1. INTRODUÇÃO
A cobrança do IPI na saída do produto importado, realizada pelo estabelecimento importador, é tema que, há alguns anos, suscita grandes discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Além do conteúdo da discussão ter despertado diferentes opiniões entre os especialistas, a problemática também atraiu atenção, de todas as partes, pela vultosa quantia envolvida, que chega a dezenas de bilhões de reais em arrecadação.
A questão vem sendo polêmica desde outubro de 2015 quando, no julgamento do EREsp 1.403.532/SC, o Superior Tribunal de Justiça reformou seu entendimento e passou a considerar legítima a cobrança do IPI. Contudo, só no final de agosto de 2020 que a discussão foi encerrada com o julgamento do RE 946.648/SC, com repercussão geral.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional, por maioria de votos, a incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados na saída do produto importado do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno.
Não obstante a decisão do Supremo Tribunal Federal, faz-se necessário analisar as motivações dos votos que foram favoráveis à sedimentação da tese vencedora, bem como tecer críticas ao referido posicionamento desfavorável ao contribuinte, uma vez que, o entendimento da corte ultrapassa limites constitucionais tributários importantes, sendo firmado em argumentos econômicos e políticos, isto é, extrajurídicos.
2. AS HIPÓTESES DE INCIDÊNCIA DO IPI
O Imposto sobre Produtos Industrializados é tributo federal, indireto, não cumulativo, de perfil seletivo e predominantemente extrafiscal. O referido tributo possui previsão constitucional no art. 153, IV, da Constituição, o qual estabelece que a operação tributada pelo IPI tenha por objeto um produto que tenha sido industrializado.
Em matéria infraconstitucional, o Código Tributário Nacional regula o tema na medida em que expõe duas hipóteses de incidência distintas para a cobrança do IPI, previstas em seu art. 46, in verbis:
Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador:
I - o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;
II - a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51.[1]
Vejamos o que dispõe o parágrafo único do art. 51 do CTN:
Art. 51. Contribuinte do imposto é:
(…)
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante.[2]
Diante da análise dos dispositivos, depreende-se que somente o inciso I do art. 46 se refere, de maneira expressa, aos produtos de procedência estrangeira.
O legislador brasileiro, portanto, definiu como fato gerador do IPI o momento do desembaraço aduaneiro, em relação aos produtos importados; e, quanto aos produtos nacionais, a saída do produto industrializado dos estabelecimentos dos importadores, industriais, comerciantes ou arrematantes. Nesse contexto, a própria Lei nº 4.502/64 já havia regulado a matéria antes da vigência do CTN e, em seu artigo 2º, estabelecia que o fato gerador do IPI restaria configurado: “(i) quanto aos produtos industrializados de produção nacional na saída do respectivo estabelecimento produtor. (ii) quanto aos produtos de procedência estrangeira o respectivo desembaraço aduaneiro” (grifos nossos).[3]
3. CRÍTICA À TESE FIRMADA PELO STF
Apesar dos apontamentos realizados acerca da distinção entre as hipóteses de incidências do IPI, previstas no CTN, e do próprio regramento constitucional, o STJ, no julgamento do EREsp 1.403.532/SC, em outubro de 2015, considerou legítima a cobrança do IPI na entrada e na saída do produto importado do estabelecimento importador. Desse modo, houve a equiparação dos estabelecimentos que revendem produtos importados com os estabelecimentos industriais, para fins de incidência do IPI, sendo possível a cobrança do imposto também na situação prevista no inciso II do art. 46.
Decidida a interpretação da regulamentação infraconstitucional pelo STJ, caberia ao STF decidir se a Constituição autorizou, ou não, o CTN a instituir o IPI no desembaraço aduaneiro e na revenda do produto importado.
Nesse ínterim, no RE 946.648/SC, a celeuma girou, principalmente, em torno da possível violação ao princípio da isonomia (art. 150, II da CF), tendo em mente que a equiparação entre importadores e industriais geraria a quebra do princípio anteriomente mencionado, pois os importadores de produtos industrializados já estariam obrigados a suportar a oneração aplicada através do Imposto de Importação.
