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Venda de coisa alheia

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3 VENDA DE COISA ALHEIA

3.1 Considerações preliminares

Este é o ponto central do presente trabalho, que tem como objetivo fazer um estudo a respeito desta figura jurídica pouco tratada doutrinariamente.

Em um primeiro momento, pode-se pensar ser inconcebível tal hipótese. Entretanto, após uma reflexão mais profunda, conclui-se que a venda de coisa que não pertence ao vendedor é possível e até mesmo comum.

O próprio Código Civil prevê esta possibilidade, em seu art. 1.268, o qual estabelece que: "Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade (...)". [163]

Para melhor esclarecimento sobre o assunto, será feito um estudo acerca dos diferentes posicionamentos encontrados na doutrina, para, ao final, concluirmos com base no entendimento predominante, ou que entendermos mais razoável.

Iniciaremos, assim, explicitando os fundamentos nos quais se baseiam os autores que defendem a nulidade da venda de coisa alheia, para, após, passarmos às teses da anulabilidade e da validade ou ineficácia.

3.2 Nulidade

Defendendo a primeira corrente encontramos Sílvio Rodrigues e Clóvis Beviláqua. Importante salientar que este posicionamento é alvo de muitas críticas da doutrina, pois a nulidade não é passível de convalidação, diferentemente do que pretendem os autores que a sustentam.

Em decisão de 1955, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser a venda de coisa alheia nula, tangenciando até mesmo a inexistência do negócio, como se vê:

Recurso Extraordinário. Venda a non domino é nula de pleno direito e não simplesmente anulável. Venda dessa espécie é como inexistente, não se dá a transmissão. Há falta de consentimento do verdadeiro dono. [164]

Sílvio Rodrigues afirma que "Em tese, a venda de coisa alheia é nula, pois ninguém pode alienar o que não é seu". O autor, contudo, admite a convalidação do negócio, desde que o vendedor adquira a propriedade da coisa antes que o comprador sofra as conseqüências da evicção, fazendo referência aos ensinamentos de M. I. Carvalho de Mendonça. [165]

No mesmo sentido posiciona-se Clóvis Beviláqua, o qual ensina que "O objecto vendido deve ser proprio do alienante ou de alguem que o haja autorizado a vendel-o". Em outra passagem, diz o autor: "Perante a legislação patria, a venda de coisa alheia é nulla, tendo o comprador de bôa fé acção para haver perdas e damnos". (sic) [166]

Clóvis Beviláqua compartilha do entendimento de que será válida a venda se o vendedor obtiver a propriedade da coisa ou se o proprietário ratificar a venda, porém restringe esta convalidação à venda de bens móveis alheios. [167]

No sentido da nulidade da venda encontra-se a seguinte decisão, também provinda do Supremo Tribunal Federal, datada de 1973:

Prescrição. Venda "a non domino". É perfeitamente razoável a interpretação segundo a qual se rege pela prescrição do art. 179, e não pelo art. 178 parágrafo 9, v, "b", do Código Civil, a da ação de indenização contra quem vendeu coisa que lhe não pertencia. O caso é de nulidade do art. 145, II, do Código Civil, e não de anulabilidade por dolo ou simulação. (Grifou-se). [168]

Registre-se que o artigo 145, inciso II, do Código Civil, mencionado na decisão supra, diz respeito ao Código de 1916. Este dispositivo determinava os casos de nulidade de atos jurídicos, sendo que o inciso referido incluía as hipóteses em que o objeto fosse ilícito ou impossível. Todavia, como já vimos, não se pode afirmar que determinado bem é ilícito ou impossível simplesmente por ser de propriedade de outra pessoa que não o vendedor.

Salienta-se, ainda, que, em seu voto, o Ministro Relator da decisão acima afirmou, em consonância com os posicionamentos antes descritos, que "Certamente, a venda a non domino pode convalidar-se pela ulterior aquisição da coisa pelo vendedor". [169]

3.3 Anulabilidade

Também sustentando a possibilidade de convalidação, porém classificando o negócio como anulável, encontramos Caio Mário, o qual justifica seu posicionamento na impossibilidade de transferência do bem ao comprador. Vejamos:

Não basta que a coisa seja disponível. É mister que, na espécie concreta, possa ela ser transferida ao comprador. E em duas hipóteses não o poderá ser.

(...).

A segunda ocorre quando a coisa não pertence ao vendedor mas a terceiro. A compra e venda motiva a transmissão do domínio, e, como ninguém pode transferir a outrem direito de que não seja titular (‘nemo plus iuris ad alium tranferre potest quam ipse habet’), o adquirente a non domino realiza um ato portador de defeito de origem. [170]

O autor tece críticas à tese da nulidade, fundamentando seu entendimento de forma semelhante, como se vê da seguinte passagem:

Na verdade, se o alienante estiver de boa-fé, e ulteriormente vier a adquirir a propriedade da coisa que vendeu, revalida-se a transferência, e retroage o efeito da tradição ao momento em que se efetuou (Código Civil, art. 1.268, § 1º); (...). Daí sustentarmos a anulabilidade do contrato. Não nos parece deva compadecer-se com os princípios a definição do defeito como nulidade, ainda com a ressalva feita por Carvalho de Mendonça de que subsistirá se o vendedor adquire a coisa antes da evicção, salvo se se tratar de objetos furtados, porque este efeito mitigado não é o que decorre da nulidade do ato. [171]

A convalidação também é mencionada nos decisórios do Supremo Tribunal Federal. Vejamos:

Venda a non domino não se pode contestar que a sua convalidação se opere, se o alienante adquire o domínio da coisa alienada, ainda que seja depois do ajuizamento da ação em que se pleiteia a nulidade do negócio. Recurso conhecido e provido. (Grifou-se). [172]

3.4 Ineficácia

A corrente predominante afirma que o negócio é ineficaz, sendo existente e válido, corrente a qual se filia a maior parte da doutrina, como Serpa Lopes, Eduardo Espínola, J. X. Carvalho de Mendonça, Pontes de Miranda e Orlando Gomes. Cumpre transcrever o seguinte trecho, de autoria do primeiro doutrinador:

A verdadeira doutrina está nos que sustentam a validade da compra e venda de coisa alheia. Desde que se crie pura e simplesmente uma simples obrigação pessoal, nada há de contra-senso no se vender o que pertença a terceiro, porque, com a venda, o vendedor assume, implicitamente, a obrigação de adquirir a coisa, objeto do contrato. [173]

Abgar Soriano é esclarecedor ao justificar a validade do contrato, mencionando que, de acordo com o direito brasileiro, a venda de coisa alheia é perfeitamente legítima. Ressalta que a coisa vendida só passa ao poder do comprador pela tradição, sendo que, com o contrato, o vendedor apenas assume a obrigação de adquirir a coisa. Esclarece o doutrinador, ainda, que, não conseguindo adquirir o objeto da venda, o vendedor será obrigado a indenizar perdas e danos ao comprador, restando o direito de reivindicação ao verdadeiro proprietário caso o objeto esteja em poder de terceiro. [174]

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou neste sentido:

A venda a non domino não é nula de pleno direito, nem anulável. É negócio condicional. Inexiste com respeito ao "verus dominus", se não a convalida sua aveniência posterior, ou a aquisição pelo outorgante, ou se não ocorreu usucapião. (Grifou-se). [175]

No mesmo sentido, Orlando Gomes assim ensina:

Parece absurda a venda de coisa alheia, pois, intuitivamente, a coisa vendida deve pertencer ao vendedor. Uma vez, porém, que pelo contrato, o vendedor se obriga, tão-só, a transferir a propriedade da coisa, nada obsta que efetue a venda de bem que ainda não lhe pertence; se consegue adquiri-lo para fazer a entrega prometida, cumprirá especificamente a obrigação; caso contrário, a venda resolve-se em perdas e danos. A venda de coisa alheia não é nula, nem anulável, mas simplesmente ineficaz. [176]

Continua o autor, fazendo distinção entre a venda de coisa alheia e a entrega de coisa de outrem. Enfatiza que esta última importa em transferência de domínio, pois há a efetiva tradição, o que resulta na responsabilidade do vendedor pela evicção. Por outro lado, na venda de coisa alheia a tradição se revalida com o domínio superveniente do alienante. [177]

Ocorre que, também na venda de coisa alheia pode acontecer o fenômeno jurídico da evicção, tendo em vista a possibilidade de o alienante entregar a coisa mesmo sem ter a propriedade. Se o vendedor adquire a propriedade antes da transferência do domínio ao comprador, o contrato de compra e venda que tenha por objeto coisa alheia se revalida automaticamente; não há erros ou vícios a reclamar. Porém, se o vendedor transferiu o domínio sem ter adquirido a propriedade, pode surgir a figura da evicção. Orlando Gomes explica:

A evicção é a garantia própria dos contratos comutativos que criam a obrigação de transferir o domínio de determinada coisa. Deriva do princípio segundo o qual o alienante tem o dever de garantir ao adquirente a posse justa da coisa transmitida, defendendo-a de pretensões de terceiros quanto ao seu domínio. É um fenômeno próprio da venda de coisa alheia, como diz Mirabelli. [178]

Continua, ensinando que a evicção se dá quando o adquirente perde a propriedade com base em sentença judicial que favorece o antigo proprietário. Cumpre transcrever o seguinte julgado para melhor vizualização:

Apelação cível - contrato de compra e venda - pedido de rescisão cumulada com perdas e danos - veículo apreendido pela autoridade policial por ter sido objeto de furto - evicção (CC, art. 1.107) - falsa queixa de furto - nulidade do ato de apreensão - impossibilidade jurídica do pedido - extinção do processo de ofício (matéria de ordem pública) sem julgamento do mérito por carência de ação (CPC, art. 267, VI). A evicção é caracterizada pela perda da coisa por motivo jurídico anterior que justifique o reconhecimento de ser o bem de propriedade alheia. Neste caso o artigo 1.107 do Código Civil resguarda o direito de evicção ao adquirente, em face da denúncia de furto. O desapossamento praticado pela policia, por óbvio, deve ser legítimo. se a notícia do furto é reconhecidamente falsa, o ato de apreensão nela baseado é flagrantemente nulo. Assim, competirá ao autor ou aquele em cujo nome o veículo permaneceu por último, antes, tomar as medidas necessárias à defesa do seu direito de propriedade, pois somente depois de constatada a legalidade e legitimidade do ato de apreensão é que poderá exercitar o direito de evicção. (Grifou-se). [179]

Eduardo Espínola ensina que o sistema adotado pelo nosso ordenamento admite a venda de coisa que, no momento do ato, não pertença ao vendedor. Salienta, entretanto, que, caso este não venha a ser proprietário da coisa para transferi-la ao adquirente, resta a garantia da evicção, no mesmo sentido dos pensamentos de Orlando Gomes. [180]

Vejamos, então, algumas possibilidades de venda de coisa alheia:

Maria vende a José uma bicicleta. Para tanto, celebram um contrato de compra e venda, sendo que Maria promete entregar o bem no dia seguinte, mas não entrega, pois a bicicleta contratada pertencia a sua vizinha. Maria terá que pagar perdas e danos a José, pois não adimpliu sua obrigação. José ficará sem o bem, e a vizinha de Maria, proprietária da bicicleta, não sofrerá qualquer prejuízo.

