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Descentralização de competências no contexto da pandemia

06/06/2020 às 10:30
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Comentamos o reconhecimento do STF acerca da competência dos estados e municípios em relação à adoção de medidas de polícia sanitária para o combate à pandemia.

Para além das consequências nefastas da pandemia do novo coronavírus, é preciso reconhecer que eventos de grande comoção acabam, geralmente, por despertar a capacidade reflexiva do homem, o qual orienta suas forças em busca de soluções criativas para a superação dos desafios vindouros.

Por exemplo, o Estado federal norte-americano, tal qual conhecemos, foi uma solução criada diante do temor de eventual retaliação inglesa e da própria crise do modelo confederativo, cujo fim precípuo foi o de consolidar a independência e harmonia das antigas colônias britânicas. Apesar de suas bases doutrinárias terem inspiração dos ensinamentos de outros teóricos do Estado, como é o caso de Montesquieu, é inegável que se tratou de um conceito forjado no âmbito de uma severa crise política e de segurança nacional.

Embora as circunstâncias atuais sejam sensivelmente diversas daquelas observadas ao final do século XVIII, é certo que o enfrentamento da recente crise sanitária demandará a reconstrução ou reinterpretação de antigos conceitos e institutos, muitas vezes esgarçados pelo tempo, de forma a moldar o contexto a uma nova realidade.

No âmbito jurídico, observamos um recente movimento do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de fortalecer as competências dos Estados e Municípios no combate à pandemia, reconhecendo a prerrogativa destes entes políticos na adoção de medidas de polícia sanitária, tais como o estabelecimento de quarentena, lockdown e restrição de locomoção, além da edição de normas com o fito de garantir a proteção da saúde da população.

Como é sabido, o artigo 1º da Constituição Federal dispõe ser o Brasil uma República Federativa, “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Trata-se da forma de Estado Federal, organizada sob a base de um modelo de repartição de competências entre os entes da federação, as quais devem ser exercidas nos limites estabelecidos pela Constituição.

Nesse sentido, o Título III da Carta Magna é dedicado, em grande parte, à especificação das competências dos entes e da sua organização político-administrativa, a fim de delimitar seu campo de atuação e garantir a harmonia nas relações interfederativas.

Embora o conceito de federação tenha nascido com a Constituição dos Estados Unidos de 1787, inexiste modelo único de Estado federal, sendo que cada nação que o adotou acabou por ajustá-lo à sua respectiva realidade[i]. Nesse sentido, a estrutura federativa adotada atualmente pelo Estado brasileiro é, em determinados aspectos, sensivelmente diferente daquela concebida na origem pela Constituição norte americana. Um dos exemplos é a elevação dos Municípios à condição de entes federativos.

Mas é no que diz respeito à repartição de competências que as diferenças se evidenciam em relação à estrutura federativa norte-americana.

Isto porque, embora a Constituição Federal de 1988 tenha promovido verdadeira descentralização em favor dos Estados, Distrito Federal e Municípios, é certo que o Brasil ainda se encontra distante dos Estados Unidos, no que tange à extensão do rol de competências conferidas aos entes federativos. Isto é, a União ainda conserva relevante parte das competências materiais e legislativas, em detrimento dos entes regionais e locais.

Como se sabe, grande parte dessas diferenças pode ser creditada ao próprio processo histórico de formação do Estado. Enquanto nos Estados Unidos a federação se originou através da união de entes, até então independentes e soberanos, que renunciaram à parcela de sua soberania em prol da formação da União (federação por agregação ou centrífuga), no Brasil, a criação se deu através da subdivisão do Estado, até então unitário e centralizado, em novos entes (federação por desagregação ou centrípeta). A verdade é que, no caso brasileiro, os entes federativos jamais experimentaram a experiência da soberania, razão pela qual inexistiam competências a serem resguardadas por ocasião da formação do Estado federal.

Como consequência desse processo, observou-se, no modelo de federação por agregação, a preservação de grande parte das competências nas mãos dos entes subnacionais, os quais renunciaram somente àquelas essenciais à formação e manutenção do Estado, ao passo que, na federação por desagregação, parcela relevante das atribuições permaneceram sob a égide do Poder central.

