentes durante todo o período Colonial até 1822, conservavam essencialmente a mesma estrutura, organizadas da seguinte forma: cinco livros (como se fossem os códigos de hoje), estes livros tinham uma certa quantidade de títulos, onde cada um tratava sempre sobre determinado assunto específico (equiparados aos capítulos da atualidade) e cada título tinha vários parágrafos que eram numerados, ordenando o texto (igual aos artigos e parágrafos).

2.2.4. Matéria Criminal e Tipos de Penas

A matéria criminal, em todas elas, era tratada sempre no tenebroso Livro Quinto, que admitiam penas severas e cruéis, desproporcionais à falta praticada e sem serem fixadas antecipadamente, ficando ao livre arbítrio do juiz, tais como os tormentos, as mutilações, os degredos, as torturas, os açoites, as marcas de fogo, as capelas de chifres, as infâmias, os confiscos, as multas, dentre outras práticas desumanas.

A pena de morte não só era permitida como também usada em larga escala, para ser mais exato. Decretada por sentença, preferencialmente se designada através da forca (morte natural), possuindo esta algumas espécies de modalidades: antecedida de torturas (morte natural cruelmente); o corpo do condenado ficava suspenso na forca e putrefazendo-se, até cair podre ao solo do patíbulo com o decorrer do tempo, lá ficando enquanto não era recolhida pela Confraria da Misericórdia, que o fazia somente uma vez por ano, no primeiro dia do mês de novembro (morte para sempre). Existia também a pena capital onde o réu era queimado vivo, até o corpo se reduzir a pó (morte pelo fogo); o condenado depois de morto, era açoitado, queimado ou esquartejado (morte atroz).

As penas eram reguladas de acordo com a classe social do criminoso, caracterizando uma nítida "desigualdade de classes perante o crime, devendo o juiz aplicar a pena segundo a graveza do caso e a qualidade da pessoa: os nobres, em regra, eram punidos com multa; e aos peões ficavam reservados os castigos mais pesados e humilhantes".

2.3. Ordenações Afonsinas (1446-1521) 18

No período do descobrimento da Ilha de Santa Cruz, posteriormente chamada de Terra de Santa Cruz e, finalmente, Brasil, por Pedro Álvares Cabral 19 em 22 de abril de 1500, estava vigorando em Portugal (ou melhor, dizendo, no Império Lusitano), as Ordenações Afonsinas de 1446, contendo 121 títulos. Promulgadas por Dom Afonso V, sua elaboração teve como encarregados iniciais da codificação os chanceleres João das Regras, João Mendes Cavaleiro e Rui Fernandes, ainda no início do século XV, a mando do Rei da Boa Memória. Sendo a primeira compilação oficial portuguesa e o primeiro código da Europa.

2.4. Ordenações Manuelinas (1521-1569) 20

Em 1505 iniciou-se a reforma das Ordenações Afonsinas por ordem de Dom Manuel, então ocupante do trono português, e somente em 1521 foram então estas substituídas pelas Ordenações Manuelinas, elaborada e editada pelo rei lusitano, com 113 títulos e a inclusão de todas as leis extravagantes publicadas e não codificadas desde as ordenações passada.

As duas ordenações, no entanto, não chegaram a ser aplicada na Terra de Santa Cruz, sendo de uso exclusivo dos portugueses, até porque a colonização só começou a se fazer efetivamente a partir de 1532 com Martim Afonso de Souza. Até este momento, portanto, não havia qualquer tipo de norma escrita regulando os comportamentos da terra recém descoberta. "Regiam então, já havia uma década, as Manuelinas, razão pela qual constitui um equívoco a recorrente afirmação de que as Ordenações Afonsinas foram as primeiras leis vigentes no Brasil colonial. A predominância de um poder punitivo doméstico, exercido desregulamentadamente por senhores contra seus escravos, é facilmente demonstrável, e constituirá remarcável vinheta nas práticas penais, que sobreviverá à própria abolição da escravatura" 21.

As Ordenações de Dom Manuel foram o primeiro código do mundo a ser publicado pela imprensa.

