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Gestação por substituição ou barriga de aluguel:

Uma análise à luz do direito argentino e brasileiro

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27/06/2020 às 16:25
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3.  A gestação por substituição

Da mesma forma que o conceito de família mudou ao longo da história, especialmente após o século XX, o conceito e as formas de procriação também mudaram a partir de novas técnicas que permitem hoje seja um filho gerado não da forma tradicional.

Os avanços tecnológicos nos permitem hoje considerar a hipótese de um casal manter relações sexuais sem riscos de reprodução, assim como é perfeitamente possível haver procriação sem que haja o contato sexual.

Com as novas técnicas de reprodução assistida é possível ao casal desejar e ter um filho superando toda e qualquer impossibilidade física, tanto de fecundação quanto de reprodução.

Neste cenário não se pode olvidar de que a prole para um casal pode significar muito mais do que apenas o desejo de ter filhos. A procriação embora não tenha mais as mesmas características e funções que tinha no passado, ainda representa a possibilidade de continuidade da família de sorte a perguntar: ter um filho é um direito ou uma faculdade? 

Embora existam defensores das duas correntes, por obvio que seria uma incoerência garantir-se o direito à constituição da família e, ao mesmo tempo, não garantir a procriação como forma de continuidade da mesma. Por isso, entendemos que, mais que uma faculdade, procriar é um direito, independentemente de ser um ato que faz parte da própria natureza humana. 

Uma das formas de garantir ao casal o direito à procriação é a gestação por substituição, também chamada de gestação sub-rogada, locação de útero, cessão de útero, gestação por outrem ou, popularmente “barriga de aluguel”.

Conforme ensina a professora Luciana Scotti, “La maternidad subrogada es el compromiso entre una mujer, llamada “mujer gestante”, a través del cual ésta acepta someterse a técnicas de reproducción asistida para llevar a cabo la gestación en favor de una persona o pareja comitente, llamados él o los “subrogantes”, a quien o a quienes se compromete a entregar el niño o niños que pudieran nacer, sin que se produzca vínculo de filiación alguno con la mujer gestante, sino con él o los subrogantes”.[5]

Nesse cenário, é perfeitamente possível que uma mulher, por qualquer imperfeição físico-biológica não consiga desenvolver uma gestação com regularidade. Nessas circunstâncias, só resta ao casal concretizar o sonho de ter filhos através da gestação por substituição, utilizando-se para isso do útero de outra mulher na qual será inoculado o embrião constituído a partir do material genético do casal (fecundação artificial homóloga).

É também possível, com essa técnica, que o casal recorra a doador, seja de óvulos ou mesmo de sêmen, no caso de a mulher, ou mesmo o marido ou companheiro não serem férteis (fecundação artificial heteróloga).

No Brasil, ainda não há legislação regulando a matéria. O único dispositivo que trata da matéria, assim mesmo sob o aspecto ético, é a Resolução CFM nº 2.168/2017[6] do Conselho Federal de Medicina. Dentre outros aspectos, considera importante tratar da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas e a legitimidade do anseio de superá-la; que o avanço do conhecimento científico permite solucionar vários dos casos de reprodução humana; que as técnicas de reprodução assistida têm possibilitado a procriação em diversas circunstâncias, o que não era possível pelos procedimentos tradicionais; a necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios da ética médica; editando ainda diversos preceitos para delimitar o exercício dessa técnica.

O capítulo VII da referida Resolução tratou, especificamente, sobre a gestação de substituição (doação temporária do útero), prescrevendo que as clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de reprodução assistida para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. Preceitua, também, que as doadoras temporárias de útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o quarto grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. E, ainda, que a doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

Ainda no tocante à matéria, há também uma regulamentação promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, dentre outras medidas, regula a questão do registro de nascimento das crianças geradas por reprodução assistida, o que se deu através do provimento nº 52, de 14 de março de 2016 (atualizado pelos Provimentos nº 63 de 14/11/2017 e nº 83 de 14/8/2019).[7]

Visando a suprir a inexistência de lei, há várias iniciativas legislativas no Congresso Nacional brasileiro, cabendo destacar Projeto de Lei do Senado de n° 90, de 1999, de autoria do senador Lúcio Alcântara, que regulamenta minuciosamente a matéria, inclusive criminalizando determinadas condutas, cabendo destacar o previsto no art. 7º: “Fica permitida a gestação de substituição em sua modalidade não remunerada conhecida como doação temporária do útero, nos casos em que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na usuária e desde que haja parentesco até o segundo grau entre ela e a mãe substituta ou doadora temporária do útero”. Prescreve, ainda, em seu parágrafo único: “A gestação de substituição não poderá ter caráter lucrativo ou comercial, ficando vedada sua modalidade remunerada conhecida como útero ou barriga de aluguel”.

