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Os mestres da suspeita

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16/06/2020 às 15:10

Resumo:


  • A expressão "mestres da suspeita" foi criada por Paul Ricoeur para referir-se a pensadores como Nietzsche, Marx e Freud, que desafiaram a cultura ocidental e suas concepções sobre a natureza humana e as relações sociais.

  • Esses pensadores questionaram a razão ocidental, revelando que práticas violentas estão subjacentes às relações humanas e que as ideias de consciência e valores morais ocidentais são construções suspeitas, sujeitas a críticas e interpretações.

  • A hermenêutica moderna foi profundamente influenciada por esses filósofos, levando a uma abordagem em que a compreensão do mundo e de si mesmo passa a ser vista como um processo interpretativo, marcado por símbolos e significados que precisam ser decifrados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A denominação "mestres da suspeita" foi cunhada pelo filósofo francês Paul Ricoeur, e se refere aos pensadores Nietzsche, Marx e Freud pela importância que tiveram em questionar a cultura ocidental.

A denominação "mestres da suspeita" foi cunhada pelo filósofo francês Paul Ricoeur[1] e se refere aos pensadores como Nietzsche, Marx e Freud, pela importância que tiveram em questionar a cultura ocidental, elaborando considerações sobre o pensamento humano, bem como sobre as relações com o mundo.

Acrescente-se, ainda, que, nos anos sessenta, foram feitos comentários por Michel Foucault e Paul Ricoeur sobre os mestres da suspeita, principalmente sobre a hermenêutica moderna.

Em 1969, Ricoeur publicou uma obra sobre Freud intitulada "Da interpretação, ensaio sobre Freud"; nessa época, Ricoeur era considerado como um grande representante da hermenêutica moderna francesa.

O questionamento da razão ocidental acarretou a percepção de que as práticas violentas subjazem a todas as relações humanas. Aliás, a descoberta do inconsciente por Freud, a ruptura da universalidade do pensamento ocidental engendrada por Nietzsche e, ainda, a essência universal de homem preconizada por Marx, conduziram muitas gerações posteriores a suspeitar dos sagrados valores apregoados pelo Ocidente.

E, para tanto, se descortinaram considerações apuradas sobre a moral ocidental, a relação existente entre razão e instinto, sobre a vontade de poder, sobre a violência socioeconômica e da ideologia[2] como falsa consciência.

Segundo Paul Ricoeur[3], a partir de Nietzsche[4], Marx e Freud, a consciência passa a ser considerada como consciência falsa. Estabeleceu-se clara crítica à ideia cartesiana de que o sentido e a consciência do sentido coincidem. Plantaram a dúvida sobre os poderes da consciência em apreender o sentido do mundo e de si mesmo de forma evidente, clara e distinta.

O cogito cartesiano bem expresso na expressão "penso, logo existo", a auto-apreensão imediata e direta do sujeito foi posta em questão pela descoberta do inconsciente[5] em Freud, do ser social em Marx e da vontade de poder em Nietzsche.

Aliás, a certeza da consciência imediata de si torna-se problemática, tornando-se esta própria o enigma a ser decifrado. Esse enigma assume formas variadas e correspondentes ao processo de formação dessa consciência falsa: a ideologia em Marx, ilusão em Freud, vontade verdade em Nietzsche.

Cumpre assinalar que os mestres da suspeita não são os mestres do ceticismo. Então, busca-se outro caminho de acesso à consciência, um trabalho de interpretação mediado pelos signos e pelos símbolos a partir dos quais a própria consciência se manifesta.

O método de decifração tomou a forma quando Marx elaborou a teoria das ideologias[6], pela teoria dos ideais e ilusões em Freud, e por uma genealogia da moral em Nietzsche.

Concluiu Ricoeur que a partir desses pensadores, a compreensão se tornou uma hermenêutica, e, doravante, procurar o sentido não significa mais apenas soletrar a consciência do sentido. Mas, decifrar suas expressões. Ou ainda, como quis Foucault, os referidos pensadores nos colocam diante de novas possibilidades de interpretações, uma vez que eles fundaram novamente a possibilidade de uma hermenêutica.

A partir deles, a hermenêutica deixa de ser apenas uma técnica de interpretação nos termos de exegese da bíblia ou jurídica, ou mesmo uma metodologia das ciências humanas, conforme alegou Dilthey[7], e passa a ser muito mais que técnicas, pois nós mesmos, como intérpretes, somos levados a nos interpretar por essas técnicas.

