As criptomoedas podem configurar uma espécie de meio de pagamento on-line, tendo surgido na década passada, e, durante muito tempo, ficou restrita ao ambiente dos empreendedores virtuais mais sofisticados, a ponto de paulatinamente ter conquistado adeptos e angariado espaço no mercado, resultando na atual preocupação gerada nos inúmeros representantes de Estado.
Com efeito, trata-se de uma moeda virtual e um meio de pagamento, que pode ser empregado para qualquer tipo de transação comercial, e já vem sendo utilizada nas transações (compra e venda) de moeda estrangeira em algumas casas de câmbio do Brasil (disponível em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,casa-de-cambio-passaaaceitar-bitcoin-para-compra-de-dolar,70002817208).
Todavia, é uma moeda virtual ainda não reconhecida pelo Banco Central do Brasil, inexistindo o respectivo lastro, ante a ausência de correspondência a uma existência física em papel moeda equivalente, assim como pela impossibilidade de comprovação do seu efetivo valor, a teor do que consta no Comunicado Bacen n.º 31.379/2011 (disponível em C:\Users\Usuario\Documents\Comunicado nº 31.379 de 16_11_2017.html).
Indaga-se, porém, se a manutenção de valores superiores a US$ 100.000,00 (cem mil dólares) em bitcons configuraria o delito de evasão de divisas, na modalidade evasão imprópria?
Em relação ao tipo penal de evasão divisas previsto na Lei 7.492/86, cumpre descrevê-lo em sua íntegra:
Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:
Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.
Nesse ponto, defendemos anteriormente que, enquanto o bitcoin não for regulamentado pelo CMN (Conselho Monetário Nacional) e/ou pelo BACEN, fica inviável cogitar, em tese, na tipificação como evasão de divisas propriamente dita (primeira parte do parágrafo único do artigo 22 da LCSF) ou da modalidade evasão imprópria porquanto não poderá ser classificado na condição de depósito, moeda ou divisa, por não estar vinculado a qualquer instituição financeira, e pelo fato de as operações não serem reconhecidas e regulamentadas pelos aludidos entes do sistema financeiro nacional.
Além disso, sustentamos que, apenas na hipótese do crime do caput do art. 22 da Lei 7.492/86 é que se poderia cogitar, em princípio, da possibilidade de configuração do delito de evasão, quando a aquisição da criptomoeda for utilizada para fins de efetivação de contrato de câmbio ilegal, cujo objetivo seja a evasão de divisas (remessa dos valores para outro país, em desconformidade às regras do Banco Central), conforme se nota da análise da seguinte ementa de decisão oriunda do Superior Tribunal de Justiça:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. JUSTIÇA ESTADUAL E JUSTIÇA FEDERAL. INVESTIGADO QUE ATUAVA COMO TRADER DE CRIPTOMOEDA (BITCOIN), OFERECENDO RENTABILIDADE FIXA AOS INVESTIDORES. INVESTIGAÇÃO INICIADA PARA APURAR OS CRIMES TIPIFICADOS NOS ARTS. 7º, II, DA LEI N. 7.492/1986, 1º DA LEI N. 9.613/1998 E 27-E DA LEI N. 6.385/1976. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL QUE CONCLUIU PELA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE OUTROS CRIMES FEDERAIS (EVASÃO DE DIVISAS, SONEGAÇÃO FISCAL E MOVIMENTAÇÃO DE RECURSO OU VALOR PARALELAMENTE À CONTABILIDADE EXIGIDA PELA LEGISLAÇÃO). INEXISTÊNCIA. OPERAÇÃO QUE NÃO ESTÁ REGULADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO. BITCOIN QUE NÃO TEM NATUREZA DE MOEDA NEM VALOR MOBILIÁRIO. INFORMAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL (BCB) E DA COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS (CVM). INVESTIGAÇÃO QUE DEVE PROSSEGUIR, POR ORA, NA JUSTIÇA ESTADUAL, PARA APURAÇÃO DE OUTROS CRIMES, INCLUSIVE DE estelionato E CONTRA A ECONOMIA POPULAR. 1. A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976. 2. Não há falar em competência federal decorrente da prática de crime de sonegação de tributo federal se, nos autos, não consta evidência de constituição definitiva do crédito tributário. 3. Em relação ao crime de evasão, é possível, em tese, que a negociação de criptomoeda seja utilizada como meio para a prática desse ilícito, desde que o agente adquira a moeda virtual como forma de efetivar operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira), não autorizada, com o fim de promover a evasão de divisas do país. No caso, os elementos dos autos, por ora, não indicam tal circunstância, sendo inviável concluir pela prática desse crime apenas com base em uma suposta inclusão de pessoa jurídica estrangeira no quadro societário da empresa investigada. 4. Quanto ao crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei n. 9.613/1998), a competência federal dependeria da prática de crime federal antecedente ou mesmo da conclusão de que a referida conduta teria atentado contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 2º, III, a e b, da Lei n. 9.613/1998), circunstâncias não verificadas no caso. 5. Inexistindo indícios, por ora, da prática de crime de competência federal, o procedimento inquisitivo deve prosseguir na Justiça estadual, a fim de que se investigue a prática de outros ilícitos, inclusive estelionato e crime contra a economia popular. 6. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara de Embu das Artes/SP, o suscitado. (STJ, CC-161123, Rel. Sebastião Reis Junior, 3ª Seção, DJE 05/12/2018).
