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Investigação prospectiva

07/10/2020 às 09:15
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Na investigação prospectiva, a atividade apuratória independe da notícia crime específica, se desenvolvendo com a finalidade de coletar dados que possam indicar uma provável (embora incerta) infração penal, ou identificar sua ocorrência embrionária.

O objeto de uma investigação criminal será sempre a notitia criminis, vale dizer, a notícia sobre uma possível violação ao ordenamento jurídico penal. Isso significa que, em regra, a atividade persecutória de apuração será retrospectiva, visando a reconstruir a história do crime, suas circunstâncias, motivações e, sobretudo, sua autoria.

Ocorre que, em determinadas situações, nos parece imprescindível que exista o que podemos rotular de “investigação prospectiva”, ou seja, uma atividade apuratória cuja iniciativa independa de uma notícia crime específica e se desenvolva com a finalidade de coletar dados que possam indicar uma provável (embora incerta) infração penal, ou identificar sua ocorrência de forma embrionária. Note-se que, nessas hipóteses, a investigação criminal tem um papel fiscalizatório, de natureza preventiva, se assemelhando à atividade de “inteligência policial”.

Sobre esse ponto, aliás, vale frisar que a atividade de “inteligência” se relaciona, basicamente, a um conjunto de ações com o objetivo de produção de conhecimento sobre uma determinada matéria. Justamente por isso, a atividade de inteligência se divide em várias categorias (ex: de defesa, policial, penitenciária, financeira, fiscal, de Estado etc.) a depender do conhecimento que se pretenda produzir.

A atividade de “inteligência de Estado”, por exemplo, realizada em âmbito nacional pela ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), busca reunir informações que sejam de interesse do Estado Brasileiro, servindo de apoio e assessoramento à Presidência da República para a tomada de decisões.

O COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), por sua vez, é um órgão que desenvolve uma atividade de “inteligência financeira” e, nos termos do artigo 14, da Lei 9.613/98, tem a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na Lei em questão.

Já a atividade de “inteligência policial” se relaciona com a produção de conhecimento sobre segurança pública, servindo de apoio, tanto para a prevenção, quanto para a repressão de infrações penais. No âmbito preventivo, a inteligência promove uma análise de dados e fatores que auxiliam na tomada de decisões aptas a evitar a prática de crimes. Sob outro prisma, numa perspectiva repressiva, a atividade de inteligência serve de suporte para as investigações criminais, seja com a coleta de informações que estruturem operações policiais de cumprimentos de mandados judiciais (de busca e apreensão ou de prisão), seja com a produção de conhecimentos que reforcem os indícios de autoria e materialidade delituosa.

De maneira ilustrativa, no âmbito da Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL):

(...)  a análise de inteligência criminal é dividida em operacional e estratégica. A primeira visa alcançar um resultado específico (prisões, apreensão, confisco de bens ou interrupção de atividade criminosa) e seu suporte analítico inclui identificar vínculos entre suspeitos e seu envolvimento em atividades ilícitas, bem como lacunas de investigação, e preparar perfis dos criminosos. A análise estratégica objetiva informar os tomadores de decisão e seus benefícios são a longo prazo, pois a intenção é fornecer alerta precoce a ameaças (...).[1]

Feitas essas considerações, podemos retomar o tema foco deste estudo. Isso porque é justamente na análise estratégica que a atividade de inteligência flerta com o que denominamos de “investigação prospectiva”, servindo para evitar a prática de crimes ou identificar a ação criminosa na sua gênese.

Ora, é cediço que determinadas infrações penais têm aptidão para gerar enormes consequências, não apenas para as gerações presentes, mas também para as futuras. Isso fica muito evidente nos crimes ambientais, mais especificamente nas tragédias de Mariana e Brumadinho, em que o rompimento de barragens ocasionou a morte de várias pessoas, além de um dano ambiental sem precedentes na história do Brasil.

Temos a convicção de que nesses tristes episódios os órgãos de fiscalização falharam ao não identificar o risco de rompimento das barragens. Nesse contexto, defendemos que as agências de investigação criminal, ainda que de forma excepcional, atuem de forma prospectiva, fiscalizando/monitorando pessoas físicas e jurídicas que podem estar envolvidas em ilícitos penais.

No Brasil e no mundo as investigações são iniciadas, em regra, por meio de provocação das vítimas, que são as principais fontes de “notícia crime”. Ocorre que, conforme já pontuamos ao estudar o “funcionalismo da investigação criminal”[2], são raras as hipóteses em que uma apuração tem seu início no modelo self-starter, ou seja, independentemente de provocação, numa  típica atuação de ofício.

O problema dessa “inércia” da persecução penal investigatória está no fato de que a atividade fica extremamente dependente da vítima, que, não raro, acaba sonegando a notitia criminis do Estado, aumentando, destarte, as chamadas “cifras negras” (índice de criminalidade desconhecida). Demais disso, não se pode olvidar que esse problema é potencializado no caso de “crimes vagos”, uma vez que não há um sujeito passivo definido.