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O Projeto original do senador Lúcio Alcântara sofreu diversas alterações e gerou dois substitutivos: um de autoria do Senador Roberto Requião e outro do Senador Tião Viana, resultando em melhor elaboração, cujo texto foi enviado em junho de 2003, pelo Senador José Sarney, à Câmara dos Deputados e recebeu a identificação de PL nº 1.184/03.

O PL n° 1.184/03 encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados, estando a ele apensados os seguintes projetos:

  1. O Projeto de Lei n.º 2.855, de 1997, de autoria do Deputado Confúcio Moura, que dispõe sobre a utilização de técnicas de reprodução humana assistida e dá outras providências.
  2. Projeto de Lei n.º 4.665, de 2001, de autoria do Deputado Lamartine Posella, que dispõe sobre a autorização da fertilização humana "in vitro" para os casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de fertilização e dá outras providências. Permite a utilização das técnicas de fertilização “in vitro” apenas aos casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de fertilização‖ somente em clínicas autorizadas pelo Ministério da Saúde.
  3. Projeto de Lei n.º 120, de 2003, de autoria do Deputado Roberto Pessoa, que dispõe sobre a investigação de paternidade de pessoas nascidas de técnicas de reprodução assistida‖. Intenta modificar a Lei n.º. 8560, de 29 de dezembro de 1992, que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, e dá outras providências‖. Propõe que os nascidos de técnicas de reprodução assistida tenham o direito de saber a identidade de seus pais biológicos, mas sem que isso lhes dê direitos sucessórios.
  4. Projeto de Lei n.º. 1.135, de 2003, de autoria do Deputado José Aristodemo Pinotti, que dispõe sobre a reprodução humana assistida‖.
  5. Projeto de Lei n.º. 2.061, de 2003, de autoria da Deputada Maninha, que disciplina o uso de técnicas de Reprodução Humana Assistida como um dos componentes auxiliares no processo de procriação, em serviços de saúde, estabelece penalidades e dá outras providências.[8]

Quer dizer, existem iniciativas legislativas no Brasil que buscam regulamentar a matéria, porém ainda nos encontramos longe de obter o consenso sobre a matéria de sorte que, enquanto isso, a única disposição sobre a qual se pode apoiar é a Resolução do Conselho Federal de Medicina, retromencionado, e na jurisprudência resultante dos casos já julgados pelos nossos Tribunais.

Na Argentina também há um vazio legislativo quanto à matéria. O tema poderia ter sido regulamentado quando da aprovação do novo Código Civil e Comercial, que previa expressamente a regulamentação da gestação por substituição, porém, o Parlamento Argentino optou por não aprovar as disposições atinentes à matéria, perdendo a oportunidade de fazer a Argentina ser o primeiro país da América Latina a regulamentar a gestação por substituição.

Tratando especialmente da gestação por substituição a professora Marisa Herrera, tendo participado da comissão que redigiu o projeto do novo Código Civil e Comercial argentino, assim se expressou: “Fue uno de los temas más difíciles dentro del derecho de família”. Diversos temas de direito de família foram polemizados, porém el de la gestación por sustitución fue el tema más complejo para los expertos, disse Marisa Herrera, sobre todo por las críticas, algunas muy valiosas, de feministas y otros colectivos que temen la "cosificación" de la mujer o el eventual lucro con su cuerpo, sobre todo entre las más pobres.[9]

Explicou, ainda, a ilustre doutrinadora, que os redatores do projeto do novo Código Civil e Comercial tinham duas opções: reconhecer a existência da prática e regulamentar, ou, simplesmente, ignorá-la. A opção da comissão foi pelo reconhecimento. Nesse sentido, explicita: “No sé si este método es ideal, pero existe. Se está haciendo mucho en el extranjero y no es una opción ignorarlo. Es mejor tener una ley que regule el proceso, lo controle y que proteja en primer lugar al niño, pero también a la gestante y a quienes quieren tener un hijo biológico por este método”.

