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Gestação por substituição ou barriga de aluguel:

Uma análise à luz do direito argentino e brasileiro

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27/06/2020 às 16:25
Leia nesta página:

Um olhar sobre a gestação por substituição e seus reflexos, à luz do Direito brasileiro e argentino.

Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução histórica do conceito de família (2.1 Origem da família na antiguidade; 2.2 A família no Direito Romano; 2.3 A família durante a Idade Média; 2.4 A família e a Revolução Industrial; 2.5 A família segundo a ótica dos Códigos do Século XIX; 2.6 A família segundo a Declaração Universal dos Direito Humanos; 2.7 A família brasileira após a Constituição de 1988; 2.8 A família argentina após a reforma constitucional de 1994; 2.9 A família pós-moderna do século XXI). 3. Gestação por substituição. 4.  Conclusão. 5. Bibliografia.


1. Introdução

No presente trabalho, pretendemos fazer uma analise comparada do direito argentino e brasileiro no tocante ao instituto da gestação por substituição, também chamado de maternidade sub-rogada ou, popularmente, “barriga de aluguel”, dentre várias outras denominações. Para isso, faremos primeiro uma breve abordagem histórica do direito de família e de sua evolução ao longo do tempo, culminando com os novos conceitos de família na era pós-moderna.

Em seguida e considerando a importância da prole na constituição e a continuidade da família, dentre outros aspectos, trataremos das formas de filiação e o princípio do melhor interesse para a criança.

Faremos também um cotejo entre as iniciativas legislativas no Brasil e uma breve análise do instituto, nos termos como fora previsto no projeto do novo Código Civil e Comercial Argentino.


2. Evolução histórica do conceito de família[1]

Para bem entender a matéria, é importante fazer um retrospecto histórico para compreender o que é a família atualmente, tendo em vista a evolução desse conceito ao longos dos anos.

2.1 Origem da família na antiguidade:

A família surge como um fato próprio da natureza humana, baseada, fundamentalmente, na necessidade de convivência entre as pessoas (afetividade); na necessidade da perpetuação da espécie (formação da prole); de reforço da mão de obra doméstica (função econômica) e, até mesmo, como um dever cívico, já que a prole iria servir aos exércitos de seus respectivos Estados (função política), sem esquecer a função religiosa, tendo em vista que o pai de família, na antiguidade, era ao mesmo tempo, o chefe político e religioso de sua comunidade.

2.2 A família no Direito Romano:

Embora a palavra família tivesse vários significados no direito romano, para o nosso estudo importa a família com significado de agrupamento de pessoas ligadas entre si e sujeitaS ao pater familia.

Nesse sentido, cumpre destacar que houve duas fases marcantes no direito romano:

  • 1ª. fase: no antigo direito romano, a família era organizada em torno do pater familia, que exercia sobre os filhos direito de vida e de morte, e no qual a mulher cumpria um papel de serviçal subserviência. O chefe de família era autoridade máxima sendo, a um só tempo, chefe político, religioso, sacerdotal e jurisdicional (pater potestas).
  • 2ª. fase: Já no século IV DC, com o imperador Constantino, as regras foram atenuadas e a família tomou contornos mais de ordem moral e religiosa, permanecendo o marido como o chefe de família, porém dando-se maior autonomia à mulher. Nesse período, também foi permitido aos filhos economia própria, especialmente os militares, que podiam administrar seus próprios os soldos e com ele formar um patrimônio. Assim também os intelectuais e os artistas.

2.3 A família durante a Idade Média:

Nesta fase predominou a família organizada em torno do trabalho agrário, principalmente os camponeses, sob o comando dos pais, preservando-se a convivência da unidade familiar.

A mulher devia obediência plena ao marido e deveria estar sempre às suas ordens, desde as camponesas até as mulheres da nobreza. Enquanto solteiras, estavam submetidas ao poder de seus pais. Com o casamento, assumia nova família cujo chefe agora era seu marido.

Nesse sistema, as filhas eram totalmente excluídas da sucessão, pois quem recebia a herança era o primogênito. Como a mulher ao se casar iria assumir a família do marido, isso servia de justificativa para a sua exclusão do direito sucessório tendo em vista que não daria continuidade ao culto familiar, base da sociedade medieval.

Sob forte influência do cristianismo, nessa época a única família reconhecida era a cristã, ou seja, aquela formada pelo casamento que se regia, exclusivamente, pelo direito canônico, sendo o casamento religioso o único aceito, admitido e conhecido.             

2.4 A família e a Revolução Industrial:

Na fase pré Revolução Industrial, a família tinha uma função essencialmente econômica, pois de duas uma: ou os filhos ajudavam os pais em seus ofícios (artesões), ou na atividade agro-pastoril (subsistência).

