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Relações de trabalho e os desafios do direito do trabalho frente à gig economy

05/10/2020 às 15:48
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Ante a crise econômica brasileira e o avanço tecnológico, ocorreram, naturalmente, mudanças nos modelos laborativos tradicionais. Urge que o direito do trabalho dê um novo olhar às necessidades que daí surgiram.

Introdução

O número de plataformas digitais que têm como objetivo conectar usuários a prestadores de serviços cresceu exponencialmente nos últimos anos. Diante desse dinamismo, surgem novas formas de trabalho, dando a possibilidade de o trabalhador ter mais autonomia e liberdade na condução de seus serviços. Por exemplo, sem horários preestabelecidos, carga horária mínima e possibilitando cadastros em diversas plataformas de forma simultânea. A este fenômeno que chamamos de uberização, trata-se então de um modelo de organização laboral, que tem como característica marcante a flexibilização do trabalho através de inovações disruptivas.

Por se tratar de um novo modelo, temos ainda brechas no direito do trabalho no que diz respeito à proteção que se faz necessária ao trabalhador, uma vez que estes não se encontram no modelo de prática laboral já consolidado e coberto pela legislação trabalhista vigente.

É compreensível, então, que, diante do exposto acima, exista uma apreensão com o que se pode esperar do futuro do trabalho, como o direito do trabalho pode vir a atuar de forma a regularizar tais relações de trabalho e assegurando a proteção constitucional do trabalhador. Frente a isso, o presente artigo tem por objetivo analisar e levantar pontos importantes desse processo.

Desenvolvimento

O surgimento das novas tecnologias de informação e comunicação ocasionou transformações nos mais diversos âmbitos da sociedade, inclusive nas relações de trabalho. Nesse contexto, temos o surgimento das tecnologias disruptivas. Estas são entendidas como criações introduzidas no mercado e alteram as configurações existentes. Podemos afirmar que o mercado de hoje está sendo motivado pelo consumidor, que tem se mostrado cada vez mais volátil.

Diante de tal aspecto, as empresas têm reorganizado a sua forma de atuação para responder com agilidade a tais mudanças e demandas impostas pelos consumidores. Não há nada de novo até aqui. No passado, a necessidade de eficiência econômica aliada a um período de crise fez nascer a chamada especialização flexível, na tentativa de colocar uma maior variedade de produtos e serviços no mercado em um ritmo cada vez mais rápido.

Atualmente, o mercado é caracterizado principalmente pela flexibilidade e o fluxo a curto prazo, de forma que as empresas buscam eliminar a burocracia para melhor atendê-los; saem as organizações tipo pirâmide e entram as organizações do tipo rede, impulsionadas pela modernização, pelo dinamismo do ambiente globalizado e pelo impacto das tecnologias de informação.

E nesse contexto de dinamismo da globalização surgem novas formas de trabalho, dando espaço para o trabalhador just-in-time, termo utilizado para se referir ao sujeito que é autogerente subordinado disponível, desprovido de garantias e direitos. É neste cenário da gig economy (economia sob demanda), que a relação entre usuários e prestadores de serviços, dispostos a fazer um trabalho específico, deixa de ser direta e passa a ser intermediada por uma plataforma digital de conexão que tem como principal objetivo facilitar o encontro entre usuários finais que desejam contratar um determinado serviço e pessoas dispostas a oferecê-los.

Tomemos como exemplo a plataforma Uber: o modelo de transporte chegou ao país em um contexto de crise. De um lado, a demanda da população por meios de transporte eficientes e de menor custo, haja vista a precariedade do sistema público de transporte e o alto custo do transporte particular. De outro lado, o crescente aumento do desemprego. Consequentemente, houve rápida adesão pela população. Tanto é que, desde que chegou ao Brasil, a Uber tem crescido exponencialmente. Dados da empresa indicam que, atualmente, ela já possui 50 mil motoristas cadastrados e quase 9 milhões de usuários ativos distribuídos em 40 cidades brasileiras.

Na plataforma supracitada, por exemplo, os motoristas são livres para trabalhar ou não trabalhar, quando e onde quiserem, por tantos ou poucos dias ou horas, e fazer quantas pausas desejarem. Entretanto os motoristas não são pagos pela Uber, mas pelos clientes – o papel da plataforma é coletar e distribuir esses pagamentos. Outro ponto importante é que os meios de produção não são fornecidos pela empresa: os motoristas da Uber usam seus próprios carros e pagam pelo combustível. Ou seja, a plataforma simplesmente conecta você a um motorista de um veículo disposto a oferecer aquele serviço naquele momento.

