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Censura democrática ou democracia censurada?

Quando o combate às fake news pode se tornar algo prejudicial à liberdade de expressão

02/07/2020 às 10:00
Leia nesta página:

Examinam-se os principais aspectos do PL 2630/2020 (fake news) relacionados à possibilidade de se controlar a forma como usuários das redes sociais emitem suas opiniões dentro das plataformas sociais.

Ultimamente tem-se falado muito sobre notícias falsas, também chamadas de fake news, e outros assuntos correlatos. Desde meados de 2016 até agora, o tema sobre a desinformação possui lugar de destaque nos assuntos mencionados pelas redes sociais, com direito até a quadros em jornais com o título “fato ou fake”.

É certo que praticamente toda população brasileira já tenha se deparado com mensagens, correntes de texto, notícias ou vídeos que, no final das contas, não passam de mera suposição do autor, ou pior, descabida mentira com o intuito de manipular o leitor para um fim específico.

Por conta disso, o debate na sociedade e nas cúpulas governamentais sobre o assunto está sendo levantado em torno da criação de normas capazes de combater ou coibir a prática da disseminação de notícias falsas. Uma dessas propostas, o Projeto de Lei número 2630, de 2020, propõe uma série de ações visando ao combate dessa prática.

Esse projeto de lei busca instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, cujo objetivo é atacar contas falsas em redes sociais, as de caráter inautêntico ou aquelas contas ou redes disseminadoras de mensagens de forma artificial.

Além disso, o projeto também visa à obrigatoriedade da utilização de documentos pessoais no momento da criação de contas em redes sociais, assim como uma melhor transparência no conteúdo produzido por patrocinadores e distribuído para os usuários em si.

Tudo isso visa a um objetivo maior: combater as notícias falsas, desinformadoras, que incitam ódio ou violência ou aquelas que visem a degradar as instituições públicas como um todo.

Realizando uma abordagem mais crítica, logo se percebe a sensibilidade do tema frente ao direito da liberdade de expressão dentro das relações pessoais. Toda pessoa tem direito à liberdade de expressão ou de desenvolvimento de pensamentos, compreendendo a liberdade de buscar, receber, difundir e discutir informações de qualquer natureza por qualquer meio impresso, digital, escrito, verbal, visual ou gestual.

Nosso ordenamento jurídico é recheado de normas que derivam do princípio da liberdade de expressão e todo e qualquer mecanismo que venha a tentar modifica-lo deve ser recebido com cautela e, até mesmo, com resistências. Sabe-se que as formas de governo mais ditatoriais confrontam, arduamente, o direito de livre opinião de seus administrados dada a sua importância e força dentro da sociedade.

No entanto, é certo também que o principio da liberdade de expressão não é absoluto, ou seja, ele resvala e pode entrar em conflitos com outros princípios dentro da legislação constitucional brasileira. Quando há um confronto desse princípio com os demais e ele venha a ser relativizado, é normal que tenha certa confusão entre tal relativização com a prática de censura. No entanto, a censura pressupõe um ato anterior à manifestação da opinião, ou, uma supressão posterior por conta de ideologias de poder contrárias ao conteúdo da ideia. O que se pontua, no caso, é a  responsabilidade pelo conteúdo que se opera. Nos dizeres de José Francisco Cunha Ferraz Filho (2018, p. 52), explica-se de forma detalhada o presente assunto:

Impor consulta prévia e/ou censura prévia pra a expressão de pensamento, atividade intelectual, artística, científica e de comunicação não condiz com o Estado Democrática de Direito. Contudo, a ausência de obrigatoriedade de censura e/ou licença não pressupõe ausência de responsabilidade, ao contrário, a responsabilidade é a eterna vigia da liberdade e o abuso poderá ser objeto de responsabilização civil e/ou criminal.

 Controlar o conteúdo que os usuários das redes sociais postam sob o argumento de combater informações falsas adentra nessa linha tênue entre o direito de opinar e manifestar o pensamento com os demais princípios que regem o sistema legal. A responsabilidade de filtrar aquilo que é ético, ou do que não é, fica a cargo das grandes empresas mantenedoras dessa rede social, fazendo com haja uma inequívoca seleção do que é ou não conveniente dentro de suas relações interpessoais.

Ora, controlar a informação a esse nível significa dizer que o usuário da rede social será moderado, ou seja, terá sua liberdade de falar o que pensa analisada por um terceiro, humano ou artificial, que poderá suprimir a exposição da ideia ou da opinião, bem como perseguir o usuário o qual inicialmente publicou ou criou o conteúdo. Sendo mais direto, seria uma verdadeira “caça às bruxas” dentro da internet.