2.5. Código de Dom Sebastião (1569-1603)

Com o passar dos anos, inúmeros diplomas legais avulsos foram publicados. Então, em 1569, Dom Sebastião - o Desejado, então Rei de Portugal 22, pediu a Duarte Nunes de Leão, que fossem todas elas reunidas em uma espécie de coletânea, facilitando desta forma o manuseio e a sua aplicação. Tal trabalho deu origem em 14 de fevereiro do mesmo ano uma Coleção de Leis Extravagantes.

Neste ponto ocorre uma importante divergência na doutrina. Para alguns estudiosos, a nova coleção juntou-se as Ordenações Manuelinas, existindo apenas uma agregação, não havendo, portanto, revogação. Já para a maioria, como E. Magalhães Noronha, o Código de Dom Sebastião teria sim revogado as Ordenações de Dom Manuel. A segunda hipótese nos parece mais convincente.

2.6. Ordenações Filipinas (1603-1830)

Durante a União Ibérica 23, o Rei da Espanha e Portugal, Felipe I, através do ato de 5 de junho de 1595, mandou que fossem compiladas novas ordenações com raízes espanholas. Somente em 11 de janeiro de 1603, as Ordenações Filipinas, promulgadas pelo sucessor do rei, seu filho Dom Felipe II - o Pio, com 143 títulos, vieram revogar as Ordenações Manuelinas, passando a viger em todo o reino português, inclusive no Brasil Colônia até 1830, com o advento do Código Criminal e posteriormente em 1832 com o Código de Processo Criminal do Império, sendo, portanto, o nosso primeiro Código Penal e Processual Penal e também o ordenamento jurídico criminal que mais tempo vigorou no Brasil, mais de dois séculos.

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Esta ordenação acolhia os delitos previstos nas Ordenações Manuelinas e contemplaram vários outros. O louco não estava incluído de maneira especifica na compilação de Felipe II, porém estava aquele indivíduo com desenvolvimento mental incompleto (menoridade), onde a parte final do título CXXXV nos apresenta que o menor de dezessete anos não seria punido com a pena capital (morte natural), ficando ao julgador a incumbência de substituí-la por outra sanção:

"Quando os menores serão punidos por os delictos, que fizerem - Quando algum homem, ou mulher, que passar de vinte annos, commetter qualquer delicto, dar-se-lhe-ha a pena total, que lhe seria dada, se de vinte e cinco annos passasse. E se fôr de idade de dezasete annos até vinte, ficará em arbítrio dos Julgadores dar-lhe a pena total, ou diminuir-lha. E em este caso olhará o Julgador o modo, com que o delicto foi commettido, e as circumstancias delle, e a pessôa do menor; e se o achar em tanta malicia, que lhe pareça que merece total pena, dar-lhe-ha, postoque seja de morte natural. E parecendo-lhe que a não merece, poder-lha-ha diminuir, segundo a qualidade, ou simpleza, com que achar, que o delicto foi commettido. E quando o delinquente fôr menor de dezasete annos cumpridos, postoque o delicto mereça morte natural, em nenhum caso lhe será dada, mas ficará em arbítrio do Julgador dar-lhe outra menor pena. E não sendo o delicto tal, em que caiba pena de morte natural, se guardará a disposição do Direito Commum".

2.7. Código do Império (1830-1890)

Mesmo proclamada a independência política do Brasil em 7 de setembro de 1822, por Dom Pedro I, o Código Filipino continuou em vigor, devido a uma Assembléia Constituinte, onde pelo art. 1º do decreto de 20 de outubro de 1823, foi revigorada a vigência das leis portuguesas, especialmente para o Livro Quinto das Ordenações Filipinas, "enquanto não se organizassem novos códigos ou não fossem revogados aqueles atos legislativos" em tudo que não contrariasse a soberania nacional e o regime brasileiro. Assim, o país herdava de Portugal as normas contidas nas ordenações.