Todavia, analisando o contexto atual tecnológico, social e no âmbito do plano fático, revisitamos o entendimento anterior para defender novas premissas.
Podemos vislumbrar a hipótese na qual o bitcon seja utilizado como forma de negociação de moeda estrangeira (câmbio ilegal) em desconformidade com as normas do Bacen (Banco Central), especificamente quando for transferido a um doleiro situado no Brasil, e o valor correspondente for recebido no exterior em moeda estrangeira, em conta a ser indicada pelo doleiro, com os valores de compensação ajustados de forma paralela no câmbio irregular.
Em tais caso, configurar-se-á o que passamos a denominar “bitcoin- cabo”, uma vez que a criptomoeda estará sendo utilizada como meio para perfectibilização de operação de câmbio irregular, resultando na efetivação da saída de divisas do país em situação semelhante às denominadas operações com o dólar- cabo.
Com efeito, no famigerado “ dólar- cabo” ou “euro -cabo”, o agente procura um doleiro aqui no Brasil e entrega a este uma quantia em reais, a fim de receber a contrapartida em moeda estrangeira (dólar, euro) em uma espécie de compensação à margem do sistema oficial e legal (feito por instituições financeiras).
É o típico exemplo no qual determinado cidadão pretende enviar R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) ao exterior, mas não queira fazê-lo por intermédio do sistema financeiro (a fim de não deixar “rastro”, “pista”).
Para tal finalidade, procura um doleiro, que tem contato com outro doleiro no exterior, providenciado o “câmbio clandestino” (conversão ilegal de valores entre moedas), à margem do sistema financeiro oficial, recebendo o correspondente em conta indicada pelo doleiro no exterior.
Em tais casos, ainda que não tenha havido a transferência física para o exterior, incide, em tese, o crime previsto na primeira parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 (evasão-envio), visto que houve, “ por qualquer forma”, a saída de divisas ao exterior, em desconformidade com as normativas do BACEN.
O Supremo Tribunal Federal (STF), na ação penal 470, decidiu que é prescindível a remessa física dos valores ao exterior, podendo operar tal transferência, por intermédio do envio clandestino entre doleiros, sendo “equiparada” à respectiva transferência manual ou bancária (contábil, feita pelo sistema financeiro nacional).