Também pode acontecer de Maria entregar a bicicleta mesmo sem ter a propriedade, pedindo emprestada para sua vizinha, por exemplo. Neste caso, ocorre a figura da evicção, pois havia um direito melhor e anterior do que o do adquirente. José poderá reclamar perdas e danos a Maria, mas não terá direito a permanecer com o bem. A vizinha de Maria, verdadeira proprietária, poderá reaver sua bicicleta de quem a detenha, seja José ou outra pessoa, mesmo que de boa-fé.

Outra situação plausível é se Maria adquirisse a bicicleta para entregá-la a José. Neste caso, não haveria qualquer problema a ser resolvido. Vejamos, então, um caso real – com pequenas alterações, feitas com a finalidade de simplificar o entendimento – encontrado na jurisprudência do Tribunal de Justiça deste Estado: [181]

O caso a ser comentado é típico de venda a non domino, disciplinado pelo nosso Código Civil, em que uma pessoa contrata com outra a venda de um bem antes de adquirir a propriedade do mesmo. Como já foi referido, a posterior aquisição da propriedade pelo vendedor faz com que a transferência do bem seja considerada realizada desde o momento da tradição, de acordo com o artigo 1.268 do Código Civil.

No caso que será apresentado, o contrato tem como objeto um imóvel, bem que não se transfere por tradição, mas, com as devidas ressalvas, pode ser enquadrado no dispositivo citado. Vejamos:

Jorge firma, em 30.06.1999, contrato de promessa de compra e venda de um imóvel com Bete, sendo esta a promitente compradora. Ocorre que Jorge não era proprietário do bem à época, eis que apenas tinha firmado promessa de compra e venda com a proprietária do imóvel em 11.02.1999. Somente em 17.11.1999 Jorge obteve escritura pública da compra e venda, adquirindo o domínio do bem.

Cumpre trasladar passagem da decisão de segundo grau, que bem resolve o caso, confirmando a eficácia da venda de Jorge a Bete: "Portanto, mesmo que no momento da realização da venda do imóvel para a apelante, o apelado somente possuísse um contrato particular de promessa de compra e venda, restou comprovado que o imóvel vendido passou a ser de sua propriedade, ainda que posteriormente, sendo, portanto, legítimo para efetuar a venda". [182]

Aqui, a boa-fé não é de grande relevância, pois foi a própria adquirente que buscou o desfazimento do contrato. Mesmo assim, a boa-fé foi mencionada pelo julgador, salientando que é um reforço à evidente legitimidade do negócio.

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É possível cogitar-se, ainda, da hipótese aventada no caput do art. 1.268 do Código Civil, em que o adquirente compra um bem em leilão ou estabelecimento comercial, de boa-fé. Neste caso, o adquirente terá direito a permanecer com o bem, pois comprou acreditando que a coisa pertencia ao vendedor. É o resguardo da segurança do comércio, além da explícita proteção da boa-fé. Apesar de tal negócio eventualmente prejudicar o verdadeiro proprietário, o legislador sopesou diferentes valores, protegendo, nesse caso, o princípio de que o erro comum faz direito.

Veremos mais adiante em que consiste o princípio referido, quando analisarmos a venda de coisa alheia frente à boa-fé e à teoria da aparência.

Pontes de Miranda menciona duas das hipóteses acima descritas: a entrega do bem, se adquirido depois pelo vendedor, e a eventual indenização, no caso de não adquirir e, por conseguinte, não entregar o bem. Nas palavras do doutrinador:

Podem ser vendidos direitos que pertencem ao vendedor e direitos alheios. Daí existir e valer a compra-e-venda (sic) de coisa móvel ou de prédio que não pertence ao vendedor; de modo que, se A vende a B o terreno com a casa, sem que êsse (sic) terreno e prédio lhe pertençam, a venda existiu e vale, apenas sendo ineficaz: se A os adquire depois, tem de prestá-los, ou, se não os adquiriu, tem de indenizar. (...). Nunca nos parece, todavia, supérfluo insistir: a ineficácia não se confunde com a nulidade, nem com a inexistência. [183]

No que tange à natureza obrigacional do contrato em apreço, cumpre transcrever as palavras esclarecedoras de J. X. Carvalho de Mendonça:

Não vemos inconveniente em que se venda a cousa alheia. Não queremos com isto dizer que o dono fique privado do que é seu. A validade do negocio juridico entre o comprador e o vendedor não affecta o direito de terceiro.

(...).

Em nosso systema legislativo, o contracto não transfere ipso facto a propriedade da cousa vendida. O comprador adquire um direito pessoal contra o vendedor ut rem habere illi liceat. (...). A lei não exige que a mercadoria se ache nas mãos do vendedor, e, no caso de cogitamos, não há a intenção dolosa de apossar-se do alheio. (sic) [184]

O autor lembra que, não fosse reconhecida como legítima a venda de coisa alheia, muitos dos grandes negócios do comércio não seriam possíveis, como a venda de ações de companhias. [185]

Vejamos duas decisões advindas do Tribunal de Justiça deste Estado:

Promessa de compra e venda a non domino. Resolução. Legitimidade ativa. Indenização. Benfeitorias. Honorários advocatícios. Majoração. Litigância de má-fé. Assistência judiciária gratuita. Promessa de compra e venda a non domino. Possibilidade admitida pelo sistema jurídico nacional. Boa-fé dos contratantes. Legitimidade para a causa reconhecida. Resolução contratual por inadimplemento. Retorno das partes ao estado anterior. (...). (Grifou-se). [186]

