O contrato de trabalho intermitente no brasil: uma análise crítica a partir da constituição e do direito comparado

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2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O CONTRATO INTERMITENTE

2.1 A escolha de se elevar o Direito do Trabalho ao papel de protagonista na ordem Constitucional de 1988   

De acordo com Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado, a análise jurídica de qualquer diploma normativo e de qualquer norma jurídica no contexto de um sistema constitucional deve passar pelo exame e pela compreensão da lógica do sistema constitucional e de seus pilares fundamentais (DELGADO; DELGADO, 2018, p. 21). Dessa forma, faz-se necessário analisar o direito do trabalho e as normas trabalhistas (o que inclui a Lei nº 13.467/2017) à luz da Constituição.

Como se sabe, a Constituição de 1988 foi uma das grandes - se não a maior - impulsionadora de políticas públicas, com a implementação de um modelo democrático para administrar o país, tendo como fundamento principal a Dignidade da Pessoa Humana. No Direito do Trabalho, seus reflexos não foram diferentes.

A Constituição de 1988 possui três eixos centrais, conforme menciona Mauricio Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado (2018), quais sejam: a arquitetura constitucional de um Estado Democrático de Direito; a arquitetura principiológica humanística e social da Constituição da República; e a concepção constitucional de direitos fundamentais da pessoa.

O primeiro eixo, conforme mencionado, consiste na arquitetura de um Estado Democrático de Direito que possui um conceito construído por um constitucionalismo europeu ocidental num contexto de pós Segunda Guerra Mundial, onde nasce o novo paradigma de Estado, chamado de “Constitucionalismo Humanista e Social Contemporâneo”, sendo aplicado, inicialmente, nos modelos constitucionais da França de 1946, da Itália de 1947, da Alemanha de 1949, e, posteriormente, inserido pela Constituição de Portugal de 1976, e da Espanha de 1978. Mais tardiamente, esse novo constitucionalismo chegou ao Brasil por intermédio da Constituição da República de 1988, conforme Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado (2018).  Nesse contexto de mudanças, algumas características desse novo paradigma devem ser destacadas como:

[…] a consagração da matriz principiológica das novas constituições; a institucionalização da natureza normativa dos princípios jurídicos; a estruturação de um rol de princípios humanísticos e sociais imperativos, todos apontando para a centralidade da pessoa humana na ordem social, econômica e jurídica; o aprofundamento e sofisticação dos mecanismos democráticos da sociedade política e da sociedade civil; a extensão da ideia de Democracia para além do simples campo do Estado e de suas instituições, de maneira a fazê-la presente também no âmbito das instituições da vida social e econômica privada.  (DELGADO; DELGADO, 2019, p.27)

Assim, pode-se observar que o conceito estruturante de Estado Democrático de Direito tem como ponto principal a dignidade da pessoa humana. Insta salientar que, sem democracia e sem instituições que possibilitem práticas democráticas nas suas diversas dimensões, não é possível garantir a dignidade da pessoa em um Estado Democrático, perdendo este a sua consistência e eficiência. Portanto, isso quer dizer que o conceito constitucional de Estado Democrático de Direito traduz a ideia de participação e inclusão, envolvendo todos os segmentos populacionais.

O segundo eixo consiste na arquitetura principiológica humanística e social da Constituição. Desse modo, a nossa Carta Magna evidencia, como um de seus eixos principais, a presença dos princípios que abrangem, praticamente, todas as áreas do direito, não apenas o Direito do Trabalho alvo desta pesquisa, mas o Direito Tributário, Direito Civil, Direito Penal, Direito do Consumidor, entre outros. Assim, existem princípios específicos de cada área do Direito, mas também princípios que são basilares e fundamentais para todas as áreas, conhecidos como “princípios constitucionais”, que merecem ser destacados:  