A Constituição Imperial, outorgada poucos anos depois, em 25 de março de 1824, além de abolir imediatamente todas as penas cruéis pelo dispositivo dos direitos e garantias individuais, expressos no art. 179, XIX, "Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis", exigiu também no art. 179, XVIII, a elaboração de um Código Criminal, "Organizar-se-ha quanto antes um Codigo Civil, e Criminal, fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade". Tendo como elaboradores do projeto os parlamentares Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Clemente Pereira, foi aprovado o Código Criminal do Império de 1830, sancionado pelo então imperador, através do decreto de 16 de dezembro, e o Código de Processo Criminal em 1832. Podemos afirmar, portanto, que juridicamente o Código Criminal de 1830, além de ser o primeiro código autônomo da América Latina e o primeiro código penal nacional, foi fruto de observância de comando da Constituição Imperial de 1824.

O Código Penal do Império, que só veio vigorar a partir de 8 de janeiro de 1831, foi o primeiro ordenamento jurídico a acolher a figura dos loucos, mencionados em basicamente dois de seus artigos. O primeiro trazia no corpo de seus parágrafos a taxação da maioridade penal, tendo estes um julgamento especial, como também a exclusão do crime que viessem a cometer: art. 10, § 1° (fixa em 14 anos a maioridade penal); § 2°: não seriam considerados criminosos "os loucos de todo o gênero, salvo se tiverem lucidos intervallos e nelles commetterem o crime".

Percebemos aqui que a taxação de "criminoso" não existe para estas criaturas especiais, o que há é o tratamento do indivíduo como "doente", sendo necessária a imposição de um tratamento através da medida de segurança. Porém, a lei penal da época de D. Pedro I tinha uma exceção a este respeito. Quando o crime era cometido por loucos em intervalos lúcidos, as autorias criminosas eram-lhes atribuído normalmente, condenados como pessoas consideradas normal.

No segundo dois eram os destinos dos loucos que cometessem fatos tipificados como crimes, de acordo com o seu art. 12: "os loucos que tiverem commettido crimes serão recolhidos ás casas para elles destinadas, ou entregues ás suas famílias, como ao juiz parecer mais conveniente". Aos "recolhidos", isto é, internados em casas específicas, podem-se interpretar como já sendo uma espécie de medida de segurança; ou eram entregues aos seus respectivos familiares. Esta escolha ficava única e exclusivamente a critério da consciência do magistrado, tendo plena e total liberdade para decidir, ditando a verdade jurídica, sem se vincular a nenhum tipo de regra e sem precisar fundamentar sua íntima convicção 24.

2.8. Código Republicano (1890-1932)

Proclamada a República em 15 de novembro de 1889 devido a um golpe militar, Marechal Manuel Deodoro da Fonseca assumiu o comando do país. Um dos primeiros atos tomados pelo chefe do Governo Provisório (1889-1891), foi o banimento da família imperial do país. Em meios a novas aspirações por reforma, Campos Sales, então Ministro da Justiça, conferiu ao conselheiro João Batista Pereira a incumbência da elaboração e organização de uma nova legislação criminal para a recém declarada república. Em poucos meses nascia o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, através do Decreto n.º 847, de 11 de outubro de 1890, com sua vigência para dali a seis meses, após sua publicação, de acordo com o Decreto n.º 1.127, de 6 de dezembro de 1890.

O Código Penal da República manteve o mesmo tratamento de seu antecessor quanto as tratamento dos loucos: a exclusão do ilícito penal, "colocando a saúde mental como pressuposto para a configuração de crime" 25. O art. 27. trazia a seguinte escritura: "Não são considerados criminosos: § 1º (nove anos para a maioridade penal), § 3º Os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, fôrem absolutamente incapazes de imputação; § 4º Os que se acharem em estado de completa privação 26 de sentidos e de intelligencia no acto de commeter o crime; § 7º Os surdo-mudos de nascimento, que não tiverem recebido educação, nem instrucção, salvo provando-se que obraram com discernimento".