Destacamos trecho do voto pronunciado pelo relator da decisão supra: "(...) nos sistemas contratual e de aquisição da propriedade adotados pela lei brasileira, é absolutamente admissível a promessa de compra e venda non domino, porque exatamente se dá, então, a obrigação do promitente vendedor, na forma e prazos contratados, adquirir a propriedade do bem a ser transmitida". [187]

A seguir, acórdão que evidencia a ineficácia do contrato:

Apelação cível. Compra e venda. Nulidade. Coisa em condomínio vendida por um dos condôminos sem a anuência do outro. Terceiro adquirente de boa-fé. Fraude afastada. Ineficácia parcial do negócio jurídico. Princípio da identidade física do juiz e regime de exceção. Estabelecido o regime de exceção na vara, viável que outro juiz, que não o que findou a audiência, julgue a causa, sem que resulte malferido o disposto pelo art. 132 do CPC, na versão atual. É ineficaz a venda a non domino. Desse modo, se realizada apenas por um de dois condôminos, evidencia-se ineficaz quanto ao outro. (Grifou-se) [188]

A mesma corrente é defendida também por Pontes de Miranda, como já demonstrado, seguido por Marcos Bernardes de Mello, os quais entendem que o contrato de venda de coisa alheia, por ser de natureza consensual, existe, e é válido, mas ineficaz com relação ao verdadeiro proprietário. Cumpre transcrever alguns trechos esclarecedores de seu entendimento:

Quem declara a vontade de vender a casa que pertence a outrem não infringe regra material ou formal do negócio jurídico; talvez haja observado tôdas elas: o que em verdade fêz foi contratar a respeito do que lhe não pertence e, pois, por se pôr fora de ordem, ineficazmente. (...).

A compra-e-venda da coisa alheia é ineficaz; pode vir a ser eficaz. O não poder executar a obrigação produz o efeito da indenização. Se o terceiro, que devia ser ouvido, não no foi, o negócio jurídico é ineficaz quanto a terceiros. (sic) [189]

Em outra oportunidade, o autor esgota a matéria, afirmando ser a venda de coisa alheia válida e eficaz no plano do direito das obrigações, haja vista que o contrato de compra e venda caracteriza-se pela natureza consensual, isto é, independe da efetiva transmissão do bem contratado. Impende trasladar algumas de suas palavras:

Se a compra-e-venda foi a prazo, o vendedor assumiu dever e obrigação de prestar o que prometeu prestar, sendo sem qualquer importância, para a existência, a validade e a eficácia do contrato, que é consensual, o pertencer ao vendedor a coisa vendida, ou não lhe pertencer, ou, ainda, existir, ou não existir. (...).

O que ocorre é, tão-sòmente, não poder ser prestado o que se prometeu, – o que se resolve com a pretensão às perdas e danos, por inadimplemento da obrigação oriunda do contrato consensual de compra-e-venda, ainda se houve o acôrdo de transmissão, porque o acôrdo de transmissão é adimplemento do contrato de compra-e-venda à vista, e – na espécie – não satisfez a obrigação de prestar a coisa vendida (inadimplemento positivo do contrato). (sic) [190]

Marcos Bernardes de Mello sintetiza bem o posicionamento supra explanado. Vejamos:

Contrariamente à opinião de Vicente Ráo, que reflete a posição de boa parte da doutrina, não configura ilicitude invalidante ter-se por objeto de ato jurídico bem alheio. A falta de titularidade do bem objeto da prestação conduz à ineficácia do negócio jurídico de alienação em relação ao verdadeiro titular, não à nulidade. A pós-eficacização da tradição do bem feita pelo non domino que vem, posteriormente, a adquirir-lhe a propriedade (Código Civil, art. 622 [191]) demonstra que não há nulidade, mas simples ineficácia do acordo de transmissão. O ato jurídico nulo não convalesce, nem a nulidade pode ser sanada, senão através da repetição do ato jurídico. Se o caso da alienação pelo non domino fosse de nulidade, a eficacização posterior consistiria em sanação do nulo, o que seria impossível, segundo os princípios. [192]

Conclui-se, desta forma, que, para Pontes de Miranda, bem como para Marcos Bernardes de Mello, a venda a non domino é válida mas ineficaz no que tange ao direito do verdadeiro proprietário do bem indevidamente alienado, como já mencionado.

Cumpre transcrever decisão do Superior Tribunal de Justiça:

Direito civil. Venda a non domino. Validade da escritura entre as partes. Art. 145, CC. Ineficácia em relação ao verus dominus. Recurso provido.

I - a compra e venda de imóvel a non domino não é nula ou inexistente, sendo apenas ineficaz em relação ao proprietário, que não tem qualidade para demandar a anulação da escritura não transcrita.

II - os atos jurídicos são nulos nos casos elencados no art. 145, CC. (Grifou-se). [193]

Vejamos passagem do voto proferido na decisão supra:

A discussão, portanto, desloca-se, do âmbito do direito das coisas para a esfera do direito das obrigações. Não se debate mais relação de direito real, mas relação de direito pessoal, a ser resolvida pelo regramento concernente às obrigações. A parte lesada pela aquisição de imóvel não pertencente ao alienante, que terá pago pela coisa sem adquirir a sua propriedade, tem o crédito da prestação não implementada pelo vendedor resolvível em perdas e danos. [194]

3.5 Considerações pessoais

Entendemos, da análise das correntes acima explicitadas, que parece mais coerente o posicionamento que diz ser a venda de coisa alheia válida, mas ineficaz.

