3. Princípios republicado de governo e da proporcionalidade
Na Argentina, o chamado princípio republicano de governo tem grande prestígio doutrinário, pois pode ser inferido do art. 1º da Constituição da Nação Argentina (CNA) e impõe moderação, proporcionalidade nas medidas coercitivas a serem adotadas pelo Estado e que possam atingir a população. Sobre esse princípio, em minha tese de doutoramento, sustentei:
Na linha de linguagem utilizada nesta tese, é mais um critério norteador do Direito, assim como o chamado princípio da proporcionalidade. Tais critérios foram reunidos em um único item por haver semelhanças entre eles, a partir da pequena referência a eles na literatura especializada em processo penal.[22]
Zaffaroni trata o princípio republicano de governo como parâmetro para limitar o poder punitivo do Estado.[23] Não pode ser racional o descompasso existente, visto que a condução de veículo automotor sob o efeito de psicotrópico lícito terá a mesma pena do crime de pilotar aeronave ou embarcação, estando embriagado por droga ilícita.
No que se refere à matéria jurídico-penal, o princípio republicano de governo é mencionado, normalmente, em conexão com o direito material, e assim se afirma:
Da mesma forma, os princípios da proporcionalidade, ultima ratio, proibição do excesso e da racionalidade, derivados necessários do princípio republicano que emerge do art. 1º da Carta Magna, juntamente com o princípio da lesividade, dão origem ao princípio da insignificância como instrumento jurídico para sua efetiva proteção.[24]
O princípio republicano de governo é inferido do art. 1º do CNA, que dispõe: “A Nação Argentina adota para seu governo a forma representativa, republicana, federal, nos termos desta Constituição”. Além disso, o mesmo princípio pode ser extraído do CFB, uma vez que afirma:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;-
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Diz-se que o princípio republicano de governo é um conceito de muitos significados, derivado da ideia de que todas as pessoas da cidade são iguais, que os agentes políticos e todos os demais agentes públicos têm responsabilidades e que a ação do Estado será racional (proporcional). Não se olvide que Zaffaroni et al. vinculam o princípio da proporcionalidade ao princípio republicano.[25]
Por outro lado, o denominado princípio da proporcionalidade, em nossa opinião, tem outras denominações, tendo-as exposto anteriormente:
Essa regra é a que tem mais nomes, sendo chamada por alguns autores de princípio da proporcionalidade, por outros de princípio da razoabilidade. Ainda há quem diga que é o princípio da racionalidade e, por fim, quem o chame de princípio da proibição do excesso. Por Zaffaroni é denominado de princípio da racionalidade, o que, segundo o autor, requer certo vínculo equitativo entre o crime e sua consequência jurídica.[26] De fato, mesmo para os adeptos de teorias absolutas, para quem a pena é concebida apenas em seu aspecto retributivo, a expressão máxima da justiça reside na lei da retaliação, ou seja, "olho por olho, dente por dente".
Há quem prefira falar do princípio da proporcionalidade, que não deve ser considerado apenas no momento da liminar ou da aplicação da sentença, se estende até o momento de sua execução.[27] Outros preferem falar do princípio da razoabilidade, mas há quem queira distinguir a razoabilidade da racionalidade. Belmiro Pedro Welter, partindo de premissas erradas, cita Lênio Luiz Streck em um artigo com uma frase que leva a crer que têm significados diversos.[28] O fato é que os juristas, como base de seus discursos que pretendem violar as leis, inventam princípios e a partir desses princípios ditam más decisões ou constroem teses absurdas, mas lhes dão aparência de adaptação ao que se propõe.[29]
Digo que a proporcionalidade constitui uma proibição de excesso, até porque Canotilho informa que esse é o princípio da proporcionalidade em sentido amplo. E, citando Alexy, Fábio Henrique F. Garcia afirma:
A aplicação da proporcionalidade, segundo Alexy (2008, nota 84), compreende uma estrutura racional bem definida, por meio da observância de três regras que devem estruturar a fala do operador. São eles: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.[30]
Novamente se retorna à ideia da existência de um conceito de plurissignificação, o que mostra a proximidade da proporcionalidade com o princípio republicano, aquele dele resultante.
Sobre o princípio da proporcionalidade, Paulo Bonavides ensina:
Mas é na qualidade de princípio constitucional ou princípio geral de direito, capaz de proteger o cidadão e toda a sociedade da vontade do poder, que é necessário reconhecê-lo já implícito e, portanto, positivo no nosso direito constitucional.
Assim, como já demonstramos, princípio geral de direito, o princípio da proporcionalidade não sofre prejuízo sem prejuízo irreparável à natureza e integridade do sistema constitucional.
A lesão ao princípio é sem dúvida a mais grave das inconstitucionalidades, porque sem princípio não há ordem constitucional e sem ordem constitucional não há garantia das liberdades cujo exercício só é possível fora do âmbito da discrição e dos poderes absolutos.
Quem atropela um princípio constitucional, de grau hierárquico superior, viola o fundamento de todo o ordenamento jurídico. A construção desta, com base na vontade constituinte legítima, consagra o uso consensual de uma competência soberana de primeiro grau.[31]
Em relação ao processo penal, a lição de Alexy é importante para esclarecer que o processo penal só se justificará se for movido por um procedimento adequado e se for comprovada a necessidade de ação, com eficácia dos atos processuais proporcionais ao crime a ser verificado no processo.
