Com o advento do CPC de 2015, alunos e profissionais do Direito passaram a questionar qual é a forma correta para se endereçar uma petição, seja uma inicial, seja uma petição intercorrente.
A dúvida surgiu em decorrência da redação dada ao artigo 319, I, do CPC de 2015 que, diferentemente do código anterior, ao tratar dos requisitos da petição inicial, informa que a peça deve indicar o “o juízo” a que é dirigida. No CPC de 1973, a redação do artigo 282, I, que tratava do mesmo tema, indicava que a peça deveria indicar o “juiz”[1] a que era dirigida.
A questão, apesar de singela, gera muita discussão, tanto na academia quanto no cotidiano forense. É certo que não se cogita a possibilidade de uma peça não ser aceita em decorrência do endereçamento ser feito ao “juiz” ao invés do “juízo”, desde que observadas as regras de competência em razão da função, pessoa, lugar e matéria. No entanto, a técnica própria do Direito demanda uma só forma correta, no caso, concebida pela lei. Para efeitos didáticos, a precisão terminológica é ainda maior.
Em suma, ainda que você prefira uma ou outra forma, há uma só maneira de redigir corretamente e é isto que me proponho a analisar nesse texto. Mesmo porque alunos e profissionais são também avaliados pela qualidade do texto que produzem.
Para mim nunca existiram dúvidas quanto à nova diretriz ditada pelo CPC de 2015. Desde que entrou em vigor, passei a endereçar as peças ao “juízo”[2] competente, com base em algumas convicções próprias.
A primeira delas, e mais óbvia, é que, se não quisesse o legislador mudar a forma até então utilizada, teria reproduzido no novo código o mesmo conteúdo do código anterior, e assim não o fez. Como se diz habitualmente, “a lei não contém palavra inúteis”. A interpretação aqui é literal.
A segunda razão, decorre da interpretação lógica. Quando se endereça uma peça, não se pretende encaminhá-la a um “sujeito determinado”[3], um magistrado em específico, mas ao órgão jurisdicional competente. Até porque, em alguns casos, temos vários magistrados atuando em um “juízo” e não pretendemos (e nem podemos, face ao princípio do Juiz Natural e da Impessoalidade) que a peça seja apreciada por este ou aquele magistrado e, sim, pelo “juízo”, onde atuam os magistrados.
A terceira diretriz que orienta minha convicção é pautada na interpretação sociológica que, em outras palavras, poderia também ser chamada de “politicamente correta”. Isto porque a forma prevista no CPC de 1973 não prestigiava a diversidade de gênero. A petição deveria sempre dirigida ao “juiz”, ainda que pudesse ser recebida por uma magistrada entre as tantas que abrilhantam, ainda de forma desproporcional[4], a magistratura brasileira[5].
A quarta e última razão está relacionada à linguística. É redundante e imprecisa, quiçá servil, a repetição de tratamentos utilizada no endereçamento da peça nos moldes ditados pelo código anterior. Se o objetivo é primar pela “clareza, precisão e concisão”[6] do texto jurídico assim devemos fazer desde a primeira frase.
Em suma, a modificação trazida pelo CPC de 2015 é impessoal e objetiva, e, creio, tenha sido esta a mens legis, ou seja, a vontade do legislador. De forma deliberada procurou adequar a terminologia tornando-a técnica e contemporânea. O objetivo foi, claramente, de corrigir as incongruências apontadas, distinguindo, enfim, a figura do “juízo”, assim entendido como órgão jurisdicional, da figura do “juiz” ou “juíza”, que nele atua.
E nem se diga que a mudança realizada tenha sido feita em desprestígio à magistratura. Esta continua a gozar da deferência que lhe é própria, tal como a advocacia[7], e ainda das garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios. Juízos podem ser extintos e terem a competência modificada. Os magistrados não.
Por apreço à cientificidade, fiz uma breve revisão e encontrei amparo à minha conclusão nas ponderações de Nelson Nery Jr.[8], Fredie Didier Jr.[9], Daniel Amorim Assumpção Neves[10], José Rogério Cruz e Tucci[11], Alexandre Freitas Câmara[12], Elpídio Donizetti[13], entre outros.
Dentre os autores citados. destaco as ponderações feitas pelo Professor Daniel Amorim Assumpção Neves:
Há melhora na redação do dispositivo quando comparado com o inciso I do art. 282 do CPC/1973, que previa o endereçamento para "juiz ou tribunal". Como a indicação jamais será pessoal, mesmo quando a petição inicial for "distribuída por dependência, ou ainda em comarcas de vara única com somente um juiz, exigindo-se a indicação do juízo, e não do juiz (consequência do caráter impessoal do Poder Judiciário), a nova redação deve ser elogiada.