Vimos, no capítulo 2 deste trabalho, que, para existir, um contrato deve ter certos elementos; para ser válido, deve preencher determinados requisitos; e, para ser eficaz, ter certos fatores.

A venda a non domino existe, e isso é indiscutível, eis que, para tanto, basta que haja pessoas, um objeto e consentimento. O problema do contrato em análise, portanto, não se encontra no plano da existência.

A validade do negócio que tem por objeto coisa alheia é discutível, como vimos acima, mas entendemos que não há dificuldades também neste plano jurídico, pois os requisitos de validade são os seguintes: agentes capazes, objeto lícito possível e determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei. O objeto contratado, de propriedade de pessoa alheia ao negócio, o que para alguns determina a invalidade do mesmo, não apresenta qualquer defeito. Pertencer a terceira pessoa não torna o objeto ilícito. Por isso concluímos ser o contrato perfeitamente válido.

A discussão mais aguçada encontra-se no plano da eficácia, no qual os negócios jurídicos surtem os efeitos esperados pelas partes contratantes. Via de regra, a coisa vendida não poderá ser entregue ao comprador, e a transmissão seria o principal efeito resultante do contrato de compra e venda, eis que o adimplemento do contrato de compra e venda perfaz-se com o pagamento do preço e a entrega da coisa.

De acordo com a classificação dos fatores de eficácia de autoria de Antônio Junqueira de Azevedo, apresentada no capítulo 2, é possível concluir que a venda de coisa alheia enquadra-se nos chamados fatores de atribuição da eficácia diretamente visada. Isso porque, como leciona o autor, falta legitimidade ao vendedor para alienar o bem, o que resultará em efeitos diferentes daqueles esperados pelas partes contratantes. Vejamos o que diz o doutrinador:

São casos de negócios em que há falta de legitimidade-fator de eficácia: as vendas a non domino, (...). Os negócios realizados nessa situação são válidos e, até mesmo, têm eficácia entre as partes (podem ser rescindidos e dão origem a perdas e danos por inadimplemento); falta-lhes, porém, a eficácia diretamente visada, que, como se percebe, implica os efeitos do negócio se projetarem também na esfera jurídica de terceiros. O poder, resultante da relação jurídica legitimante, é, pois, aí, fator de atribuição da eficácia diretamente visada; sem ele, o negócio é ineficaz em relação a terceiros. [195]

Marcos Bernardes de Mello analisa a eficácia de forma diferente da supra demonstrada, apresentando diferentes modos de ineficácia jurídica, como ineficácia total e parcial, e ineficácia absoluta e relativa, por exemplo. Desta forma, o autor insere a venda de coisa alheia dentre os casos de ineficácia relativa do negócio, como se vê:

ineficácia relativa quando os efeitos do ato jurídico não se produzem em relação a algum, ou alguns sujeitos de direito, mas se irradiam relativamente a outro, ou outros. Em geral, a interferência não autorizada na esfera jurídica de terceiro acarreta a ineficácia relativa do ato jurídico, quando não há nulidade. (...). A compra de bem imóvel ‘a non domino’ (assim também a de bem móvel, não tendo havido a tradição) é ineficaz em relação ao dono, não transmitindo a propriedade, mas produz seus efeitos obrigacionais entre os contratantes (e.g. responder o vendedor pela restituição do que haja recebido pela venda e por perdas e danos). [196]

Importante mencionar que o sistema adotado pelo direito brasileiro estabelece que tanto o contrato como a transmissão do objeto contratado são indispensáveis para a transferência do domínio, ou seja, o contrato não tem efeitos reais. É o que se depreende da leitura do artigo 1.267 do Código Civil, o qual dispõe que "A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição". [197]

Assim, não basta o contrato para que o adquirente seja proprietário do bem; é indispensável, além do acordo de vontades, a tradição ou a transcrição, seja a coisa móvel ou imóvel, respectivamente. A este respeito, vejamos o que diz Mário Aguiar Moura:

O nosso direito vem preservando a tradição romana de oferecer ao contrato efeito e eficácia de natureza obrigacional, destacando-se dos sistemas francês, italiano e português, os quais abandonaram a tradição latino-germânica e passaram a inocular ao contrato força de operar a transferência dominial por si mesmo.

Assim, insista-se, em face da sistemática nacional, é imprescindível o ato posterior à vença, mas já no âmbito do Direito das Coisas, tradição ou transcrição. [198]

O recém citado autor defende a validade do contrato sobre coisa alheia, baseando-se, assim como os demais doutrinadores que entendem válido este contrato, na natureza obrigacional do mesmo, como demonstra a citação acima. Para finalizar, transcrevem-se outros trechos esclarecedores de autoria do mesmo doutrinador:

Ora, a tradição não é simples entrega material. Mas, sim, entrega com a intenção de transmitir o domínio como efeito de uma causa anterior que é o contrato. Situa-se a tradição, pois, no momento da execução do negócio jurídico preexistente. Se nessa própria contemporaneidade executória é possível validar o ato de entrega de bem alheio pela retroeficácia da transmissão do domínio, decorrente de posterior aquisição dele pelo transferente, ao ponto de ser considerada transferida a propriedade à data da tradição, razão não há para considerarem-se nulos a compra e venda e, principalmente, o compromisso de compra e venda por não ser o vendedor ou promitente vendedor dono do bem.