Nesse sentido, decidiu a Suprema Corte:
“doleiros, cinquenta e três depósitos em conta mantida no exterior. Desses depósitos, vinte e quatro se deram através do conglomerado Rural, cujos principais dirigentes à época se valeram, inclusive, de offshore sediada nas Ilhas Cayman (Trade Link Bank), que também integra, clandestinamente, o grupo Rural, conforme apontado pelo Banco Central do Brasil. A materialização do delito de evasão de divisas prescinde da saída física de moeda do território nacional. Por conseguinte, mesmo aceitando-se a alegação de que os depósitos em conta no exterior teriam sido feitos mediante as chamadas operações “dólar-cabo”, aquele que efetua pagamento em reais no Brasil, com o objetivo de disponibilizar, através do outro que recebeu tal pagamento, o respectivo montante em moeda estrangeira no exterior, também incorre no ilícito de evasão de divisas. Caracterização do crime previsto no art. 22, parágrafo único, primeira parte, da Lei 7.492/1986, que tipifica a conduta daquele que, “a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior”. Crimes praticados por grupo organizado, em que se sobressai a divisão de tarefas, de modo que cada um dos agentes ficava encarregado ZILMAR FERNANDES SILVEIRA, quanto à acusação de lavagem de dinheiro referente aos cinco repasses de valores realizados em agência do Banco Rural S/A em São Paulo (art. 386, VII, do Código de Processo Penal). MANUTENÇÃO DE DEPÓSITOS NÃO DECLARADOS NO EXTERIOR (ART. 22, PARÁGRAFO ÚNICO, SEGUNDA PARTE, DA LEI 7.492/1986). SALDO INFERIOR A US$ 100.000,00 NAS DATAS-BASE FIXADAS PELO BANCO CENTRAL DO BRASIL. DESNECESSIDADE, NESSE CASO, DE DECLARAÇÃO DOS DEPÓSITOS EXISTENTES. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. A manutenção, ao longo de 2003, de conta no exterior com depósitos em valor superior aos cem mil dólares americanos previstos na Circular nº 3.225/2004 e na Circular nº 3.278/2005 do Banco Central do Brasil não caracteriza o crime descrito no art. 22, parágrafo único, segunda parte, da Lei 7.492/1986, se o saldo mantido nessa conta era, em 31.12.2003 e em 31.12.2004, inferior a US$ 100.000,00, o que dispensa o titular de declarar ao Banco Central os depósitos existentes, conforme excepcionado pelo art. 3º dessas duas Circulares. Absolvição de JOSÉ EDUARDO CAVALCANTI DE MENDONÇA (DUDA MENDONÇA) e ZILMAR FERNANDES SILVEIRA (art. 386, VII, do Código de Processo Penal)” (STF, Tribunal Pleno, Rel. Joaquim Barbosa, j. 17/12/2002)
Adaptando o raciocínio em relação ao bitcoin, este poderá ser utilizado como meio para a transformação do seu valor em divisas, e portanto, configurar a evasão- envio (primeira parte do parágrafo único do artigo 22 da Lei 7492/86) ou evasão- depósito (última parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86).
No último caso, se o agente entregar valores em bitcoins a um doleiro, que disponibilizar moeda estrangeira em conta situada no exterior, e esta ultrapassar o correspondente a US$ 100.000,00 (cem mil dólares) sem a declaração ao Bacen, por intermédio da DCBE ( declaração de capital de brasileiro no exterior), haverá, em tese, o crime de evasão imprópria (última parte do art. 22 da Lei n.º 7492/86).
Cumpre aqui observar que o“bitcoin- cabo’ estará sendo utilizado como meio para transformação do seu valor em moeda estrangeira à margem do controle oficial do Estado, e em desconformidade com as regulamentações do Bacen.
Observe-se, e aqui destacamos com ênfase, que sequer estão sendo utilizados os métodos hermenêuticos de interpretação extensiva e teleológica, porquanto não está sendo ampliado o conceito de “divisas”, e sim efetivada a correta subsunção dos fatos, quando o criptoativo for utilizado como meio ou instrumento para transformação de seu respectivo valor em divisas correspondentes.
Todavia, apenas como reforço argumentativo, é oportuno destacar os métodos de interpretações teleológicas e extensivas, sendo o último aplicável, se não houver desvirtuamento da vontade do legislador (mens legis).
Nesse sentido, a interpretação teleológica é um método de interpretação que tem por critério extrair a finalidade da norma. Conforme a respectiva exegese, ao se interpretar um dispositivo legal, deve-se levar em conta as exigências econômicas e sociais, conformando-se aos princípios da justiça e do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito-LINDB).
Por seu turno, a interpretação extensiva é aquela que amplia o sentido ou alcance da norma (“a lei disse menos do que queria dizer”), sendo admitida no direito penal, desde que não haja desvirtuamento da mens legis (espírito da lei), e tem por finalidade conferir lógica na interpretação do ordenamento jurídico.