Contudo, conforme as lições de Paulo Gustavo Gonet Branco[ii], uma das razões da adoção da forma de Estado federal consistiu justamente na “necessidade de se ouvirem as bases de um território diferenciado quando da tomada de decisões que afetam o país como um todo”, a fim de reduzir poderes excessivamente centrípetos. O Estado federal é, em outras palavras, um mecanismo fundamentado na limitação do Poder central, motivo pelo qual a completa asfixia das competências dos entes federativos em favor do Poder central dificulta sobremaneira a superação de desafios que, por sua natureza, demandem atuação local ou regional independente, como é o caso da crise sanitária decorrente da pandemia do novo coronavírus.

Isto porque a Organização Mundial da Saúde (OMS), em recente documento publicado como manual de referência aos países para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, deixou claro que as medidas de combate devem ser “suficientemente flexíveis para reagir rapidamente à mudança da situação epidemiológica nas diferentes partes do país, levando em conta os contextos locais e a capacidade de resposta”[iii].

Não por acaso é certo que, até então, as medidas mais efetivas no combate à doença foram aquelas que consideraram as diferenças regionais como critérios essenciais na determinação das medidas necessárias ao enfrentamento da doença[iv].

Mas não é somente sob o prisma técnico-científico que o enfrentamento localizado e flexível da doença encontra fundamento. Isto porque, sendo responsabilidade da Administração Pública a adoção de medidas de polícia sanitária visando a redução do contágio e, em grande medida, também pelo tratamento dos enfermos, mostra-se inafastável a necessidade de considerarmos igualmente as peculiaridades locais de infraestrutura dos serviços públicos como critério para a definição de respostas mais adequadas à doença.

É sabido que no Brasil os entes federativos não possuem a mesma estrutura administrativa de orientação, fiscalização e repressão necessárias à implantação de muitas medidas imprescindíveis ao controle da doença, e tampouco contam com recursos materiais e humanos similares a serem empregados no âmbito da saúde pública.

Como consequência, não é difícil concluir que qualquer solução jurídica que busque total abstração e generalidade, sem considerar importantes diferenças locais e regionais, correrá o sério risco de se mostrar incompleta e ineficaz.

É necessário reconhecer que as ações dos entes públicos devem se adaptar aos desafios da doença, e não o oposto, o que justifica a implementação de uma atuação sob medida e flexível, especialmente por parte dos governos locais.

Em termos práticos, qual o sentido de se adotarem medidas de restrição máxima, como é o caso do lockdown, em localidades que possuem baixo número de infectados e estrutura de saúde adequada? Igualmente desproporcional seria a liberação irrestrita de atividades econômicas em regiões que apresentem elevado número de enfermos ou situação de colapso nos sistemas de saúde.

Nesse ponto, entendemos que o constituinte foi feliz ao prever a competência material comum a todos os entes federativos para “cuidar da saúde e assistência pública” (artigo 23, II), vez que possibilitou a adoção de medidas individualizadas por parte dos entes regionais e locais, sem prejuízo da existência de ações conjuntas que visem o bem-estar da população.

No mesmo sentido, o artigo 198 da Carta da República ainda prevê que os serviços públicos de saúde integram “rede regionalizada” e organizada sob a diretriz da descentralização (inciso I), tendo todos os entes políticos papel relevante na sua condução.

Já sob o prisma da produção legislativa, o artigo 24, XII, da Constituição reconheceu a concorrência de competências entre a União, os Estados e o Distrito Federal no que tange à edição de normas sobre a “proteção e defesa da saúde”, estendida tal atribuição aos Municípios, no que concerne às matérias de interesse local (artigo 30, I). Nesse caso, o papel da União se limita à edição de normas de caráter geral, suplementadas pelos demais entes políticos, de forma a adaptá-las às suas respectivas realidades.

Eventuais conflitos de competência, por sua vez, devem ser resolvidos através do critério da preponderância de interesses, segundo o qual a abrangência do interesse envolvido – nacional, regional ou local – determinará a prevalência de uma ou outra medida.

Em outras palavras, o exercício de eventual competência federal não afastará a atuação dos Estados ou Municípios, sendo o limite da atuação balizado pela amplitude do interesse envolvido (regional ou local, respectivamente).

Isto posto, observamos que a evolução do contágio do novo coronavírus no Brasil vem impondo aos governos municipais e estaduais inéditos e desafiadores obstáculos, por exemplo: como conter o vertiginoso aumento do número de casos da doença diante da escassez de recursos humanos e materiais? Noutro giro, como adequar as medidas de restrição à necessidade de manutenção dos serviços essenciais e aos inexoráveis efeitos negativos na atividade econômica?