Alegou-se, outrossim, que a legislação aplicável ao IPI deve ser orientada de acordo com o preceito constitucional fundante da norma, qual seja, o art. 153, IV da CF. Tanto é assim, que o fato gerador do imposto seria o negócio jurídico a envolver o resultado de um processo produtivo, não sendo possível a oneração através do IPI da simples revenda de mercadorias importadas aos varejistas e atacadistas nacionais, após a realização do desembaraço aduaneiro dos produtos que estariam prontos para o consumo no mercado brasileiro.
Suscitou-se, por fim, que a incidência do IPI em dois momentos distintos, no caso dos importadores, teria caráter confiscatório, expressamente vedado pelo artigo 150, IV da CF.
Apesar da tese da inconstitucionalidade ter sido defendida pelo Ministro Relator, Marco Aurélio, o Ministro Dias Toffoli abriu divergência e foi acompanhado pela maioria do Tribunal.
A decisão da maioria do Tribunal foi pautada por critérios econômicos e políticos justificados pelo caráter eminentemente extrafiscal do IPI. Apontou-se ainda que era justamente a aplicação do imposto na saída e na entrada do estabelecimento importador que conferiria condições de igualdade para os produtos nacionais e seus similares importados.[4]
Os Ministros entenderam, desse modo, que a legislação brasileira buscou estender o tratamento equânime ao produto industrializado importado e ao similar nacional, resguardando, assim, o princípio da igualdade, da livre concorrência, e da isonomia tributária.
Diante dos argumentos expostos, é necessário apontar, entretanto, que apesar do caráter predominantemente extrafiscal do IPI, inclusive sendo um exemplo de mitigação do princípio da legalidade tributária, o legislador precisa respeitar os limites conceituais e principiológicos do próprio imposto, constantes na magna carta. Nesse sentido, fica a lição de Paulo de Barros Carvalho:
[...] “Significa, portanto, que, ao construir suas pretensões extrafiscais, deverá o legislador pautar-se, inteiramente, dentro dos parâmetros constitucionais, observando as limitações de sua competência impositiva e os princípios superiores que regem a matéria, assim entendidos tanto os dispositivos expressos quanto os implícitos.”[5]
Nesse sentido, a despeito dos limites constitucionais impostos à extrafiscalidade, o STF acabou por utilizar argumentos, em sua maioria, extrajurídicos, a fim de não acarretar uma perda arrecadatória bilionária aos cofres da União, em um momento de pandemia, e proteger as indústrias brasileiras.
4. CONCLUSÃO
Diante do grande debate acerca da matéria, o STF acabou por adotar o entendimento, lastreado por argumentos econômicos e políticos, de que é constitucional a cobrança do IPI na saída do produto importado realizada pelo estabelecimento importador, pondo fim à questão que envolvia bilhões de reais em arrecadação de tributos.
Nesse sentido, é importante ressaltar que, pelo momento de crise econômica, a decisão da Suprema Corte brasileira extrapolou o caráter extrafiscal do IPI, tendo em vista que princípios basilares do direito tributário, como a isonomia e o não confisco, bem como o próprio conceito do tributo, foram postos em segundo plano, para ser aceita a oneração tributária da simples revenda de mercadorias importadas aos varejistas e atacadistas nacionais, após a realização do desembaraço aduaneiro dos produtos que já estariam prontos para o consumo no mercado brasileiro.
Portanto, por ser o IPI um imposto indireto, essa tributação incidente em dois momentos da cadeia produtiva, onerará ainda mais o contribuinte de fato, consumidor final da mercadoria, em um momento econômico marcado pela alta do dólar, que estimula a venda da produção da indústria nacional para o mercado externo e encarece o produto importado, forçando um aumento dos preços dos produtos disponíveis aos consumidores brasileiros.
Notas
[1]BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm>. Acesso em: 18 de setembro de 2020.
[2] Ibidem.
[3] BRASIL. Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4502.htm>. Acesso em: 18 de setembro de 2020.
[4] STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 946.648/SC - Relator: Marco Aurélio. DJ: 09/09/2020. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=223&dataPublicacaoDj=09/09/2020&incidente=4923845&codCapitulo=2&numMateria=23&codMateria=12 >. Acesso em: 18 de setembro de 2020.
[5] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Linguagem e método. 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011. P. 249.