É, justamente, no intuito de diminuir o índice de criminalidade oculta e, excepcionalmente, evitar a prática de certos crimes, que se propõe, neste estudo, uma investigação prospectiva. Esse tipo de apuração deve se desenvolver informalmente, muitas vezes sem um alvo definido, reunindo elementos informativos que demonstrem a probabilidade de uma iminente ofensa ao ordenamento jurídico penal.

Por obviedade, em não se consumando a infração, não se pode falar em responsabilidade penal, mas, mesmo nessa hipótese, o conhecimento produzido não será descartado, podendo subsidiar e - o que é mais importante! – agilizar investigações futuras sobre crimes determinados e que guardem relação com a prospecção realizada anteriormente.

A importância desse tipo de investigação ganha ainda mais relevo quando se trata de crime culposo. Isto, pois, nessa modalidade de infração não há dolo por parte do agente, que dá causa a um resultado típico não querido e nem tampouco admitido, mas objetivamente previsível. Nesse tipo de caso, como nas tragédias de Mariana e Brumadinho, uma investigação prospectiva poderia ter identificado, por meio de perícia, a negligência das empresas na manutenção das barragens. Com efeito, um dos elementos do crime culposo seria demonstrado (ausência do dever objetivo de cuidado), mas não haveria violação ao ordenamento jurídico diante da falta do resultado. Independentemente disso, uma tragédia teria sido evitada pela investigação prospectiva.

Sobre o tema, são valiosas as lições de SANTOS:

Esta modalidade de investigação criminal segue a ideia central de toda investigação criminal – a busca de conhecimento sobre um evento criminal – acrescido do fato temporal futuro ao invés do passado, conforme tem seguido o modelo clássico de investigação. Não bastasse isso, este evento futuro deve relacionar-se com fatos e atos do presente, e, neste tempo presente, se pretende evitar ou neutralizar os efeitos perigosos e danosos para o tempo futuro. Então, no presente já se busca elementos embrionários de provável crime no futuro próximo, ampliando-se as estruturas normais de cognição.[3]

Sob outro enfoque, a investigação prospectiva também pode se relacionar com infrações penais já praticadas, mas que não chegaram ao conhecimento do Estado (fato oculto). Conforme destacamos acima, cada vez mais torna-se imprescindível a adoção do modelo self-starter de apuração criminal, mesmo sem provocação ou diante da ausência de qualquer indício de autoria ou materialidade delituosa.

Trata-se de uma investigação (informal) iniciada sem objeto ou suspeitos definidos (portanto, prospectiva), que busca reunir dados e elementos informativos que indiquem uma possível violação ao ordenamento jurídico penal. Como não há qualquer indício da ocorrência de crime, esse modelo investigativo sofre limitações, sendo inadmissíveis, por exemplo, a adoção de técnicas mais invasivas como a interceptação telefônica, a captação ambiental ou até mesmo uma busca domiciliar.

Nesse contexto, a investigação prospectiva deve ser inteiramente baseada em dados públicos ou não sujeitos à reserva de jurisdição, que, quando devidamente compilados e confrontados, podem indicar a ocorrência de um delito. Conclui-se, destarte, que esse tipo de apuração tem natureza prospectiva porque, subjetivamente, seu início não está vinculado a qualquer informação sobre o crime. Ocorre que, objetivamente, o delito já se consumou ou está se consumando, embora esse fato não seja do conhecimento do Estado-Investigação.

Vejamos alguns exemplos com a finalidade de ilustrar nossas conclusões. Durante a pandemia que atingiu a humanidade no ano de 2020, foram apurados inúmeros casos de corrupção no Brasil. Em um cenário como esse, as agências de investigação criminal, mesmo sem qualquer notícia de crime, podem realizar diligências no intuito de identificar algum indício da sua ocorrência. Pode-se efetuar pesquisas em sites públicos para verificar os valores pagos em insumos e materiais hospitalares com dispensa de licitação; verificar se os valores em questão estão de acordo com o preço de mercado; verificar se existe alguma relação, inclusive de parentesco, entre integrantes da Secretaria de Saúde com a empresa que forneceu os materiais (o que pode ser feito pelas redes sociais); verificar se os produtos adquiridos foram efetivamente entregues; verificar se a aquisição realizada é proporcional às necessidades da cidade etc.

Se durante essas diligências for verificada alguma disparidade ou suspeita, o cenário se altera completamente. O que antes era uma simples prospecção sobre possíveis crimes, acaba se transformando em algo concreto, determinado e com alvos definidos. Sai de cena a atividade prospectiva e ganha espaço a atividade retrospectiva; se antes não havia um objeto, agora há. Percebe-se, assim, que a investigação prospectiva tem a finalidade de forjar as condições para o início de uma investigação criminal clássica, de caráter retrospectivo, diante da possibilidade da ocorrência do delito.