[...] princípio da dignidade da pessoa humana; princípio da centralidade da pessoa humana na vida socioeconômica e na ordem jurídica; princípio da inviolabilidade do direito à vida; princípio do bem-estar individual e social; princípio da justiça social; princípio da submissão da propriedade à sua função socioambiental; princípio da não discriminação; princípio da igualdade (que se desdobra em igualdade em sentido formal e igualdade em sentido material - esta, aliás, uma das grandes inovações da Constituição de 1988); princípio da segurança; princípio da proporcionalidade e da razoabilidade; princípio da vedação do retrocesso social e da progressividade social. (DELGADO; DELGADO, 2019, p.30)

Conforme mencionado, o Direito do Trabalho, enquanto área jurídica, goza de princípios específicos. O Direito do Trabalho é dividido constitucionalmente em dois âmbitos, o Direito Individual do Trabalho e o Direito Coletivo do Trabalho, cada qual com princípios próprios. No âmbito do Direito Individual do Trabalho, Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado (2018) destacam os seguintes princípios [...] da norma mais favorável, o princípio da continuidade da relação de emprego; o princípio da irredutibilidade salarial. (p. 31) Enquanto na seara dos Direitos Coletivos do Trabalho, esses mesmos autores destacam os seguintes princípios [...] o princípio da liberdade associativa e sindical; o princípio da autonomia sindical; o princípio da interveniência sindical na negociação coletiva trabalhista; o princípio da equivalência entre os contratantes coletivos trabalhistas. (p. 32) Vale registrar que os princípios funcionam como limites constitucionais que devem ser levados ao intérprete do Direito.

E, por último, os três eixos se completam com o conceito constitucional de direitos fundamentais, que, de certo modo, reforça os eixos anteriores. Os direitos fundamentais se apresentam como corolário do Estado Democrático de Direito e dos princípios constitucionais. Na Constituição de 1998 estão previstos no Título I (Dos Princípios Fundamentais) e no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). O simples fato de o constituinte ter posicionado os direitos e garantias fundamentais logo nos primeiros títulos do texto indica a proeminência e a necessidade de proteção a esses direitos.

Nesse viés, a Constituição de 1988 percebeu o direito do trabalho como um dos veículos mais importantes de afirmação da Democracia, de forma que por meio do trabalho são garantidos diversos outros direitos fundamentais: [...] onde o direito ao trabalho não for minimamente assegurado (por exemplo, com respeito a integridade física e moral do trabalhador, o direito a contraprestação pecuniária mínima), não haverá dignidade que sobreviva (DELGADO, 2006, p.207). Assim, pode-se afirmar que o direito do trabalho faz parte do conjunto de valores humanos, intitulados de “mínimos existenciais”, que nas palavras do Ministro Luiz Edson Fachin constituem da:

(...) existência de uma garantia patrimonial mínima inerente a toda pessoa humana, integrante da respectiva esfera jurídica individual ao lado dos atributos pertinentes à própria condição humana. Trata-se de um patrimônio mínimo indispensável a uma vida digna do qual, em hipótese alguma, pode ser desapossada, cuja proteção está acima dos interesses dos credores. (FACHIN,2006)

 Nesse contexto, observando um dos fundamentos principais da nossa Carta Magna, qual seja, a dignidade da pessoa humana, considerada por vários juristas como de difícil conceituação, faz-se necessário alguns apontamentos, como no sentido de que esta não necessita estar positivada, pois não é algo que se proporciona através da Constituição ou de leis, ela é uma condição intrínseca ao ser humano, devendo o texto prezar por sua proteção e garantir a sua efetivação por meio dos seus vários ramos, sendo o direito do trabalho um destes, porquanto é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal (SARLET, 2012, p.44); ou seja, é o Estado que passa a servir o ser humano enquanto meio para promover a dignidade destes. Destaca-se que tal conceito deve ser observado durante todo o desenvolvimento interpretativo da Lei nº 13.467/17 (reforma trabalhista).

No que diz respeito ao direito do trabalho com o advento da Constituição de 1988, é notória a intenção da mesma em enaltecer tal âmbito, conferindo valorização que pode ser observada de antemão no próprio preâmbulo do texto constitucional, igualmente em seu Título I, no artigo 1º, inciso IV, quando menciona os valores sociais do trabalho como sendo um de seus fundamentos, bem como, no seu artigo 7º, onde elenca diversos direitos que devem ser assegurados aos trabalhadores, a saber: o FGTS, salário-mínimo, proteção a dispensa arbitraria e sem justa causa, feriais anuais remuneradas, entre outros não menos importantes.