O cogito está ferido de morte, e a hermenêutica assumiu caráter constitutivo desse homem que existe como compreensão, como interpretação de mundo que é, ao mesmo tempo, a intepretação de si.

Foucault[8], com razão, aduziu que a interpretação se torna um inescapável jogo de espelhos, assumindo caráter existencial e ontológico para o homem.

Não há, portanto, uma hermenêutica geral, um único cânon universal para exegese, mas sim, teorias opostas e específicas que abordam as dimensões existenciais precisas.

As obras de Nietzsche como “Além do bem e do mal” e “Genealogia da moral”[9], integram um projeto de transvaloração de todos os valores. Especificamente, quando criticou e revisou os valores basilares da sociedade ocidental, tal como a moral, a democracia e o cristianismo[10].

Aliás, o filósofo alemão conduziu a metafísica ocidental aos extremos de sua capacidade, e expôs a fragilidade de todas as instâncias que derivavam dela, a exemplo das religiões cristãs. Aliás, identificou que tudo pairava à sombra da metafísica, assim como a política, a cultura, a ciência, as artes, a religião e, principalmente, a filosofia.

Para se entender a origem dos valores, é preciso procurar saber como os conceitos foram formados, o modo como as ideias ganharam o status de verdade, e tal procedimento é chamado de crítica genealógica.

Desta forma, as verdades expostas pela filosofia e a percepção transcendental de Kant mostravam sua fraqueza desde o ego cogito de Descartes, as certezas empiristas das percepções simples, o modo de Locke, e a unidade metafísica da vontade em Schopenhauer.

Com o rompimento do campo hermenêutico moderno, a decifração põe em questão o próprio estatuto da linguagem e dos signos linguísticos, que perdem seu valor de simples meio à relação do homem com as coisas e consigo mesmo, seu sentido referencial imediato, passando esta própria, o enigma fundamental a ser decifrado por uma hermenêutica da suspeita.

Aliás, desconfia-se até mesmo da própria compreensão. Percebe-se que Marx, Nietzsche e Freud não conferiram um sentido novo às coisas que não tinham sentido. No fundo, eles mudaram a natureza do signo e modificaram o modo pelo qual o signo em geral podia ser interpretado.

Assim, os signos deixam de ser significantes que se referem a um significado, como uma visibilidade da superfície que indica as coisas mesmas, a realidade das coisas, para se tornarem uma obra constitutiva das próprias coisas.

Desta forma, é que o desejo em Freud só pode ser entendido como um processo de interpretação. Assim, não é sonho que pode ser interpretado, mas o texto do relato do sonho; não é o desejo sentido enquanto tal que está no centro da análise, mas sua linguagem.

Devemos ainda entender Nietzsche quando alude ao caráter tropológico de toda linguagem, bem como a crítica feita por Marx ao fetiche da moeda e da mercadoria presente na sociedade capitalista.

Afinal, para Nietzsche tais pensadores modernos apenas fizeram trilhar a continuação da tradição filosófica superficial que lhes fora legada pela Idade Média[11] e, por conseguinte, pela Antiguidade Clássica.

Precisamos essencialmente do omnibus dubitandum. E questionar se existem os contrários, as avaliações e as oposições criadas pelo povo para apreciar os valores, aos quais a seguir os metafísicos, colocaram sua marca, não são talvez avaliações superficiais.

Se os filósofos precedentes não suscitaram dúvidas desde o início, Nietzsche o fez efetivamente. Aliás, de fato, foi uma filosofia a marteladas[12]. Investigou os motivos que levam a metafísica ocidental a se estribar na oposição dos valores.

Então mergulhou na Antiguidade Clássica e descobriu no platonismo e no socratismo a causa da inversão de valores.

O socratismo triunfou em Atenas num tempo em que a cidade vivenciava uma decadência, e depois, adveio o fim trágico[13]; os valores aristocráticos estavam em plena crise, havia entre os gregos uma anarquia de instintos e Atenas sofria com sucessivos golpes tirânicos.

E, nesse contexto, a razão socrática se apresentava como um lenitivo, pois era enfim necessário dominar os impulsos, sacrificar a subjetividade e buscar o bem em si, pensar em valores universais.