(...). Assim, não logrado o meio, obtenção da propriedade pelo vendedor, o contrato será ineficaz quanto ao seu fim principal de operar a translação dominial. [199]

3.6 A importância da boa-fé na eficácia da venda de coisa alheia

Dispõe o § 1º do artigo 1.268 do Código Civil vigente que "Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição". [200]

É possível concluir, da leitura deste dispositivo, que a venda de coisa alheia só poderá surtir os efeitos esperados se o adquirente estava de boa-fé, isto é, se este não estava em conluio com o vendedor no intuito de prejudicar o verdadeiro proprietário.

Como se pode perceber, a boa-fé aqui mencionada é a subjetiva, de acordo com a diferenciação apresentada no capítulo 1 deste trabalho. Assim, o importante é a consciência do adquirente; deve-se verificar se ele estava de boa-fé ao contratar. Não cabe analisar se ele agiu de acordo com o que é aceito socialmente, mas sim se ele tinha boas intenções.

Marco Aurélio Viana ensina que a boa-fé do adquirente, quando a coisa for adquirida em leilão ou estabelecimento comercial, resulta na efetiva alienação da propriedade pela tradição, de acordo com o disposto no artigo 1.268 do Código Civil. [201] Isso porque, quem compra nestas circunstâncias, crê que o alienante é o verdadeiro proprietário, e não se exige que aquele comprove que tenha tomado as devidas cautelas para a aquisição, pois a compra foi realizada publicamente.

Podemos perceber, assim, duas situações diversas nos dispositivos do Código Civil analisados. O caput do artigo 1.268 dispõe a respeito de negócios celebrados publicamente, enquanto o § 1º do mesmo artigo não faz a mesma restrição, exigindo apenas a boa-fé e a posterior aquisição do bem pelo alienante.

A regra encontrada no caput visa a resguardar, assim, o interesse público, tutelando os negócios celebrados na sociedade. Cumpre transcrever passagem de autoria de Luiz Fabiano Corrêa, na qual o mesmo analisa o parágrafo único do artigo 521 do Código Civil de 1916, que guarda semelhança com o artigo 1.268 do Código Civil em vigor. Vejamos, antes, o que dizem os dispositivos citados:

Art. 521 (CC/16). (...).

Parágrafo único. Sendo o objeto comprado em leilão público, feira ou mercado, o dono, que pretender a restituição, é obrigado a pagar ao possuidor o preço por que o comprou. [202]

Art. 1.268 (CC/02). Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono. [203]

Nas palavras do doutrinador:

O desfavor dessa regra para com o dono da coisa, em proveito de quem a adquire, não é uma homenagem ao adquirente, mas um reclamo do interesse coletivo na preservação da confiança nos negócios que aquele dispositivo legal menciona. (...). Essa razão de ordem pública, pelo próprio plano superior em que se situa, impõe solução diversa da que haveria, se a questão fosse de simples confronto dos interesses de igual nível, que têm o dono da coisa e o adquirente. Quando estão em jogo os interesses das partes, mesmo perante um adquirente de boa-fé, não se justifica que, sem um comportamento imputável ao dono, o interesse imolado seja o deste. [204]

É possível concluir, assim, que, estando o comprador de má-fé, jamais terá validade a transferência da coisa alienada. Isso porque não se pode conceber que seja resguardado o direito de alguém que recebe algo de má-fé, sabendo que a coisa não podia ser alienada, em detrimento do verdadeiro proprietário, que sofreria uma diminuição em seu patrimônio contra a sua vontade.

Por outro lado, é fácil perceber que nada há de errado em uma pessoa vender algo que ainda não lhe pertence, para depois transferir o bem e adquirir sua propriedade, revalidando aquela transferência. Apesar de ser mais comum obter-se a propriedade de um bem para depois transferi-lo a terceira pessoa, não há porque se negar eficácia à primeira situação, eis que, pelo menos em tese, ninguém será prejudicado.

Portanto, verifica-se que a boa-fé subjetiva é decisiva para a eficácia da venda de coisa alheia, o que é estabelecido pelo próprio Código Civil, quando determina que a tradição considerar-se-á realizada apenas quando, tendo o alienante adquirido a propriedade do bem, o adquirente estiver de boa-fé, ou nas situações de venda pública mencionadas pelo Código, também sendo indispensável a boa-fé do adquirente.

Veremos, a seguir, que, na prática, podem ocorrer situações não especificadas pelo Código Civil, e que deverão ser analisadas particularmente, caso a caso.

3.7 A aparência de direito

Há autores que analisam a venda a non domino sob o prisma da teoria da aparência, o que resulta, em determinados casos, no resguardo dos direitos do comprador de coisa que não pertence ao vendedor. Não pretendemos nos aprofundar neste aspecto, o que demandaria um estudo muito mais intenso, mas cumpre ressaltar algumas peculiaridades da aparência de direito.

Orlando Gomes ensina que, considerando-se a teoria da aparência, ora será privilegiado o verdadeiro proprietário, ora será resguardado o direito do adquirente de boa-fé. Vejamos o que diz o autor:

A segurança do comércio jurídico aconselha a validação de atos praticados por pessoas que não têm verdadeiramente o direito de realizá-los, mas que, devido a certas circunstâncias, apresentam-se aos olhos de todos como se fossem os autênticos titulares desse direito.