Com a Revolução Industrial e a introdução das máquinas, com a produção em série e o desenvolvimento dos centros urbanos houve, por assim dizer, o início da desagregação familiar tendo em vista que a prole procurava emprego nas áreas urbanas abandonando seus redutos familiares.

2.5 A família segundo a ótica dos Códigos do Século XIX:

Os Códigos promulgados pelas diversas nações a partir do Código Napoleônico (Código Civil Frances de 1804), inclusive o argentino de 1869 (Vélez Sársfield) e o brasileiro de 1916 (Clovis Bevilaqua), adotaram o regime de família patriarcal, ou seja, toda a organização da família girava em torno do chefe da família – o marido, estabelecendo algumas característica marcantes, vejamos:

  1. O casamento civil substitui o casamento religioso para efeito de proteção e reconhecimento pelo Estado;
  2. A família reconhecida pelo Estado é somente a legítima, de sorte que qualquer outra forma de união passa a ser proscrita e qualificada como concubinato;
  3. A indissolubilidade do vinculo familiar como forma de perpetuar a união entre os cônjuges, cujo vinculo somente era desfeito pela morte de um dos contraentes ou pela anulação do casamento;[2]
  4. Diferenciação de direito entre os filhos legítimos e os demais outros (chamados de adulterinos, bastardos, espúrios ou incestuosos), reforçando assim a idéia de família legítima; e,
  5. O homem é o chefe de família (sistema patriarcal), a mulher cumpre um papel de auxiliar e os filhos estão submetidos ao pátrio poder. Em síntese: todos devem obediência ao chefe da família.    

2.6 A família segundo a Declaração Universal dos Direito Humanos:

A Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, proclamou a igualdade de direitos entre homens e mulheres no que se refere ao casamento (art. 16, caput). Da mesma forma com os filhos, havidos ou não do casamento, ao preceituar que “todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social” (art. 25, II).

Considerou, ademais, que a “família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado” (art. 16, III).

Além disso, ao positivar o princípio da dignidade da pessoa humana e proclamar a igualdade entre todos os seres humanos, abriu a discussão sobre a igualdade dos cônjuges e dos filhos ao preceituar em seu artigo primeiro: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.

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2.7 A família brasileira após a Constituição de 1988:

A Constituição Federal de 1988, em consonância com o preceituado na Declaração Universal dos Direito Humanos, provocou uma revolução de caráter normativo excepcional no direito de família no Brasil, cujos efeitos tiveram o condão de também promover uma revolução de conceitos na mentalidade do povo brasileiro ao proclamar:

  1. A dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1°, III). Tanto o legislador quanto especialmente o aplicador da norma, não pode mais pensar o direito sem se ater a esse fundamento que é, a bem da verdade, um valor;
  2. A igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges na sociedade conjugal (art.226, § 5°). A partir deste dispositivo a mulher deixa de ser uma pessoa de segunda classe para se equiparar ao marido em direitos e deveres na condução da família. Substitui-se o pátrio poder pelo “poder familiar”.
  3. A igualdade entre os filhos, pouco importando se seu vínculo com os pais é de origem biológica (advinda do casamento ou mesmo fora dele) ou por vínculo jurídico, como no caso dos adotados e os advindos de inseminação artificial heteróloga (art. 227, § 6º);
  4. A família para proteção do Estado não é só a matrimonial, mas também as originárias da união estável (art. 226, § 3°), bem como as famílias monoparentais (art.226, § 4°), deixando em aberto a possibilidade de reconhecimento de outras formas de família; e,
  5. O planejamento familiar é livre decisão do casal, voltado para os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art.226, §7).

2.8 A família argentina após a reforma constitucional de 1994:

Com a reforma da Constituição da Nação Argentina, de 1994, foram incorporadas diversas modificações importantes ao texto constitucional originário. Dentre estas modificações, cabe destacar que muitas contribuíram para a modernização e redefinição do texto constitucional, de modo a fazer frente aos novos tempos, especialmente depois do período de exceção que recaiu sobre aquele país. Uma delas, foi a introdução dos direitos de terceira e quarta geração, que estatuiu normas para defesa da democracia e da própria Constituição, definiu as características dos órgãos de governo e novos órgãos de controle e, especialmente, concedeu prioridade legal aos tratados internacionais.

Ao conceder prioridade legal aos tratados internacionais, a Constituição fez por incorporar, ao ordenamento jurídico argentino, diversas Convenções e Tratados versando sobre direitos de família, especialmente a La Convención sobre los Derechos del Niño; la Convención sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; Convención Interamericana sobre Conflictos de Leyes en Materia de Adopción de Menores; la Convención Americana sobre Derechos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica) de 1969, dentre outros.