A Constituição de 1988 almeja, ao longo de seu texto uma forma de trabalho específica que garanta a dignidade do trabalhador, o que se traduz na expressão “trabalho digno”. O trabalho digno pode ser entendido como aquele que protege o empregado, proteção que advém da lei, seja por meio da Constituição, seja pelas leis infraconstitucionais. No texto constitucional, trabalho digno está definido ao longo do artigo 7º que detalha diversas garantias, conforme mencionado anteriormente. Tais garantias, devem ser encaradas como um aparato mínimo a ser respeitado em qualquer tipo de contratação trabalhista. Assim, o trabalhador não deve ser visto como mero instrumento para movimentar o mercado capitalista. Deve ser dado valor ao trabalho. Devem ser garantidos aos trabalhadores condições mínimas que garantam a sua dignidade enquanto pessoa humana. Salienta-se, por fim, que o conceito completo de “trabalho digno” advém da soma da proteção prevista no texto constitucional, infraconstitucional e também da proteção decorrente de normas internacionais (a exemplo das convenções internacionais da OIT).

O posicionamento dos direitos trabalhistas no Título II da Constituição indica a proeminência de tais direitos que passaram a ser categorizados como direitos e garantias fundamentais, o que é uma grandíssima novidade e que inverteu (ou que deveria ter invertido...) a lógica de subordinação do bem-estar e da dignidade do trabalhador aos interesses do capital. Vale ressaltar que, em Cartas Magnas anteriores, os direitos trabalhistas estavam previstos no capítulo que cuidava da ordem econômica.

No tópico seguinte será trabalhado o contrato intermitente desde uma breve contextualização, até a sua chegada ao direito pátrio com a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467 em 2017).

2.2. A caracterização do contrato intermitente segundo a ‘Reforma Trabalhista’ - Lei nº 13.467/17

Em um sucinto contexto histórico, o trabalho intermitente surge na Inglaterra no século XX, por volta de 1970, visando a a bafar a crise econômica que vivia o Reino Unido por meio da flexibilização de determinadas regras trabalhistas. Partindo desse pressuposto, muitos juristas consideram que o modelo inglês foi um dos grandes influenciadores do legislador brasileiro em diversos aspectos. Atualmente, este trabalho ganhou ênfase em países como Itália, Portugal e por fim, o Brasil.

 No Brasil, o contrato de trabalho intermitente alcançou destaque apenas com a Lei nº 13.467/2017, responsável por diversas alterações na CLT, que segundo o Ministro Ronaldo Nogueira, em audiência pública, possuiu, como objetivo, modernizar a legislação trabalhista[1], pois a CLT é de 1943 e já vinha sofrendo com o seu atraso e a sua escassez, além de a reforma ter sido justificada, por tal ministro, como a solução para a crise de empregos no país. (JÚNIOR, 2017)

2.2.1. Conceituação

De acordo com Ramalho (2009), o contrato de trabalho intermitente enquanto nova modalidade de contrato de trabalho:

[...] caracteriza-se pela prestação descontinuada da atividade laboral, intercalando períodos de atividade do trabalhador com períodos de inatividade, mas durante os quais o vínculo laboral se mantém [...]. A especificidade deste contrato em relação ao contrato de trabalho comum reside justamente nesta conjugação de períodos de atividade e de inatividade com disponibilidade, que não existe nos vínculos laborais comuns (RAMALHO, 2009, p. 346)

Sendo assim, uma das principais alterações sofridas pela CLT, foi a inserção do parágrafo terceiro do artigo 443, que trouxe a conceituação de contrato de trabalho intermitente, vide:

Art. 443.  O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente.