Percebemos, no entanto, uma discreta, porém importante evolução quantos aos procedimentos de internação dos incapazes por doença mental. Estes continuavam a ser entregues as suas respectivas famílias para os devidos cuidados, ou recolhidos a hospitais de alienados, só que a decisão do juiz, seja para qualquer um destes, teria que vim acompanhado de uma fundamentação, só sendo devido o internamento quando o indivíduo apresentasse perigo à segurança e a ordem pública. "Art. 29. Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de affecção mental serão entregues ás suas famílias, ou recolhidos a hospitaes de alienados, se o seu estado mental assim exigir para segurança do publico".

Com a Proclamação da República, os estados passaram a ter constituições próprias e poderiam também possuir seus códigos de processo penal próprios (poucos, contudo, o tiveram).

2.9. Consolidação das Leis Penais ou Código de Piragibe (1932-1940)

Inúmeras foram as críticas em relação ao Código Penal de 1830, dentre elas, a rapidez com que foi elaborada e aprovada, gerando lacunas e imperfeições. Tal insatisfação resultou em um aglomerado de leis penais editadas no decorrer dos anos seguidos em complemento ao omisso código, na tentativa de remendá-lo, muitas delas contraditórias, dificultando ainda mais a solução dos litígios jurídicos, sendo causa de um imenso desconforto e incerteza na sua aplicação: "Era embaraçosa a sua consulta, árdua a obrigação de lidar com elas" 27. Podemos afirmar, portanto que esta consolidação teve sua gênese na desorganização das leis penais a época.

Como conseqüência, vários projetos de tentativa de reforma do Código Penal da República vinham sendo elaborados. Tal trabalho não foi paralisado com a Revolução de 1930 e a instauração do Governo Provisório no ano seguinte. De tão elevado que era o número das legislações extravagantes em vigência, o Desembargador Vicente Piragibe elaborou e publicou um livro intitulado "Código Penal Brasileiro, Completado com as Leis Modificadoras em Vigor", contendo quatro livros e quatrocentos e dez artigos, onde reunia todas as leis criminais de seu tempo de forma simples e didática, sendo muito bem recebido por toda a comunidade jurídica. Tamanho foi o sucesso que o então Chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, oficializou o trabalho, após o consentimento do autor, como "Consolidação das Leis Penais" através do Decreto n° 22.213, de 14 de dezembro 1932, passando, de forma precária, a ser o Estatuto Penal Brasileiro.

Piragibe basicamente manteve em sua obra a mentalidade dos códigos passados, onde os loucos não eram considerados criminosos por atos ilícitos que viessem a cometer, senão vejamos: "Art. 27. Não são criminosos: § 1º os menores de 14 annos; § 2º os surdos mudos de nascimento, que não tiverem recebido educação nem instrucção, salvo provando-se que obraram com discernimento; § 3º os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação; § 4º os que se acharem em estado de completa perturbação de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime".

Como mudança, ouve o restabelecimento no § 1º da maioridade penal aos 14 anos. De novidade percebemos dois pontos importantes: foi afastado o intervalo lúcido como exceção do estado de loucura; quanto à internação, os indivíduos seriam agora alojados em pavilhões especiais de asilos públicos, enquanto eram construídos manicômios criminais. Art. 29. Os individuos isentos de culpabilidade em resultado de affecção mental serão entregues a suas famílias, ou recolhidos a hospitaes de alienados, si o seu estado mental assim exigir para a segurança do público. Emquanto não possuirem os Estados manicomios criminaes, os alienados delinquentes e os condemnados alienados sómente poderão permanecer em asylos publicos, nos pavilhões que espacialmente se lhes reservem".

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Sobre o autor
Marco Antonio Praxedes de Moraes Filho

especialista em Processo Penal e Direito e Processo Administrativo pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), sócio-fundador do Instituto Cearense de Direito Administrativo (ICDA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES FILHO, Marco Antonio Praxedes. Evolução histórica da inimputabilidade penal.: Uma abordagem cronológica da loucura na humanidade e seus reflexos na legislação criminal brasileira até o Código de Piragibe. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1017, 14 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8234. Acesso em: 5 nov. 2024.

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