Falcone Garcia mantém:
Razoabilidade é um termo com múltiplos sentidos, dentro dos quais Ávila (2004, p. 103) destaca três, mais diretamente relacionados ao discurso da hermenêutica jurídica:
Em primeiro lugar, a razoabilidade é usada como uma diretriz que requer a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, ou mostrando de que perspectiva a norma deve ser aplicada, ou indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, parte para se encaixar na regra geral. Segundo, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige um vínculo das normas jurídicas com o mundo a que se referem, seja por reivindicar a existência de um suporte empírico e adequado para qualquer ato jurídico, seja por exigir uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende alcançar. Terceiro, a razoabilidade é usada como uma diretriz que requer a relação de equivalência entre duas grandezas.
Ávila tenta, por meio dessas digressões, estabelecer a diferença fundamental entre razoabilidade e proporcionalidade, observando que esta se refere a uma relação meio-fim, caracterizada por uma perspectiva de causalidade (tal meio seria adequado e necessário para atingir esse fim? Em outras palavras, tal fim seria consequência da adoção de tal meio?) Enquanto na razoabilidade a relação a ser analisada é de critério-medida: “uma qualidade não conduz à medida, mas é um critério intrínseco a ela (Ávila , 2004, p. 111)".[32]
Por mais que você queira apresentar distinções, vejo proporcionalidade e razoabilidade no mesmo plano da racionalidade, usando todas elas como critérios diretivos contundentes do Direito.
Se dissermos, em relação ao princípio da racionalidade, que ele exigirá que o Direito seja fruto de uma elaboração racional, isto é, de natureza científica, sendo suas expressões normativas dotadas de uma estrutura racional, como lei, ordenamento e decisão, poderemos encontrar a distinção entre racionalidade e razoabilidade. No entanto, essa não é a nossa posição, cabendo afirmar:
Existe um princípio geral de racionalidade que deriva da Constituição ou do princípio republicano, que exige certo vínculo institucional entre o crime e sua consequência jurídica, mas esse princípio também está intimamente ligado ao princípio da humanidade...[33]
O exposto leva a entender o princípio republicano de governo como o princípio norteador de outros, sendo que, diante da impossibilidade de “demonstrar a racionalidade da pena, os órgãos judiciais devem, pelo menos, demonstrar que o custo em direitos de suspensão do conflito se mantém uma proporcionalidade mínima com o grau da lesão que causou”. É em função de tudo isso que entendo fundamental ter em vista que os Juízes deixarem de aplicar, às vezes, leis violadoras da proporcionalidade será respeitar direitos fundamentais.
3. CONCLUSÃO
Desde o início, definimos o objeto central do presente estudo, a saber: art. 39 da Lei n. 11.343/2006, bem como o método bibliográfico, em uma pesquisa qualitativa, a fim elucidar a irracionalidade do sistema normativo pátrio acerca da condução de veículos em vias terrestres, de embarcações e de aeronaves.
Discorremos de dispositivos legislativos existentes, passando pelos crimes de perigo comum do código penal. A análise foi sucinta, haja vista que o ponto central era apenas evidenciar, dentro do sistema normativo, todas as possibilidades de tratamos como crimes ou contravenções, a condução de veículos, embarcações e aeronaves.
Tratamos do resultado no crime de perigo comum, abordando o art. 258 do Código Penal, enfrentando, inclusive, da tentativa do crime de perigo comum majorado pelo resultado lesão grave ou morte.
Do Código Penal passamos à Lei das Contravenções Penais, discorrendo rapidamente sobre o seu art. 34, que pode alcançar o motorista em via pública e o piloto de embarcação que causar perigo determinado de dano por estar embriagado.
Então, passamos à Lei n. 9.503/1997, transcrevendo o seu art. 306 e fazendo brevíssimos comentários para evidenciar a desproporção do sistema normativo, antes do advento da Lei n. 11.343/2006. Daí termos passado diretamente ao estudo desta última lei, transcrevendo o seu art. 39.
Apresentamos o nosso equívoco doutrinário ao sugerir que a embriaguez por psicotrópico lícito seria suficiente para caracterizar o crime do art. 39 da Lei 11.343/2006. Tínhamos boa intenção ao fazer a proposta. Mas, estávamos certos de que a nossa posição não poderia prosperar. Pois, para caracterização do crime de qualquer dos crimes da Lei n. 11.343/2006, a embriaguez deverá estar catalogada como entorpecente ou psicotrópica na Portaria SVS/MS n. 344/1998.
Afirmamos que o bem juridicamente protegido é a incolumidade pública. Também, que não incumbe ao intérprete preencher lacunas da lei, criando rigores jurídico-criminais. Daí persistir a lacuna legislativa violadora da necessária racionalidade do sistema normativo pátrio.
Demonstramos que a incoerência e a lacuna legislativa se mantém, uma vez que a condução de veículo sob o efeito de álcool será crime, enquanto que a condução de embarcação sob o mesmo efeito será contravenção e de aeronave será atípica.
Discorremos sobre os princípios republicano de governo e da proporcionalidade. Dissemos o significado de cada um deles, inclusive fazendo a relação entre eles, a fim de demonstrar ser grave a violação ao princípio da formalidade, bem como a importância do princípio repúblicado para o Direito Criminal em um Estado Democrático.
Temos uma situação de inconstitucionalidade, em face da violação do princípio da proporcionalidade, sendo essencial a iniciativa legislativa para corrigir a situação. Todavia, não se entenda que estamos propondo novas leis cvriminais mais severas, apenas desejamos tratamentos mais racionais às hipóteses de condutação de veículos em vias terrestres, de embarcações e aeronaves.