§3º Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria. (BRASIL, 1943)

É possível observar a partir desse conceito, o forte viés da Reforma Trabalhista, em facilitar, a qualquer custo e de qualquer jeito, a inserção do empregado no mercado de trabalho formal, de forma a incentivar um contrato com menos formalidades do que o contrato individual de trabalho, pois ele preza por uma prestação de serviço que não é continua, ou seja, vai haver uma alternância entre a prestação de serviço e a inatividade, podendo esse período de alternância ser de horas, dias ou até mesmo meses.

O legislador reformista, portanto, não se importou com a qualidade do emprego. A sua intenção era retirar da estatística de desempregados o maior número possível de pessoas, ainda que essa nova modalidade de emprego não assegurasse, ao prestador de serviço, segurança econômica maior do que a de um “bico”[2].

Insta salientar que esse tipo de contrato pode ser utilizado independentemente do tipo de atividade que exerce, tanto o empregado quanto o empregador, havendo uma restrição apenas no que diz respeito aos aeronautas por vedação legal, devido a esta atividade ter legislação própria.

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 Nesse contrato, o empregado é convocado de acordo com a necessidade e demanda do empregador, sendo pago somente pelas horas em que realmente prestou o serviço. Desse modo, não se contabiliza como tempo remunerado o que se convencionou chamar de “tempo à disposição”. Essa imprevisibilidade de remuneração a ser percebida pelo empregado ao final do mês trata-se do principal aspecto negativo do contrato para o empregado.

Para os defensores do trabalho intermitente, a imprevisão da jornada de trabalho e o pouco tempo que o empregado precisará se dedicar ao vínculo intermitente possibilitaria que o empregado prestasse serviços a vários empregadores[3] ao mesmo tempo.

2.2.2. Aspectos Legais do Contrato Intermitente

Uma segunda alteração de grande importância foi a inserção do artigo 452-A na CLT que foi responsável por detalhar os aspectos legais do contrato intermitente:

Artigo 452-A. O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não.

§ 1º O empregador convocará, por qualquer meio de comunicação eficaz, para a prestação de serviços, informando qual será a jornada, com, pelo menos, três dias corridos de antecedência.

§ 2º Recebida a convocação, o empregado terá o prazo de um dia útil para responder ao chamado, presumindo-se, no silêncio, a recusa.

§ 3º A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente.

§ 4º Aceita a oferta para o comparecimento ao trabalho, a parte que descumprir, sem justo motivo, pagará à outra parte, no prazo de trinta dias, multa de 50% (cinquenta por cento) da remuneração que seria devida, permitida a compensação em igual prazo.

§ 5º O período de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes.

§ 6º Ao final de cada período de prestação de serviço, o empregado receberá o pagamento imediato das seguintes parcelas:

I - remuneração;

II - férias proporcionais com acréscimo de um terço;

III - décimo terceiro salário proporcional;

IV - repouso semanal remunerado; e

V - adicionais legais.

§ 7º O recibo de pagamento deverá conter a discriminação dos valores pagos relativos a cada uma das parcelas referidas no § 6º deste artigo.

§ 8º O empregador efetuará o recolhimento da contribuição previdenciária e o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, na forma da lei, com base nos valores pagos no período mensal e fornecerá ao empregado comprovante do cumprimento dessas obrigações.

§ 9º A cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir, nos doze meses subsequentes, um mês de férias, período no qual não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo empregador.” (BRASIL, 1943)

Conforme exposto no caput, o contrato intermitente deve ser por escrito, e conter especificamente o valor da hora de trabalho, vale ressaltar, que a CLT deixa claro ainda que o valor da hora não pode ser inferior ao salário mínimo, e ainda, não pode ser inferior ao valor dos demais empregados que exercem a mesma função, sejam esses empregados intermitentes ou não.

Segundo Vólia Bonfim Cassar, essa formalidade exigida pelo caput é essencial para validade da “cláusula de intermitência”, pois se o empregado for contratado de forma diversa, por exemplo, de forma oral ou de forma tácita, a ele não se aplicarão as regras do contrato intermitente, prevalecendo, nesse caso, a regra geral disposta na CLT.