No que se refere à efetivação de interpretação extensiva no direito penal, vejamos seguinte ementa de decisão oriunda do Supremo Tribunal Federal (STF):
“CONSTITUCIONAL E PENAL. ACESSÓRIOS DE CELULAR APREENDIDOS NO AMBIENTE CARCERÁRIO. FALTA GRAVE CARACTERIZADA. INTELIGÊNCIA AO ART. 50, VII, DA LEI 7.210/84, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI 11. 466/2007. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCIPIO DA RESERVA LEGAL. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE. 1. Pratica infração grave, na forma prevista no art. 50, VII, da Lei 7.210/84, com as alterações introduzidas pela Lei 11.466/2007, o condenado à pena privativa de liberdade que é flagrado na posse de acessórios de aparelhos celulares em unidade prisional. 2.A interpretação extensiva no direito penal é vedada apenas naquelas situações em que se identifica um desvirtuamento na mens legis. 3. A punição imposta ao condenado por falta grave acarreta a perda dos dias remidos, conforme previsto no art. 127 da Lei 7.210/84 e na Súmula Vinculante nº 9, e a conseqüente interrupção do lapso exigido para a progressão de regime. 4. Negar provimento ao recurso.”(STF RHC 106481, Relator (a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 08/02/2011).
Em relação ao método da interpretação teleológica, ao analisar o recurso interposto em face da aludida decisão do TRF- 3º Região, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), encampando entendimento defendido em nossa obra acerca do alcance do termo ” depósito” no delito de evasão de divisas, decidiu:
(…) manutenção de depósito não declarado à repartição federal competente no exterior. Para fins de interpretação do termo “depósito” deve-se considerar o fim a que se destina a norma, pois visa à proteção do Sistema Financeiro Nacional – SFN. A lei não restringiu (não seria melhor a modalidade de) o local de depósito no exterior. Assim, não deve ser considerado apenas o depósito em conta bancária no exterior, mas também o valor depositado em aplicação financeira no exterior, em razão da disponibilidade da moeda e do interesse do SFN(…) Ainda, em manifestação mais recente, a doutrina de Leandro Bastos Nunes que,colacionando o acórdão do Tribunal a quo, entendeu por escorreita uma interpretação teleológica do termo “depósito”, cito (in Evasão de Divisas, 2ª Edição revista e ampliada – Salvador: Juspodivm. 2017. fls. 141/142) “A norma penal faz alusão à manutenção de “depósitos não declarados”. A nosso ver, o legislador, ao tipificar a expressão “depósito’, buscou abarcar todo tipo de investimento que fosse convertido em valor monetário (dinheiro), incluindo ações, cotas de fundo de investimentos, debêntures, entre outros. Nesse sentido, é cediço que, quem faz este tipo de aplicação, tem por escopo transformá-lo em pecúnia, assim que puder, detendo a disponibilidade imediata para seu uso financeiro. A mens legis deve ser efetivada, em virtude da técnica de interpretação sistemática e teleológica, haja vista que a finalidade do legislador foi a de proteger as reservas cambiais. Com efeito, afigura-se intuitivo o fato de que, ainda que as cotas do fundo de investimentos estejam no exterior sem previsão de imediata transferência à conta corrente, a aludida situação possibilita a sua disponibilidade imediata para serem convertidas em pecúnia, conforme os ditames da vontade do seu titular (solicitação de resgate, venda no mercado de ações, etc.). Nesse sentido, a interpretação teleológica é um método de interpretação legal que tem por critério extrair a finalidade da norma. Conforme a respectiva exegese, ao se interpretar um dispositivo legal, deve-se levar em conta as exigências econômicas e sociais, conformando-se aos princípios da justiça e ao bem comum (art. 5º da Lei de introdução às normas do Direito). O elemento teleológico pode ser explicado como uma maneira de desvendar o sentido da lei, descobrindo suas finalidades e objetivos. A palavra “teleologia’ significa “a doutrina acerca das causas finais’: a qual busca explicar as coisas pelos fins a que são destinadas. As finalidades de uma lei devem sofrer alterações ao decorrer dos tempos, em virtude da evolução da sociedade, cabendo ao intérprete revelar as novas finalidades, fazendo-o dentro de um trabalho sério e responsável, com observâncias de princípios do próprio ordenamento jurídico. De outro lado, vale registrar que os depósitos podem ter origem no exterior, ou seja, não é necessária a remessa no Brasil e a posterior manutenção em outro país, podendo, para configurar o delito, incidir, por exemplo, na hipótese da respectiva transferência de uma conta no exterior para outra em outro país. Deve-se incluir no conceito de depósito qualquer tipo de investimento no exterior aplicado no sistema financeiro, tais como, ações, fundos ou cotas de fundos de investimentos (incluindo previdência privada), haja vista o escopo da norma em tutelar o controle das divisas situadas no exterior, abrangendo os respectivos depósitos oriundos de quaisquer tipos de aplicações financeiras, com base na hermenêutica da interpretação sistemática e teleológica.” Portanto, no caso em tela, a suposta aplicação financeira realizada por meio da aquisição de cotas do fundo de investimento Opportunity Fund no exterior e não declarada à autoridade competente preenche a hipótese normativa do art. 22, parágrafo único, parte final, da Lei n. 7.492/86. Ressalte-se que o BACEN, ainda na Circular 3.071 de 2001, já estabelecia que os valores dos ativos em moeda detidos no exterior deveriam ser declarados, conforme art. 1º e art. 2º.