Ainda que seja possível identificar o juiz que receberá a demanda, não será ele indicado no endereçamento, e sim o juízo que representa'. Mesmo sabendo-se que será exatamente aquele juiz específico que receberá a petição inicial distribuída
por dependência, não é correta a indicação pessoal do juiz. Apesar de incorreto do ponto de vista técnico, a indicação pessoal do juiz nos casos em que isso for possível - distribuição por dependência e comarcas com apenas um juiz - desde que acompanhada pela indicação do juízo, gera mera irregularidade, não produzindo efeitos significativos no processo.
Quando analisamos a questão sob o enfoque do Exame de Ordem, verificamos que, no padrão de respostas apresentado pela FGV para as provas da segunda fase das áreas de Direito Civil e Trabalho, aplicadas na XXX edição do certame, a menção ali feita é ao “juízo”. O padrão de resposta da prova de Direito do Trabalho é mais específico e informa que o “examinando deverá formular uma petição Inicial de reclamação trabalhista dirigida “ao juízo da Vara do Trabalho de Parauapebas/PA”.
Concordo em parte com o Professor Darlan Barroso[14], no sentido de que a indicação do “juiz”, ou do “juízo”, tem pouca diferença na prática, tendo em vista que, endereçada a um ou a outro, a peça chegará ao seu destinatário. Discordo, respeitosamente, da Professora Fernanda Tartuce[15], que sinaliza, em nota de rodapé[16] de sua obra, que a forma contemplada pela legislação anterior está consagrada pelo uso[17].
Concluindo, preservando o estilo próprio de quem a redige, a peça deve primar pela tecnicidade a fim de proporcionar uma melhora na já questionável qualidade dos textos produzidos. Além disso, ainda que se admita a utilização de “modelinhos” pré-concebidos, as peças devem passar por uma periódica atualização dos aspectos jurídicos e linguísticos, sob pena de elaborarmos textos compostos por termos que vão do arcaico ao senso comum, e cuja leitura demanda mais da intuição do que da interpretação.
[1] Anteriormente utilizava-se como endereçamento da peça, por exemplo: “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da ___ Vara Cível de Vitória – ES” ou “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz da ___ Vara do Trabalho de Vitória – ES”
[2] “Ao Juízo da ___ Vara Cível de Vitória – ES” ou “Ao Juízo da ___ Vara do Trabalho de Vitória – ES”.
[3] Do ponto de vista semântico.
[4] Segundo pesquisa realizada pelo Observatório de Estratégia da Justiça Federal apenas 32,05% são do sexo feminino.
[5] Com base nessa distorção sempre sugeri aos meus alunos que ao fazerem o endereçamento da peça colocasse a letra “a” após às expressões que pudessem ser lidas no feminino. “Excelentíssimo(a) Senhor(a) Juiz(a) de Direito da ___ Vara Cível de Vitória – ES” ou “Excelentíssimo(a) Senhor(a) Juiz(a) da ___ Vara do Trabalho de Vitória – ES”
[6] Assim ensinava o professor Wagner Giglio ao tratar das peculiaridades do texto jurídico em sua obra (não mais editada) “Curso de Direito Processual do Trabalho”
[7] A este respeito a Lei 8.906/94, em seu artigo 6º, estabelece que “Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos”.
[8] Código de processo civil comentado. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 853.
[9] Curso de direito processual civil: execução. 7. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 161.
[10] Manual de direito Processual civil. 10. ed. rev., ampl. Salvador: Ed. JusPodivm, 2018. p. 602.
[11] Comentários ao código de processo civil – volume VII (arts. 318-368). 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017. p. 62.
[12] O novo processo civil brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2018. p. 219.
[13] O novo código de processo civil comentado. 3. ed. rev., atual., ampl. São Paulo: Atlas, 2018. p. 302
[14] http://www.darlanbarroso.com.br/site/juiz-ou-juizo-isso-faz-alguma-diferenca-pratica-na-elaboracao-das-pecas-processuais/
[15] Manual de prática civil. 14. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018
[16] O teor da nota é o seguinte: “Considerando que o art. 319, I, do CPC/2015 faz menção a juízo e não juiz, há quem afirme que o endereçamento correto seria para o juízo, e não mais para o juiz. Além de estar consagrada pelo uso a forma a “juiz”, soa desnecessário o ajuste aos exatos termos do Novo Código”.
[17] De forma generosa, a professora Fernanda Tartuce respondeu a mensagem que lhe encaminhe por meio de rede social onde acrescentou que o endereçamento a uma pessoa, em sua perspectiva, humaniza a experiência do processo.