Conforme ressaltado, o contexto de evolução da doença e a infraestrutura de serviços públicos, especialmente de saúde, são fatores determinantes na definição das medidas de combate a serem adotadas, demandando uma atuação flexível e personalizada por parte dos entes públicos.

Nesse sentido, inúmeras Prefeituras e Governos Estaduais adotaram, em maior ou menor medida, ações para o combate à proliferação da doença, as quais consistiram, desde o mero distanciamento social, até o lockdown, que implica na restrição quase absoluta à circulação de pessoas ou bloqueio total das atividades, exceto as absolutamente essenciais.

Como reação, o Poder Executivo Federal editou a Medida Provisória 926/2020 a qual, alterando a Lei 13.979/2020, buscou esvaziar parte da competência dos gestores regionais e locais, ao atribuir à União, com exclusividade, a atribuição de definir medidas de polícia sanitárias, tais como a restrição à locomoção interestadual e intermunicipal (art. 3º, VI, ‘b’), além de delegar ao Poder Executivo Federal a competência para, mediante decreto, definir os serviços públicos e atividades essenciais que não seriam objeto de limitação de funcionamento (art. 3º, §§ 8º e 9º), além de outras medidas.

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Ocorre que, o STF, referendando medida cautelar concedida pelo Min. Marco Aurélio na ADI 6341/DF, entendeu que, embora a alteração da supracitada Lei 13.979/2020 promovida pela MP 926/2020 não tenha sido inconstitucional, as providências adotadas pela União no combate ao novo coronavírus não podem diminuir a autonomia dos demais entes políticos.

Mais recentemente, o Min. Luiz Fux, no bojo da SS 5387 MC/CE suspendeu os efeitos de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará a qual, fundamentada no Decreto Federal 10.344/20 que define o rol de atividades essenciais, havia liberado os Salões de Barbeiros e Cabeleireiros de Fortaleza do cumprimento das regras de restrição definidas em decreto estadual.

Nesse último caso, aplicou-se a regra da predominância de interesse ao definir que as atividades exercidas pelos barbeiros e cabeleireiros não são dotadas de interesse nacional a justificar sua qualificação como essencial por parte do Presidente da República.

Com isso, observa-se que a Suprema Corte vem prestigiando o pacto federativo ao reconhecer o papel dos Estados e Municípios no planejamento e execução das mais relevantes ações estatais, sem conquanto diminuir o importante papel da União na qualidade de defensora dos interesses de abrangência nacional. É, em outras palavras, a materialização do conceito de federalismo cooperativo, já idealizado no modelo de repartição de competências estipulado pela Constituição Federal de 1988, e que vem ganhando adesão de relevante parte dos tribunais nacionais.

Por fim, vale dizer que, embora festejada, a intervenção da Corte Constitucional deveria ser excepcional, cabendo aos próprios entes, no campo político, a compreensão dos limites de sua atuação material e legislativa, a fim de garantir a preservação mútua de suas competências constitucionais, a harmonia nas relações interfederativas e a sincronia das ações que visem o desenvolvimento nacional e o bem-estar dos cidadãos.


Notas

[i] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 814

[ii] Op. cit. p. 819

[iii] Organização Mundial da Saúde. COVID-19 Strategy Update. Genebra: WHO, 2020. Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/covid-strategy-update-14april2020.pdf?sfvrsn=29da3ba0_19&download=true

[iv] Nesse sentido, o representante da OMS para a China, Dr. Gauden Galea, defendeu em entrevista que a efetividade das medidas adotadas pela China na resposta à doença pode ser creditada à “implementação de respostas diferenciadas e localmente específicas para limitar a transmissão, de modo que as medidas de saúde pública sejam adaptadas às diferentes realidades. Medidas em Wuhan, por exemplo, foram muito diferentes daquelas implementadas em lugares como Xangai ou Chengdu”. Disponível em: http://www.euro.who.int/en/health-topics/health-emergencies/coronavirus-covid-19/news/news/2020/4/china-shows-covid-19-responses-must-be-tailored-to-the-local-context

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Sobre o autor
Rodrigo Pugliesi Lara

Procurador da Câmara Municipal de Araraquara

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LARA, Rodrigo Pugliesi. Descentralização de competências no contexto da pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6184, 6 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82723. Acesso em: 21 nov. 2024.

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