Por outro viés, a racionalidade socrática[i][14] inverteu as noções de bem e mal, afastando-se de seu sentido original, isto é, eminentemente aristocrático.

O socratismo encerrou o instinto sob a grave acusação de ser nocivo, porém, conferiu à razão um papel repressor, porquanto estava formada a base sob a qual se assentaria toda a metafísica ocidental. Enfim, para justificar a existência do mundo das ideias, Platão elaborou o conceito de alma e recorreu à ideia de deus.

O ateniense da época afirmava que todo conhecimento verdadeiro seria, pois, uma espécie de recordação do que outrora, antes do cativeiro de nossa alma pelo corpo e no mundo terrestre, contempláramos do verdadeiro e do divino mundo de ideias.

Tal referência metafísica prosseguiu e sobreviveu ao final da Idade Antiga e serviu de bússola para os pensadores da Idade Média, a força motriz da moral cristã e, durante a Modernidade, manteve-se incólume desde Descartes, passando por Kant e chegando até Schopenhauer.

Pesou a crítica de Nietzsche sobre o mundo inteligível, e a base de sustentação do platonismo e, destruiu qualquer possibilidade de as ideias terem existência foram de si. Noutros termos, o filósofo alemão mostrou que todo conhecimento decorre do interesse e da perspicácia humana, ao revés do que preconizava a vigente filosofia de sua época.

Com isso, a crença em valores absolutos é abalada e, com esta, o pensamento de que as coisas possuem natureza imutável e essencial.

Abriu novo horizonte para o pensamento filosófico. E, a partir dessa nova perspectiva, foi possível questionar o valor dos valores, e a verdade passa ser questionada quanto sua origem, depurando as marcas de subjetividade e superficialidade, isto é, o filósofo mostrou ao Ocidente que todo conhecimento é construto humano, não nada neste de universal ou absoluto.

Fomos nós unicamente que inventamos as causas, a sucessão, a finalidade, a realidade, a obrigação, o número, a lei, a modalidade, o fim e quando introduzimos esse sistema de sinais como em si nas coisas, quando nos misturamos às coisas, fazemos uma vez mais o que sempre fizemos, isto é, mitologia. A vontade não livre do determinismo é mitologia.

Investigou a genealogia dos valores bem e mal e explicou o processo que os levou ao status alcançado na Modernidade[15]. Em suas conclusões, apontam que o poder de exercer a violência foi a força motriz para a formação dos primeiros valores, os conceitos se formaram a partir da capacidade que uma pessoa tinha de sair, de vingar-se, de violentar.

Os valores surgiram no mundo a partir de uma distância fundamental, pois os nobres julgaram a si e a seu agir como bom, ao contrário de tudo aquilo que fosse baixo, isto é, mal.

Através de pesquisa filológica, Nietzsche constatou que, em todas as línguas, os nomes dos valores foram determinados por uma consciência de distância e superioridade; derivam da mesma transformação conceitual sofrida pelos termos nobre e aristocrático, no sentido de ordem social.

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Contudo, quando afirma que os conceitos de bem e mal tem sua origem na alma das raças e das castas dominantes. Isso não significa uma dicotomia entre classe dominante/classe dominada no sentido marxista (até porque era avesso às dicotomias).

Do mesmo modo, quando aludiu aos nobres e aristocratas, não se referiu à determinada classe social ou aos detentores de poder econômico. E, segundo o pensador, a racionalidade também é uma forma de vontade de poder, e não resta isenta de crueldade.

Os preceitos morais são espécie de tirania contra a natureza e uma coação prolongada conforme o filósofo. E, fez-se necessário que os mais terríveis atos de violência fossem praticados para que o ser humano internalizasse os valores morais[16] não violentos.

Basta recordar os antigos castigos na Alemanha, entre outros a lapidação, o suplício do empalamento, o suplício de despedaçar, o supliciado por meio de cavalos (o esquartejamento), o emprego do vinho ou do azeite para ferver o condenado (nos séculos XIV e XV).

A moralidade não apresenta nenhum aspecto inteligível e, muito menos, divino. Os seres humanos se desenvolveram a partir de questões empíricas e a ensinaram de forma violenta. A violência jamais desapareceu do horizonte evolutivo do humano, as se apresentava de forma mais sutil, se revestiu das cores da imaginação, se espiritualizou e se encobre com nomes hipócritas.