Poder-se-á indagar, somente para fins de eventuais vozes discordantes, de que forma seria possível compatibilizar o presente entendimento com o princípio da legalidade? Nesse ponto, inexiste qualquer limitação ou incoerência, já que estamos diante de hermenêutica adaptativa, evolutiva ou progressiva da norma, que deve ser lida em consonância com a realidade no campo fático, científico e tecnológico, de forma a proteger efetivamente o bem jurídico tutelado (política cambial, controle das reservas cambiais, política econômica, etc).
A crescente utilização de criptoativos para finalidades ilícitas deve ser objeto de atenção por parte do intérprete, sob pena de esvaziamento da proteção do bem jurídico tutelado pela norma penal.
Demais disso, como já registrado, sequer está sendo efetivada a extensão da conceituação do termo ” divisas”.
O artigo 5º da Lei de introdução às normas do direito (LIND), que regula as normas de todo o ordenamento jurídico, corrobora a necessidade de efetivação de hermenêutica consentânea com fatos e valores supervenientes, que enseje a aplicação e interpretação da norma com o fim de atender aos fins sociais e promover o bem comum.
Com o aumento do uso de moeda virtual, a utilização deste instrumento de valor para fins de operacionalização de operação de câmbio ilegal, resultando na aquisição de divisas, poderá configurar o crime de evasão em suas três modalidades (caput do artigo 22 da Lei 7.492/86, evasão- envio previsto no §único, primeira parte, da Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro (LCSF), ou evasão- depósito (última parte do §único da LCSF).
Registre-se que o entendimento se coaduna com o princípio da proporcionalidade, em sua vertente da necessidade de proteção da sociedade (FISCHER), já que a evasão de divisas afronta diretamente o interesse não só do Estado na formulação e controle da política cambial, e sim o de toda a sociedade no que se refere à necessidade de proteção da regularidade da economia nacional e da política econômica.
No mesmo sentido, é o que consta do Comunicado Bacen nº 31.379, de 16 de novembro de 2017:
“(…) 6. É importante ressaltar que as operações com moedas virtuais e com outros instrumentos conexos que impliquem transferências internacionais referenciadas em moedas estrangeiras não afastam a obrigatoriedade de se observar as normas cambiais, em especial a realização de transações exclusivamente por meio de instituições autorizadas pelo Banco Central do Brasil a operar no mercado de câmbio” (Disponível em C:\Users\Usuario\Documents\Comunicado nº 31.379 de 16_11_2017.html. Acesso: 12 de agosto de 2019).
No que se refere à conceituação das criptomoedas, leciona CARDONI:
“(…) essa criptomoeda ainda não foi conceituada pelo ordenamento jurídico brasileiro, não sendo possível a sua equiparação à divisa. Além disso, foi demonstrado que o bitcoin não pode ser considerado uma moeda em razão das suas condições econômicas e também da legislação atual” (CARDONI, p. 61).
Com efeito, as criptomoedas são criptografadas para garantir proteção e segurança, e o aludido valor monetário apenas trafega no universo virtual.