O parágrafo 1º (primeiro) do referido artigo, traz uma inovação no que diz respeito a convocação do empregado. A convocação pode ser feita por qualquer meio de comunicação eficaz, o que de praxe já gera uma dúvida, seriam as redes sociais meios de comunicação eficientes para uma convocação de prestação de serviço? O legislador não deixou respostas.

Retomando a discussão, a convocação deve ser realizada com 3 (três) dias corridos de antecedência, bem como, deve ser informado nesse momento qual será a jornada a ser cumprida pelo empregado.

O parágrafo 2º (segundo) esclarece como deve ser a resposta do empregado à convocação. Ela deverá ocorrer em até vinte e quatro horas, sendo o silêncio interpretado como recusa à prestação de serviço.

Insta salientar que, por expressa disposição legal, a recusa pelo empregado não será considerada insubordinação, o que configuraria uma hipótese de dispensa por justa causa. Assim, havendo recusa ou silêncio de um empregado, o empregador poderá chamar o próximo da fila ou até mesmo convocar um outro empregado.

O artigo 452-A da CLT traz algumas punições – tanto para o empregado quanto para o empregador – quando houver descumprimento, sem justo motivo, do combinado anteriormente. Tal punição é efetivada por meio de multa igual a 50% da contraprestação que seria devida ao empregado caso ele tivesse sido ativado durante 30 dias, sendo permitida a compensação em igual prazo. Essa possibilidade de compensação em 30 (trinta) dias consiste no fato do empregado poder cumprir as referidas horas ou dias de trabalho sem que ocorra a incidência da multa, ou seja, o empregado “paga” a multa prestando o serviço.

Vale ressaltar que essa multa não poderá ser alterada por outro meio diverso como inserção de cláusula penal no contrato, ou alguma outra forma de reparação recíproca, pois o artigo 452-B da CLT, incluído pela Medida Provisória nº 808/2017 que permitia tal disposição teve sua vigência encerrada juntamente com a MP.

Dando prosseguimento à análise do artigo 452-A, o seu parágrafo 5º (quinto), trouxe uma novidade no que tange ao período de inatividade do empregado. O período de inatividade, consiste no período sem trabalho para o empregado. No contrato intermitente, esse período não será considerado tempo à disposição, segundo a Vólia Bonfim Cassar. Enquanto durar a inatividade, para fins contratuais, estar-se-á diante de mais uma hipótese de suspensão do contrato de trabalho, não sendo devido FGTS, salário ou qualquer benefício.

O parágrafo 6º (sexto) traz as verbas que devem ser pagas ao empregado ao final de cada prestação laboral, quais sejam: salários ou saldo de salário acompanhados de férias proporcionais com 1/3, 13º (décimo terceiro) salário proporcional, repouso semanal remunerado e adicionais legais. Nesse sentido, foi promulgada em 2018 a Portaria nº 349 com o intuito de esclarecer pontos celetistas acerca do trabalhador autônomo, das comissões de fábrica, da forma de recolhimento do FGTS e por fim, do contrato intermitente. O parágrafo primeiro do artigo 2º de tal portaria explica que o empregado, mediante prévio acordo com o empregador, poderá usufruir suas férias em até três períodos, nos termos dos §§ 1º e 3º do art. 134 da Consolidação das Leis do Trabalho (PORTARIA MTE, 2018). Assim, garante ao empregado intermitente o parcelamento das férias igualmente aos demais empregados de outros modelos de contrato de trabalho.

 Todas essas verbas devem estar discriminadas no recibo de pagamento, o que configura um ponto positivo, pois é um reforço acerca da proibição do salário complessivo[4].

Por fim, no tocante ao parágrafo oitavo, o legislador prevê a obrigatoriedade do empregador em fornecer ao seu empregado o comprovante de recolhimento do FGTS, bem como, da Previdência Social.

Após, a análise detalhada realizada, no tópico seguinte, serão abordadas as possíveis precarizações trazidas pelo contrato intermitente e os consequentes afrontes a Constituição de 1988 que as acompanham.