(...). Razões sociais e econômicas justificam o reconhecimento da eficácia de atos praticados por pessoa que se apresenta como proprietária de um bem, sem o ser em verdade, mas passando aos olhos de todos como tal. (...). O interesse de terceiros, que travaram relações jurídicas com o proprietário aparente, deve ser considerado. [205]

Orlando Gomes entende que, para prevalecer o direito do adquirente, são necessários dois requisitos imprescindíveis: a boa-fé, tanto do vendedor (proprietário aparente), que deve acreditar que o bem lhe pertence, quanto do comprador, que deve pensar que o bem realmente é de propriedade do vendedor; e que o erro seja comum e invencível, isto é, o adquirente deve ter tomado todos os cuidados necessários ao contratar. [206]

Ocorre que, ao lado do princípio de que o erro comum faz direito (error communis facit ius), o qual foi acima explicitado, há outro, que defende os direitos do verdadeiro proprietário, o qual determina que ninguém pode transferir mais do que tem (nemo plus iuris ad alium transfere potest quam ipse habet). [207]

Orlando Gomes resolve a questão da seguinte forma:

Admite-se que a questão deve ser resolvida em favor do adquirente contra o proprietário verdadeiro. É uma solução política, inspirada na conveniência de preservar a segurança das relações jurídicas.

(...). Cumpre, pois, exigir-se, para a eficácia da aquisição, que o adquirente tenha cometido realmente erro invencível. Do contrário, há de triunfar o direito do proprietário real. [208]

Luiz Fabiano Corrêa também faz um profundo estudo acerca desta matéria, e, da mesma forma, entende que, excepcionalmente, deve ser preservado o direito do adquirente de boa-fé. Nas suas palavras: "Sob certas condições e com as devidas cautelas, é forçoso reconhecer a possibilidade de deslocamento dos direitos de uma pessoa para outra sem que o queira o antigo titular (...)". [209]

O mesmo autor examina a questão levando em consideração a segurança estática e a segurança dinâmica, isto é, a necessidade de preservação de certos direitos para resguardar a segurança do comércio. A segurança estática visa a preservar os direitos do verdadeiro proprietário, pois, como se pode concluir da própria expressão, pretende manter as coisas da maneira como estão, imóveis. Já a segurança dinâmica está relacionada a movimento, ou seja, visa a favorecer a circulação de bens. Para melhor entendimento, transcrevemos trecho da obra do doutrinador citado, o qual se baseia, neste ponto, nos ensinamentos de Jean-Pierre Arrighi e Victor Ehrenberg:

(...) a quem já é titular do direito abomina a idéia de perdê-lo contra a própria vontade, ao passo que aquele que se propõe a adquiri-lo não pode tolerar a frustração de sua expectativa, nem expor-se à perda de sua contraprestação, por fato que não lhe seja conhecido. (...). O antagonismo desses dois conceitos poderia formular-se da seguinte maneira: a segurança estática consiste em não admitir-se qualquer alteração para pior do estado patrimonial de alguém, contra a sua vontade; a segurança dinâmica está em evitar que a interferência de circunstâncias desconhecidas frustre a modificação do estado patrimonial de alguém para melhor. [210]

Quanto a este aspecto, vejamos o posicionamento do Tribunal de Justiça de Rio Grande do Sul, em decisão datada de 1990:

Embargos de terceiro. Venda com reserva de domínio. Venda "a non domino". Boa-fé. A venda com reserva de domínio, para que opere efeitos perante terceiros, precisa estar registrada no ofício de tributos e documentos (art. 129, item 5, da lei 6.015/73). Crescimento da relevância do princípio da boa-fé e do princípio da aparência jurídica, que são princípios universais de direito e corolários do valor do justo. Daí decorre possa a segurança das transações (segurança dinâmica de Demogue) prevalecer, em muitos casos, sobre a segurança da propriedade (segurança estática). A prudência judicial, orientada pela lógica do razoável (Luís Recasens Siches), deve estabelecer o equilíbrio entre os dois parâmetros em conflito, que constituem aporia jurídica. Outrossim, as constatações feitas levam a conclusão de fortes modificações na sistemática implantada pelo art. 622 do Código Civil, aliás, já problematizado pelo art. 521 do mesmo diploma legal. (Grifou-se). [211]

Luiz Fabiano Corrêa conclui que "(...) quando se leva em conta as necessidades da economia moderna, a segurança dinâmica mostra-se melhor do que a segurança estática". [212]

Analogicamente a Orlando Gomes, Luiz Fabiano Corrêa estabelece a necessidade de determinados requisitos para a legitimação da aquisição a non domino, quais sejam: a aparência de dono do vendedor; que a coisa alienada tenha sido entregue espontaneamente ao vendedor pelo verdadeiro proprietário, isto é, que não tenha sido furtada; a boa-fé do adquirente; a onerosidade da aquisição. [213]

O posicionamento do supra citado autor está em conformidade com o artigo 521 do Código Civil de 1916, dispositivo sem correspondente no Código vigente, e que dispunha que "Aquele que tiver perdido, ou a quem houverem sido furtados, coisa móvel, ou título ao portador, pode reavê-los da pessoa que os detiver, salvo a esta o direito regressivo contra quem lhos transferiu". [214] Daí a exigência, pelo autor, de que a coisa tenha sido entregue espontaneamente pelo verdadeiro proprietário ao alienante para que a venda a non domino seja eficaz, pois, caso contrário, incidirá a regra do artigo acima transcrito, podendo o real proprietário reaver a coisa de quem a detenha, mesmo que este esteja de boa-fé.

Vê-se, portanto, da leitura deste dispositivo, que, se não tivesse havido a entrega espontânea da coisa pelo proprietário, este poderia buscar o bem de quem o detivesse, estando o terceiro adquirente de má-fé ou não.