De forma similar a outros tipos de moedas, a criptomoeda pode ser utilizada para aquisição de bens e serviços, mas a sua principal vantagem é o fato de não estar atrelada a um determinado sistema bancário, tendo, ainda, como característica, a possibilidade de transferência via internet de baixo custo, porquanto inexiste a necessidade de pagamento das respectivas taxas inerentes às instituições financeiras tradicionais.
A criptografia de tais moedas é realizada, por intermédio de uma série de códigos dotados de “chaves” de difíceis decodificações, tornando-a menos suscetíveis a invasões, por parte de hackers ou criminosos do mundo cibernético.
Contudo, isso não impede a configuração do eventual crime de lavagem de dinheiro (ocultação e/ou dissimulação de bens ou valores proveniente de infração penal antecedente), quando for comprovada a sua utilização para fins de ocultação ou dissimulação de ganhos oriundos de ilícitos penais.
Nesse ponto, leciona LEDRA RIBEIRO:
“(…)Inobstante a isso, o bitcoin ser considerado como bem imaterial não escusaria os seus operadores de desrespeitar regras referentes ao combate às fraudes e corrupção nos termos da lei 9.613/98. A depender das transações realizadas em bitcoin, por exemplo, as partes podem recair no crime de ocultação de bens, direitos e valores, ao “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”, nos termos do caput do art. 1º da mesma lei (…)”
No mesmo sentido, poder-se-á caracterizar o delito de sonegação fiscal, caso seja comprovada a omissão de declaração de bens ou valores no imposto de renda, resultando na omissão de renda auferida tributável, desde que constituído definitivamente o crédito tributário, por intermédio do lançamento fiscal a cargo da Receita, nos termos da súmula vinculante n.º 24 do Supremo Tribunal Federal.
Em relação à prevenção e repressão à sonegação fiscal, a Receita Federal emitiu um ato normativo, por meio do qual tornou obrigatória a informação na declaração de imposto de renda do referido ativo financeiro, conforme se nota na instrução normativa RFB nº 1.888, de 3 de maio de 2019, a qual institui e disciplinou a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), nos seguintes termos:
“Art. 1º Esta Instrução Normativa institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).
(…)
Art. 6º Fica obrigada à prestação das informações a que se refere o art. 1º:
I – a exchange de criptoativos domiciliada para fins tributários no Brasil;
II – a pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil quando:
a) as operações forem realizadas em exchange domiciliada no exterior; ou
b) as operações não forem realizadas em exchange.
§ 1º No caso previsto no inciso II do caput, as informações deverão ser prestadas sempre que o valor mensal das operações, isolado ou conjuntamente, ultrapassar R$ 30.000,00 (trinta mil reais)”
Relativamente à submissão do lucro das transações à tributação pelo fisco, preleciona REVOREDO:
“A tributação dos ganhos obtidos com a alienação de criptomoedas Segundo a própria Receita Federal (tópico 607 do Documento de Perguntas e Respostas): “Os ganhos obtidos com a alienação de moedas virtuais (bitcoins, por exemplo) cujo total alienado no mês seja superior a R$ 35.000,00 são tributados, a título de ganho de capital, à alíquota de 15%, e o recolhimento do imposto sobre a renda deve ser feito até o último dia útil do mês seguinte ao da transação”. Para isso, o contribuinte deve informar no GCAP o custo de aquisição e o valor de venda. O pagamento do DARF é até o final do mês subsequente”
Como se nota, a orientação da Receita Federal é no sentido de que a referida criptomoeda configura uma espécie de ativo financeiro, razão pela qual seria exigível o recolhimento de imposto sobre a renda a título de ganho de capital (https://www.conjur.com.br/2019-abr-15/opiniao-tributacao-operações-criptomoedas).
O Banco Central (BACEN) já se pronunciou em algumas oportunidades, manifestando o entendimento de que as criptomoedas ainda não foram regulamentadas, porquanto não seriam moedas fiduciárias, por não possuírem natureza de meio de curso forçado para fins de transações financeiras.