Esse controle, inclusive, resvala em um ponto que a legislação brasileira relacionada ao tema defende claramente. A lei 12.965, de 2014, que regulamenta o Marco Civil da Internet no Brasil estabelece alguns princípios, garantias, direitos e deveres para o uso correto da internet. Nesse bojo, os fundamentos defendidos pelo conteúdo dessa norma buscam o respeito à liberdade de expressão, conforme artigo 2º da citada lei, vejamos:

Art. 2º A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I - o reconhecimento da escala mundial da rede; II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III - a pluralidade e a diversidade; IV - a abertura e a colaboração; V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI - a finalidade social da rede.

Realizar o controle sobre conteúdo ou as atividades que os usuários publicam em suas redes sociais vem de encontro com o estabelecido no marco civil da Internet, pois interfere na finalidade da rede social, que é, em sua maioria, promover o compartilhamento de ideias ou opiniões sem limitações, de modo aberto e democrático, permitindo que todos possam defender os seus pontos de vistas.

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Não se trata de permitir abusos, crimes ou transgressões éticas dentro das redes sociais, pois isso já é proibido dentro das mesmas, com ferramentas e ações disponibilizadas conforme o perfil e finalidade de determinada rede. Projetos de lei como a PL 2630 vão além; eles visam a dar poderes para julgar entre o certo ou errado com base em seus próprios julgamentos ou, conforme a ética ou cultura de cada política utilizada.

Outro ponto negativo a respeito dessa moderação de conteúdo diz respeito à possibilidade do monopólio dos conteúdos veiculados e disponibilizados para a construção de pensamentos ou aprendizados dentro dessas plataformas. Isso vem a ferir uma ramificação do direito à liberdade de expressão, que é interesse social de se informar. Controlar o que é disponibilizado em uma rede social é manipular os dados de como determinada sociedade encontra-se cultural e politicamente. Dessa forma, é pertinente trazer os ensinamentos do professor Guilherme de Peña de Morais (2018, p. 191):

A informação, conceituada como “direito que todo indivíduo tem de saber aquilo que é preciso que ele saiba, para que possa formar a sua opinião e se conduzir como membro da coletividade”, é delimitada pelo direito à intimidade de cada pessoa humana, tendo o Congresso de Juristas dos Países Nórdicos sobre o Direito à Vida Privada, realizado em 1967, estabelecido a distinção entre “interesse social de ser informado”, que se relaciona com a informação do público, e “interesse comercial de informar”, que tem a ver com a informação para o público, de sorte que o “primeiro se limita àquilo que o indivíduo tem interesse em saber como membro da sociedade”, ao passo que “o segundo vai muito além, compreende, também, a indiscrição que se ‘vende’ cada vez mais”

O direito de opinar e o direito de ouvir o que se quer ouvir é uma das liberdades pioneiras dos Direitos Humanos, e está elencada nas primeiras demandas sobre garantias individuais. Nessa concepção, não é racional que haja um retrocesso sobre tal tema, de maneira que se utilize de problemas de mensagens falsas, ou inautênticas, para manter a opinião pública sobre controle, onde poderá ser proibido criticar governos, chefes de Estado ou seguir ideologias incompatíveis com o pensamento vigente das Instituições Sociais vigentes.

Construímos nossa sociedade democrática com grande luta, e muitas pessoas foram mortas por defenderem suas convicções diante de um sistema de governo autoritário. Perder esse direito irrestrito de poder criticar, opinar, compartilhar ou qualquer ação afim, significa perder um dos meios pelos quais temos tantas garantias na atualidade.

Portanto, controlar tais conteúdos é o mesmo que impor uma consulta ou censura prévia para a expressão de pensamento. Nesse ponto, é crucial pensar que o titular de direitos relativos à opinião ou liberdade de expressão não precisa de licença prévia para expor o que pensa ou consumir o conteúdo de que busca, estando eles dentro da legalidade e da licitude.


Referências:

Moraes, Guilherme Peña de Curso de direito constitucional / Guilherme Peña de Moraes. – 10. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2018.

Vários autores. Brasil – Constituição (1988) 2. Direito Constitucional – Brasil 1. Machado, Costa, II. Ferraz, Anna Candida da Cunha. Editora Manole. 2018

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Sobre o autor
Leandro Ferreira da Mata

Cientista Jurídico; bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio Brasília; Especialista em Direito da Criança, Juventude e dos Idosos e em Segurança Pública e Organismo Policial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATA, Leandro Ferreira. Censura democrática ou democracia censurada?: Quando o combate às fake news pode se tornar algo prejudicial à liberdade de expressão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6210, 2 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83609. Acesso em: 17 nov. 2024.

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