2.3. A precarização das condições de trabalho no contrato intermitente na contramão da Constituição de 1988

O Contrato Intermitente, conforme já mencionado, foi trazido para o Brasil por meio da chamada “Reforma Trabalhista”, com o intuito de modernizar as relações de trabalho no país, de modo que o empregador estaria dispensado de manter um número maior de funcionários em determinadas épocas, sendo que, nos demais momentos, esse aumento no quadro de funcionários não se via necessário, de tal forma que beneficiaria o empregado que conseguisse uma maior flexibilidade de horário, podendo usar o tempo livre, inclusive para realizar outras atividades econômicas.

Dessa forma, um dos primeiros apontamentos a fazer acerca das mitigações conduzidas por essa nova modalidade é a imprevisibilidade e a insegurança que ela traz para o empregado, em diversos aspectos, o que será apontado na sequência.  

Embora a legislação descreva que o prazo de convocação desse empregado deve ser de 3 (três) dias corridos para a prestação laboral, esse simples aspecto faz com que o empregado fique, de uma certa maneira, “por conta” do empregador, uma vez que a sua jornada está submetida à vontade do mesmo, comprometendo, inclusive, a oportunidade de tal empregado procurar novos postos laborais, pois estará vinculado a um empregador, e pode ser convocado a qualquer momento.

Vê-se que na previsão legal do trabalho intermitente não há uma jornada mínima de trabalho fixa ao empregado, fazendo com que este fique à espera da convocação do empregador sem nem mesmo ter certeza de que um dia será chamado ao trabalho.

Nesse sentido, alguns autores favoráveis ao contrato intermitente relatam que um ponto positivo a favor do empregado é justamente o fato de este não ter uma jornada fixa, e poder submeter a vários outros empregos, ou melhor, a vários outros empregadores. Porém, conforme os dados que serão expostos a frente, retirados do CAGED – Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, referentes a março de 2019, demonstram que apesar do número de contratos intermitentes celebrados em comparação a março de 2018 ser consideravelmente maior, é possível examinar que apenas 69 empregados, foram contratados em mais de um trabalho intermitente:

Em março de 2019, houve 10.328 admissões e 4.287 desligamentos na modalidade de trabalho intermitente, gerando saldo de 6.041 empregos, envolvendo 2.216 estabelecimentos e 1.720 empresas contratantes. Um total de 69 empregados celebrou mais de um contrato na condição de trabalhador intermitente.

Esse resultado representa uma expansão de 2.842 mil empregos (88%) nessa modalidade na comparação com março de 2018, quando o saldo observado foi de 3.199 mil empregos intermitentes.

Do ponto de vista setorial, o saldo de emprego na modalidade de trabalho intermitente distribuiu-se por Comércio (2.301), Serviços (2.256), Construção Civil (860), Indústria de Transformação (608), Extrativa Mineral (9), SIUP (4), Agricultura (4) e Administração Pública (0).

As dez principais ocupações segundo saldo de empregos foram: vendedor de comercio varejista (975 postos); faxineiro (739); vigilante (692); auxiliar de escritório, em geral (674); operador de caixa (594); assistente administrativo (545); motorista de caminhão (498); alimentador de linha de produção (461); porteiro de edifícios (312); e recepcionistas em geral (284). (ME, CAGED, 2019)

Assim, a intenção do legislador brasileiro ao permitir que o empregado realize vários contratos intermitentes, cai por terra, pois de acordo com os dados retro, não tem surtido efeitos, haja vista que o número de empregadores que contrataram mais de um empregado intermitente, foi mínimo.

Outro ponto a se destacar diz respeito ao fato de o legislador não ter regulamentado uma jornada mínima para o empregado intermitente, de modo que o mesmo pode ser convocado por tempo extremamente diminuto, não sendo-lhe garantida renda digna (como será objeto de discussão posteriormente). Situação esta que beneficia apenas a empresa, ou melhor, o empregador, pois terá um empregado a baixo custo, sempre a sua espera, enquanto a sua margem de lucro acelera devido a omissão legislativa acerca da modalidade trabalhista.