Outro aspecto importante é que o artigo 16 consagrou a igualdade jurídica entre as pessoas, não se admitindo prerrogativas de sangue, nem de nascimento, nos seguintes termos: “La Nación Argentina no admite prerrogativas de sangre, ni de nacimiento: no hay en ella fueros personales ni títulos de nobleza. Todos sus habitantes son iguales ante la ley, y admisibles en los empleos sin otra condición que la idoneidad. La igualdad es la base del impuesto y de las cargas públicas.

Como leciona a professora Marisa Herrera, com a autoridade de quem integrou a Comissão de Revisão do Código Civil argentino, “la llamada "constitucionalización del derecho civil" y, dentro de este, la "constitucionalización del derecho de familia" han permitido el ingreso de varias revisiones críticas en la noción misma de familia, básicamente aquella centrada en la familia matrimonial, heterosexual y principalmente centrada en la procreación, cuyo rol de cuidado debía quedar a cargo de las mujeres. Uno de los principios de derechos humanos que han promovido tal revisión ha sido el de igualdad y no-discriminación”.

E comentando a recente aprovação do casamento igualitário naquele país, a ilustre mestra assevera: “Precisamente, ha sido este principio básico en todo Estado Democrático de derecho el que auspició en la Argentina la sanción en fecha 15/07/2010 de la Ley 26.618, que extiende la institución del matrimonio civil a las parejas del mismo sexo, es decir, que habilita esta figura a todas las personas con total independencia de su orientación sexual, convirtiéndose así en el primer país de América latina que adopta una postura legislativa de este tenor”.[3]

2.9 A família pós-moderna do século XXI:

Além das formas tradicionais de famílias reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro e argentino, cabe destacar que novas formas vêm surgindo, alargando o conceito de família para albergar novas situações advindas da vida moderna.

Como preleciona a professora Luciana Scotti, “en la Sociedad internacional, globalizada, intercultural del Siglo XXI conviven diversas concepciones, nuevos paradigmas, múltiples modelos de familia: uniones de hecho, familias monoparentales, matrimonios heterosexuales con o sin hijos biológicos, matrimonios homosexuales, matrimonios o parejas con hijos adoptivos, matrimonios poligámicos, matrimonios islámicos, matrimonios “solo consensu”, familias formadas por diversos vínculos de parentesco, las denominadas “familias ensambladas”, entre otras.[4]

Partindo dessa premissa, e sem pretensão de esgotar o assunto, podemos identificar, para efeito do presente estudo, as seguintes formas de família.

  1. A família matrimonial ou legal: enquanto família legalmente constituída através do casamento civil ou religioso com efeitos civis (legal porque realizado nos moldes estabelecido em lei);
  2. A família convivencial ou informal: a família de fato, ou seja, aquela formada de maneira informal pela união estável entre homem e mulher;
  3. A família homoafetiva: aquela formada pela união de pessoas de mesmo sexo seja pela união estável ou pelo casamento;
  4. A família monoparental: aquela constituída por um dos genitores e sua prole (natural ou civil), podendo-se até incluir o padrasto que mora com o enteado cujos parentes faleceram.
  5. A família pluriparental: aquela formada por parentes, tais como os irmãos que moram sozinhos; ou do tio que mora com o sobrinho ou, até mesmo, de pessoas de parentesco distante que decidem morar juntas no mesmo lugar.
  6. A família reconstituída ou mosaica que os argentinos chamam de “ensambladas”: aquela formada por pessoas que tem filhos de uma relação anterior e se unem novamente a outra pessoa que também pode ter filhos. Assim, essa nova família será constituída pelo casal e os filhos que cada um (ou só de um deles) trouxe da relação anterior, mais os eventuais filhos do próprio casal (alguém já sintetizou esse tipo de família em: eu, você, os meus, os seus e os nossos filhos).

Nesse cenário, em que várias formas de famílias são admitidas e reconhecidas pelo direito, não se pode olvidar da importância de outras formas de gestação e procriação, possíveis hoje a partir da ciência, como forma de permitir que sejam as famílias constituídas, ampliadas e perpetuadas. 

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Sobre o autor
Nehemias Domingos de Melo

Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus, Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. Cursou Doutorado em Direito Civil e Mestrado em Direitos Difusos e Coletivos, É Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Nehemias Domingos. Gestação por substituição ou barriga de aluguel:: Uma análise à luz do direito argentino e brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6205, 27 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83515. Acesso em: 25 abr. 2024.

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