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Outro exemplo desse tipo de investigação envolve as chamadas “rachadinhas”, expediente pouco republicano em que representantes do Poder Legislativo (Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores) nomeiam assessores (muitas vezes “fantasmas”) e exigem parte de suas remunerações. Em tais casos, mesmo sem qualquer informação sobre a famigerada “rachadinha”, as agências de investigação criminal podem realizar diligências prospectivas: a-) consultar no Portal Transparência a remuneração de cada servidor e se ela é adequada ao cargo e proporcional ao tempo de serviço; b-) verificar se o assessor nomeado possui a qualificação necessária para o cargo; c-) verificar se determinado parlamentar ostenta um padrão de vida muito superior aos seus rendimentos lícitos (ex: imóveis, veículos, viagens, restaurantes etc.).

Aqui, uma vez mais, se for identificada alguma discrepância, surge uma suspeita. Imagine-se que se apure que uma recepcionista, por exemplo, com apenas 2 anos de serviço, tenha uma remuneração de 15 mil reais, quando outras servidoras, com a mesma atribuição e carga horária, ganhem somente 2 mil reais. Agora imagine que por meio de uma busca nas redes sociais da suspeita se apure que ela mantém relação estreita com um parlamentar, inclusive de cunho amoroso. Parece-nos que nesse caso as informações obtidas denotam a possibilidade de uma infração penal e, a partir disso, a investigação evolui com objeto determinado e alvo definido.

Em conclusão, vale destacar, nesse trabalho, as lições de HABIB ao tratar da investigação prospectiva no crime de associação criminosa. De acordo com o autor, o “modelo de investigação prospectiva, utilizado para investigar o delito de associação criminos

a, não tem como objetivo a reconstituição histórica do fato delituoso, e sim a atividade presente e a antevisão do futuro”.[4] 

HABIB pondera que nesses casos a investigação criminal é deflagrada a partir da reunião de pessoas para, com isso, tentar encontrar elementos de prova que confirmem a futura prática de delitos pela associação. Ao criticar esse modelo o autor salienta o seguinte:

A admissão desse modelo de investigação criminal prospectiva significa transformar o Direito Penal em um Direito Penal preventivo, isto é, um instrumento de controle preventivo, que terá a sua incidência independentemente de qualquer lesão a bens jurídicos. Trata-se de evidente instrumento de neutralização dos agentes, como forma de impedir que permaneçam soltos e pratiquem crimes, como forma de controle prévio de delitos que sequer foram praticados ou que poderão não ocorrer.

Com a devida vênia, ousamos consignar a nossa discordância e reforçar a defesa dessa modalidade investigativa. Primeiramente, nas hipóteses de associação ou organização criminosa não se pode falar em investigação prospectiva para os crimes associativos, afinal, o legislador criminalizou a simples reunião de pessoas. Trata-se, conforme reiteradamente decidido pela jurisprudência, de um verdadeiro Direito Penal Preventivo, cuja finalidade é obstaculizar a prática de infrações penais mais graves.

É evidente que a associação de pessoas com a finalidade de praticar infrações penais, por si só, já ofende o bem jurídico, paz pública, justificando, destarte, a deflagração da persecução penal. Ocorre que, nessas hipóteses, a investigação será de natureza retrospectiva em relação ao crime associativo, mas deve assumir um caráter prospectivo no que se refere às infrações penais que seriam o foco da associação/organização criminosa.

Ademais, não se pode perder de vista que nesse tipo de crime a investigação prospectiva se torna imprescindível para comprovar a própria materialidade do crime associativo, haja vista a necessidade de se comprovar a intenção criminosa da reunião de pessoas. Justamente por isso, concluímos que o caráter preventivo da investigação está diretamente ligado ao modelo de Direito Penal Preventivo assumido, ainda que excepcionalmente, pelo próprio Legislador, sem que se possa questionar a legitimidade desta técnica de apuração.  


REFERÊNCIAS

HABIB, Gabriel. Investigação prospectiva do delito de associação criminosa é ilegítima. Disponível: https://www.conjur.com.br/2018-mai-17/gabriel-habib-investigacao-prospectiva-associacao-criminosa .  Acesso em 05.102020.

SANNINI NETO, Francisco. Funcionalismo da Investigação Criminal. Disponível: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53255/funcionalismo-da-investigao-criminal .  Acesso em 05.10.2020.

SANTOS, Célio Jacinto dos. Investigação Criminal Especial. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2013


Notas

[1] Disponível: https://www.interpol.int/Search-Page?search=criminal+intelligence+ana lysis+is+divided+into+operational. Acesso em: 12 fev. 2020. Traduzi.

[2] SANNINI NETO, Francisco. Funcionalismo da Investigação Criminal. Disponível: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53255/funcionalismo-da-investigao-criminal .  Acesso em 05.10.2020.

[3] SANTOS, Célio Jacinto dos. Investigação Criminal Especial. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2013 p. 79.

[4] HABIB, Gabriel. Investigação prospectiva do delito de associação criminosa é ilegítima. Disponível: https://www.conjur.com.br/2018-mai-17/gabriel-habib-investigacao-prospectiva-associacao-criminosa .  Acesso em 05.102020.

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Sobre o autor
Francisco Sannini Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini Neto. Investigação prospectiva . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6307, 7 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85810. Acesso em: 21 nov. 2024.

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