O projeto de Código Civil argentino foi minudente ao tentar regulamentar a matéria, procurando disciplinar todo o procedimento, não deixando lacunas para interpretações. Quer dizer, se fosse aprovado conforme a redação da Comissão, não haveria margem para manobras, porque as regras teriam ficado claras.

“La regulación legal, en cambio, puede solucionar los eventuales conflictos que la práctica plantee. El sistema proyectado, que prevé la intervención judicial previa, intenta anticiparse a esos problemas, en tanto exige que lo convenido por todas las partes sea aprobado antes del implante del embrión. Eneste proceso judicial previo deben intervenir varios especialistas, demodo tal que el abordaje sea completo y acorde a la complejidad que lasituación plantea. La prohibición al médico de proceder a la transferencia in esa autorización incita al cumplimiento de los requisitoslegales. Como la intervención judicial es anterior a la implantación en la gestante, el certificado de nacimiento debería emitirse, directamente, con el nombre de comitentes, como sucede en California; de tal modo, la gestante no figura como madre. Es decir, no hay “traspaso”, sino queel o los comitentes son legalmente los padres. El sistema proyectado tiende, pues, a la seguridad jurídica en primer lugar, del niño nacido, yen segundo lugar de todos los intervinientes en el acuerdo originário”[10]

Nesse sentido, e explicando como seria a regulamentação, a professora Marisa Herrera resumiu os pontos mais importantes da seguinte forma:

  1. El proyecto establece que la gestación por sustitución debe ser aprobada por un juez antes de que sea implantado el embrión.
  2. El magistrado solicitará certificados médicos y psicológicos que acrediten la buena salud de la gestante y su consentimiento "libre, pleno e informado".
  3. Un equipo multidisciplinario del tribunal deberá asesorar a la gestante sobre los riesgos y las implicancias de someterse a la práctica.
  4. La mujer no podrá aportar sus óvulos y al menos uno de los padres deberá suministrar sus gametos (óvulos o semen). Todo, para asegurar que no haya disputa por la filiación.
  5. Las expertas consideran que para acceder a la práctica, "la pareja o la persona interesada debería demostrar incapacidad de concebir o de llevar a término el embarazo".
  6. También precisan que para evitar que sea "un trabajo impuesto por la pobreza y tolerado por el Estado", la gestante solo podrá someterse a esta práctica dos veces.
  7. También deberá tener ya al menos un hijo propio "para asegurarse que comprende la gravedad de su compromiso".
  8. El acuerdo debe ser gratuito. Los gastos médicos, de asistencia o alimentación que puedan brindarse no implican la pérdida del carácter altruista de la práctica. Y si existiera una retribución material, se anticipa, el límite al "comercio" se aseguraría con el tope de dos gestaciones.
  9. Los médicos no podrán iniciar el procedimiento sin autorización previa de la justicia en cada caso, se establece en el proyecto.[11]

O projeto de novo Código Civil argentino prestigiava a segurança jurídica de todas as partes envolvidas, pois não deixava margem a dúvidas quanto à filiação da criança por nascer, tendo em vista que pais legalmente seriam aqueles que o tribunal tenha, previamente, autorizado, e não aquela que tenha emprestado seu ventre para a gestação. Além disso, com todas as demais exigências que poderiam ter sido impostas pela lei, acreditamos que o tema estaria devidamente resguardado do ponto de vista legal.

Contudo, só nos resta lamentar que não tenha sido aprovada essa proposta revolucionária. Porém, fica a sugestão para que o legislador ordinário, não só da Argentina, mas também de outros países, possam retomar a questão.

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Sobre o autor
Nehemias Domingos de Melo

Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus, Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. Cursou Doutorado em Direito Civil e Mestrado em Direitos Difusos e Coletivos, É Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Nehemias Domingos. Gestação por substituição ou barriga de aluguel:: Uma análise à luz do direito argentino e brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6205, 27 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83515. Acesso em: 25 abr. 2024.

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