De outro lado, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, em março de 2020, a competência da Justiça Federal para julgar fatos relacionados à captação de recursos atrelados à especulação no mercado de criptomoedas, por intermédio de oferta pública de contrato coletivo de investimento com bitcoin, sem prévio registro de emissão na Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Segundo o respectivo julgado, cuja ementa segue abaixo transcrita, a oferta pública de contrato coletivo de investimento configura valor mobiliário previsto na Lei 6.385/76, submetendo os fatos às disposições da lei dos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei 7.492/1986), atraindo, por conseguinte, a competência da Justiça Federal, in verbis:
HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO EGYPTO. SUPOSTA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA. CASO QUE OSTENTA CONTORNOS DISTINTOS DO CC N. 161.123/SP (TERCEIRA SEÇÃO). DENÚNCIA OFERTADA, NA QUAL É NARRADA A EFETIVA OFERTA DE CONTRATO COLETIVO DE INVESTIMENTO ATRELADO À ESPECULAÇÃO NO MERCADO DE CRIPTOMOEDA. VALOR MOBILIÁRIO (ART 2º, IX, DA LEI N. 6.385/1976).INCIDÊNCIA DOS CRIMES PREVISTOS NA LEI N. 7.492/1986. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL (ART. 26 DA LEI N. 7.492/1986), INCLUSIVE PARA PROCESSAR OS DELITOS CONEXOS (SÚMULA 122/STJ). 1-A Terceira Seção desta Corte decidiu que a operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976 (CC n. 161.123/SP, DJe 5/12/2018).2- O incidente referenciado foi instaurado em inquérito (não havia denúncia formalizada) e a competência da Justiça estadual foi declarada exclusivamente considerando os indícios colhidos até a instauração do conflito, bem como o dissenso verificado entre os Juízes envolvidos, sendo que nenhum deles cogitou que o contrato celebrado entre o investigado e as vítimas consubstanciaria um contrato de investimento coletivo. 3. O caso dos autos não guarda similitude com o precedente, pois já há denúncia ofertada, na qual foi descrita e devidamente delineada a conduta do paciente e dos demais corréus no sentido de oferecer contrato de investimento coletivo, sem prévio registro de emissão na autoridade competente. 4.- Se a denúncia imputa a efetiva oferta pública de contrato de investimento coletivo (sem prévio registro), não há dúvida de que incide as disposições contidas na Lei n. 7.492/1986, notadamente porque essa espécie de contrato consubstancia valor mobiliário, nos termos do art. 2º, IX, da Lei n. 6.385/1976. 5- Interpretação consentânea com o órgão regulador (CVM), que, em situações análogas, nas quais há oferta de contrato de investimento (sem registro prévio) vinculado à especulação no mercado de criptomoedas, tem alertado no sentido da irregularidade, por se tratar de espécie de contrato de investimento coletivo. 6- Considerando os fatos narrados na denúncia, especialmente os crimes tipificados nos arts. 4º, 5º, 7º, II, e 16, todos da Lei n. 7.492/1986, é competente o Juízo Federal para processar a ação penal (art. 26 da Lei n. 7.492/1986), inclusive no que se refere às infrações conexas, por força do entendimento firmado no Enunciado Sumular n. 122/STJ.7- Ordem denegada (STJ, 6ª Turma, HC 530563 / RS,Dje 12/03/2020)
CONCLUSÃO
Em relação ao delitos de sonegação fiscal, evasão de divisas (na modalidade prevista no caput do art. 22 da Lei 7.492/86) e lavagem de dinheiro, existirá a possibilidade de configuração, em tese, de ilicitude no uso do bitcoin, se houver comprovação dos requisitos da respectiva atividade criminosa, devendo ser criteriosamente analisado no caso concreto. (artigo 3ª do comunicado Bacen n.º 31.379, de 16 de novembro de 2017).
De outra parte, ainda que não regulamentado pelo BACEN e/ou CVM,a utilização do bitcoin como meio para realização de operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira), não autorizada, com o fim de promover a evasão de divisas do país, poderá configurar, em tese, os delitos de evasão de divisas previsto no caput do art. 22 da Lei n.º 7.492/86 ou as modalidades de evasão-envio (intermédio da utilização da técnica do “bitcoin-cabo”) e evasão- depósito ( manutenção de divisas em contas no exterior não declaradas ao Bacen, quando oriundas da utilização da negociação de bitcoin como meio para aquisição de moeda estrangeira).
REFERÊNCIAS:
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* O autor é procurador da República, especialista em direito penal e processo penal, professor em cursos de atualização jurídica para servidores do MPF (Ministério Público Federal), articulista, palestrante, autor da obra “evasão de divisas”(editora juspodivm).