Com relação à boa-fé, transcreve-se decisão do Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL. VENDA A NON DOMINO. Irrelevância da boa-fé dos adquirentes, posto que a venda foi feita em detrimento dos proprietários do imóvel, vítimas de sórdida fraude. Recurso especial não conhecido. (Grifou-se) [215]

Como já referido, o artigo 521 não foi recepcionado pelo Código de 2002. No que concerne a esta matéria, o Código Civil vigente limitou-se a aperfeiçoar o conteúdo do artigo 622 do Código de 1916, determinando, em seu já citado artigo 1.268, que "Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono". [216] Pode-se dizer que neste dispositivo encontra-se a regulação legal da teoria da aparência.

Aqui, pode-se verificar não só a relevância da boa-fé subjetiva do adquirente, como também o resguardo da segurança do comércio.

Assim decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no ano de 1999, quando se encontrava em vigor o Código Civil de 1916, ao qual o acórdão faz referência:

Venda a non domino. Ação reivindicatória. A venda por quem não é mais titular do domínio sobre a coisa não a aliena, sendo ineficaz perante o verdadeiro proprietário. Doutrina e jurisprudência sobre a matéria. Irrelevância da boa-fé do atual possuidor da coisa na ausência das hipóteses previstas pelo artigo 622 do Código Civil, para regularização da tradição da coisa. Prova de que o contrato de compra e venda celebrado entre o autor da demanda e o antigo proprietário foi devidamente adimplido, embora tardiamente, antes da nova alienação do trator. (Grifou-se). [217]

Vejamos o que diz Luiz Fabiano Corrêa a respeito da aparência de direito:

E não é raro que, com ostentação dessa legitimação ou titularidade – que de fato não existe, mas é tão-só aparente –, alguém transmita a um adquirente de boa-fé um direito que não pode transmitir. Entretanto, pelos princípios dos quais decorre a eficácia legitimadora da aparência de direito, se presentes os necessários pressupostos, o direito em questão efetivamente se transmite a quem o adquire. A transmissão dá-se à revelia do verdadeiro titular. Não há da parte desse a declaração de vontade que normalmente seria indispensável à deslocação do seu direito para a esfera jurídica do adquirente. Com isso, o verdadeiro titular acaba por ver-se privado do direito em questão, sem que para esse fim tenha ele mesmo realizado negócio jurídico algum. [218]

Sílvio de Salvo Venosa também se manifesta acerca da aparência de direito, relacionando as situações abarcadas pelo Código Civil que privilegiam o adquirente com a proteção estampada no Código de Defesa do Consumidor. Vejamos:

A regra geral, já consagrada no ordenamento anterior, é a de que a alienação feita por quem não é dono não tem o condão de alienar a propriedade. As exceções, com referência ao leilão e à boa-fé estampam situações que são cobertas pelo Código de Defesa do Consumidor. Coloca-se na situação de consumidor quem adquire bens em leilão ou estabelecimento comercial, dentro do conceito amplo estabelecido de consumidor e fornecedor (...). Nessas situações, a responsabilidade é objetiva do fornecedor de produtos e a alienação é eficaz, como regra geral. De qualquer forma, o novo Código protege as situações de aparência em geral, quando há boa-fé do adquirente e quando o alienante apresenta-se em tudo e por tudo como dono. [219]

Importante salientar, novamente, que a boa-fé, tantas vezes aqui repetida, refere-se à subjetiva, ou seja, aquela que diz respeito ao que acredita a pessoa, e não ao seu comportamento conforme o homem médio.

Para finalizar e bem esclarecer a matéria, analisaremos uma situação hipotética de venda a non domino na qual incide a teoria da aparência.

Suponhamos que Maria empreste uma televisão a José. Este, agindo de má-fé, apropria-se do bem e o vende a Ana, que adquire a televisão sem saber que não pertencia a José, agindo Ana, portanto, de boa-fé. Ressalta-se que José agiu aparentando ter o domínio do bem, apresentando-se como proprietário da televisão. Este contrato é legítimo?

Na visão de Luiz Fabiano Corrêa, a venda a non domino foi eficaz, pois preencheu todos requisitos exigidos pelo autor para tanto, quais sejam: aparência de dono do vendedor; que a coisa alienada tenha sido entregue espontaneamente ao vendedor pelo verdadeiro proprietário, isto é, que não tenha sido furtada; boa-fé do adquirente; onerosidade da aquisição. [220] Será privilegiado o direito do adquirente, protegendo-se a segurança do comércio, ou segurança dinâmica.

Importante referir que este posicionamento está de acordo com as disposições do Código Civil de 1916, como já mencionado, eis que aquele Código protegia o verdadeiro proprietário apenas nos casos de perda e furto de bens, conforme seu artigo 521.

Por outro lado, Orlando Gomes exige a boa-fé, não só do adquirente, mas também do vendedor, ou seja, quem aliena deve pensar que a coisa lhe pertence. Na hipótese suscitada, José sabia que a televisão não lhe pertencia, tendo agido de má-fé, o que torna a venda ineficaz. Assim, caso já tenha ocorrido a entrega do bem, Maria poderá reaver sua televisão de Ana.

De fato, é difícil imaginarmos uma situação em que o vendedor pense que é proprietário de um bem que na verdade não lhe pertence, hipótese que poderia resultar na eficácia da venda de coisa alheia na visão de Orlando Gomes.

Vê-se, assim, que, tanto o princípio da boa-fé como a boa-fé subjetiva, são imprescindíveis para a contratação nos dias atuais; a conduta dos contratantes deve ser sempre pautada pela vontade de adimplemento, pois, caso contrário, a segurança do comércio ficará prejudicada, podendo resultar em graves danos à economia.

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Sobre a autora
Ana Carolina Garcez de Azevedo

advogada em Porto Alegre (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVEDO, Ana Carolina Garcez. Venda de coisa alheia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1083, 19 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8525. Acesso em: 18 abr. 2024.

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