Assinalou também a forma de moral escrava que consiste na homogeneização da massa humana, na castração de instintos e na proteção de seres inferiores em troca de sua obediência cega aos ditames sociais.

Os indivíduos foram paulatinamente, mediante aos fortes golpes de violência, passaram a internalizar os valores que negavam sua agressividade[17] e dominavam seus impulsos primitivos. E, como a agressividade é também integrante da biologia humana[18], e necessita ser direcionada para algum lugar, na interdição de sua exteriorização, os homens passaram a direcionara contra sua psiquê.

Assim, os instintos passaram a agir contra os próprios instintos e, assim, o privar-se de satisfazer a vontade de potência foi o meio que o humano encontrou para liberar seus impulsos. Eis que estava criada a consciência e todas as instâncias capazes de vigiá-la, como remorso, culpa, pecada, falta ou má consciência.

Como Marx viveu no período de conflito do proletariado com a elite econômica de seu tempo. E, quando esteve na Inglaterra, conheceu de perto a situação deplorável do operariado que era submetido a extensas jornadas de trabalho[19] em oficinas insalubres e indignas e ainda com baixa remuneração.

Marx elaborou então sua teoria materialista, segundo a qual as ideias devem ser compreendidas a partir do contexto histórico da comunidade em que se vive, porque estas derivam das condições materiais, no caso, das forças produtivas da sociedade. Igualmente percebeu as contradições que surgem entre essas forças produtivas e as relações de produção.

E, nesse cenário, as ideias vigentes, que aparecem como universais e absolutas, são de fato parciais e relativas, porque representam as ideias da classe dominante.

Os conceitos filosóficos, jurídicos, éticos, políticos, estéticos e religiosos da burguesia são estendidas para o proletariado, perpetuando os valores a estas subjacentes como verdades universais.

Enfim, esse conhecimento que aparece de forma distorcida corresponde à ideologia, ou seja, um conhecimento ilusório que tem por finalidade mascarar os conflitos sociais e garantir a dominação de uma classe, impedindo que a classe submetida desenvolva uma visão do mundo mais universal e lute pela autonomia de todos.

Nietzsche procedeu um deslocamento do problema do conhecimento, alterando o papel da filosofia. Para o filósofo alemão, o conhecimento não passa de interpretação, e atribuição de sentidos, sem jamais ser uma explicação da realidade. Pois conferir os sentidos significa conferir valores, ou seja, os sentidos são atribuídos a partir de determinada escala de valores que se quer promover ou ocultar.

Para Nietzsche, o conhecimento resulta de uma luta, do compromisso entre instintos. Ao compreender a avaliação que fosse feita desses instintos, descobre que o único critério que se impõe é a vida.

E, o critério da verdade, portanto, deixa de ser um valor racional para então adquirir um valor de existência. Ao se questionar o que seja o critério da vida? Respondeu que os sentidos atribuídos às coisas fortalecem nosso querer viver e quais os sentidos que o degeneram, questiona-se, em verdade, os valores para se distinguir quais os valores que nos fortalecem vitalmente e quais os valores nos enfraquecem fatalmente.

Sigmund Freud, o fundador da psicanálise[20], desmente as crenças racionalistas de que a consciência humana é o centro das decisões e do controle de desejos, ao levantar a hipótese do inconsciente. Diante de forças conflitantes, o indivíduo reage, mas desconhece os determinantes de sua ação.

Assim, no processo psicanalítico, pode auxiliar na busca do que foi silenciado pela repressão dos desejos. A hipótese do inconsciente tornou-se fecunda ao permitir a compreensão de uma série de acontecimentos da vida psíquica. Para a psicanálise, todos os nossos atos trazem significados ocultos que podem ser interpretados.

Pode-se afirmar, metaforicamente, que a vida consciente é somente a ponta de um iceberg, cuja montanha submersa simboliza o inconsciente.

Os sintomas que advêm do inconsciente devem ser decifrados na sua linguagem simbólica, já que o simbolismo encerra um modo de representação indireta e figurada de uma ideia, conflito ou desejo inconsciente.

Há, portanto, vários tipos de sondagem do inconsciente, mas para Freud, os sonhos constituem o caminho privilegiado, que o filósofo procura desvendar pelo método da associação livre[21].

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Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Gisele. Os mestres da suspeita. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6194, 16 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82928. Acesso em: 21 dez. 2024.

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