Diante disso, no Brasil, o debate acerca da natureza jurídica da relação entre os prestadores e as empresas que mantêm as plataformas digitais de conexão tem se tornado cada vez mais recorrente. Fica o questionamento: seria a empresa responsável pela plataforma uma mera facilitadora ou a real empregadora dos prestadores de serviços?

A lógica da relação entre prestadores e plataformas é, portanto, contrária àquela existente nas relações de emprego. Cabe aqui um apontamento dos critérios clássicos de caracterização da relação de emprego, que são: pessoalidade, onerosidade, não-eventualidade e subordinação. Verifica-se que a utilização desses critérios para a caracterização de uma relação de emprego exige do jurista ampla criatividade para fazer uma releitura frente às novas configurações do trabalho. Em um dos critérios isso fica mais evidente: na subordinação.

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O que vimos nos últimos anos é justamente um número crescente de ações judiciais de natureza trabalhista envolvendo a empresa supracitada, reivindicando justamente o reconhecimento de vínculo de emprego entre os motoristas e a empresa. Entretanto, cabe ressaltar que, muito embora essa discussão seja de fundamental importância, alguns pontos não podem deixar de ser considerados como desvantagens: o encarecimento dos preços dos serviços e a inviabilidade do próprio modelo de negócio das plataformas digitais, caindo por terra o pilar principal de tal modelo laboral que é a autonomia dos prestadores.

A subordinação existente em uma relação empregatícia clássica diz respeito ao empregado estar sujeito ao mando diretivo do patrão. Para além disso, é difícil imaginar uma relação de emprego com tão pouca supervisão e com tamanha autonomia. E esse foi o entendimento da 37a Vara do Trabalho de Belo Horizonte, que proferiu a decisão rejeitando o pedido para que a Uber fosse condenada ao pagamento de férias, décimo terceiro e adicional noturno a um motorista da plataforma, afastando a existência de vínculo de emprego em razão da ausência de subordinação entre as partes, requisito essencial para o vínculo.

Entretanto, na 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, outra decisão foi tomada, totalmente divergente da anterior, reconhecendo o vínculo empregatício existente entre um motorista e a Uber, condenando a empresa ao pagamento férias, décimo terceiro, horas extras e adicional noturno. Nesse sentido, percebemos a existência de uma pluralidade de decisões que se acumulam frente à necessidade de reconfiguração do Direito do Trabalho frente às novas configurações do trabalho.

Gunter Teubner analisa o papel do socialismo constitucional na globalização, abordando, dentre outros, as transformações ocorridas no âmbito profissional-organizacional. O autor divide o âmbito de regulação das normas constitucionais em âmbito espontâneo, âmbito profissional-organizacional e âmbito de autodirecionamento do meio de comunicação. Nesse contexto, o autor questiona a possibilidade de institucionalizar juridicamente garantias constitucionais que estabeleçam um controle acentuado no âmbito espontâneo sobre o organizacional. No âmbito do trabalho, faz a seguinte análise:

Deve se encontrar arranjos que, devido às pressões externas baseadas em contrapoder, levem a mecanismos de monitoramento (monitoring) abrangentes e transparentes e diversos “sistemas de management” sejam combinados de tal forma que eles superem as causas de condições deploráveis (TEUBNER, 2014, p.175).

Conclusão

É inegável que, frente à crise econômica que se instaurou no Brasil, a gig economy e a uberização deram acesso a uma rede extremamente ampla de trabalhadores que encontraram nas tecnologias disruptivas a possibilidade de tirar meios de subsistência ou formas de complementar sua renda principal. Entretanto, é preciso mais do que nunca criar uma solução, ainda que seja por meio da criação de uma nova categoria legal de trabalho, com regulamentações próprias, que incluam os trabalhadores que não se encaixam em nenhuma categoria profissional.

O trabalho está mudando e a legislação sobre o trabalho deve acompanhar essas mudanças. Diante dos novas formatos laborais, é indispensável que não se esqueça do papel do Direito do Trabalho no equilíbrio das relações trabalhistas, de modo que este cumpra o seu papel em preservar não apenas o patamar civilizatório, mas também, a manutenção dos direitos mínimos para todo trabalhador.


Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: a era do trabalhador just-in-time?  Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142020000100111&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt.  Data de acesso: 25 de Setembro, 2020.

GIG - A uberização do trabalho. Dir. Carlos Juliano Barros, Caue Angeli, Maurício Monteiro Filho. Produção Reporter Brasil. Brasil, 2019.

TEUBER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo na globalização. 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Laís Gomes. Relações de trabalho e os desafios do direito do trabalho frente à gig economy. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6305, 5 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85796. Acesso em: 3 out. 2024.

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