Outra consequência nefasta para o empregado intermitente – mas que, até o momento, como demonstrado pelos dados do CAGED, não tem se materializado – tem a ver com a tentativa de o empregado compensar a sua baixa remuneração vinculando-se a vários empregadores diversos. É bastante factível que, se isso passar a ocorrer, até considerando a imprevisibilidade do contrato, o empregado opte por trabalhar o máximo de horas que puder, enquanto houver convocação. Como, nesse exemplo hipotético, estar-se-ia diante de vários empregadores, não haveria qualquer tipo de limitação à realização de horas extras (em relação a um único empregado, a lei autoriza a realização de, no máximo, duas horas extras), o que, na prática, poderia importar em o empregado se submeter a jornadas muito longas, prejudicando, assim, a sua saúde.

Ademais, a inexistência do direito de ser remunerado pelo período de inatividade, é outra grande desvantagem para o empregado no contrato intermitente. Isso acontece porque, de acordo com a CLT reformada, no que tange ao contrato intermitente, o tempo à disposição não é contabilizado para fins de remuneração. Nesse sentido, Mauricio Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado apontam: A Lei nº 13.467/2017, entretanto, ladinamente, tenta criar conceito novo: a realidade do tempo à disposição do empregador, porém sem os efeitos jurídicos do tempo à disposição. (DELGADO; DELGADO, 2018, p. 154)

A verdade é que o contrato intermitente só assegura o pagamento durante o tempo efetivamente trabalhado. Enquanto o empregado não for chamado, estar desempregado ou ser um “empregado intermitente” deve ser encarado como situações totalmente idênticas.  Afirmações estas confirmadas pelo Ministério Público do Trabalho:

Ao atrelar a prestações de serviços e a remuneração dos empregados, apenas e exclusivamente, às necessidades da empresa, o Projeto equipara os trabalhadores aos demais insumos da produção. Assim, confere ao trabalhador a mesma natureza tarifada, conforme o uso, a exemplo dos itens que compõem a planilha de custos das empresas: energia elétrica, serviços telefônicos e máquinas locadas. Ou seja, não haverá pagamento enquanto o trabalhador estiver à disposição do empregador sem que haja produção. Ao vincular, integralmente, a remuneração do trabalhador ao sucesso do empreendimento, o projeto de lei põe em risco (ou inviabiliza) o suprimento das necessidades vitais básicas do ser humano que trabalha, comprometendo um mínimo existencial que não é móvel, variável ou flexível. [...] O projeto de lei agride, ainda, o disposto no artigo 4º da CLT segundo o qual o tempo em que o trabalhador estiver a disposição da empresa deve ser por ela remunerado, até porque, considerando os princípios constitucionais já mencionados, o trabalhador deve  receber contrapartida remuneratória mensal mínima,  de forma a assegurar a sua subsistência.  (MPT, 2017, p.2-3)

Em resumo: a reforma, por meio do contrato intermitente, visa romper com dois eixos do Direito do Trabalho, quais sejam: a duração do trabalho, que compreende a jornada, e a remuneração, que compreende a noção de salário.

Uma das maiores críticas em relação ao contrato intermitente é o fato deste ser considerado por alguns autores, como a Vólia Bonfim Cassar e Maurício Godinho Delgado,  como sendo um trabalho “sem salário”; ou melhor, o salário pode até existir, mas, eventualmente, quando o empregado for convocado para prestar serviço, ele receberá apenas o proporcional ao tempo que trabalhou, o que acarreta em um grande risco desse empregado não receber o salário-mínimo, que é um direito fundamental, garantido no artigo 7º, IV e VII da Constituição Federal de 1988.

A esse respeito, vale invocar o art. 7º, incisos IV e VII que, juntos, proíbem, mesmo quando a remuneração é variável, a percepção de salário inferior ao mínimo:

(…) IV - salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim o social.

 VII - garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável; (BRASIL, 1988)

Partindo desses pressupostos, tal situação faz com que o empregado que trabalha por apenas três horas em dois dias de serviço no mês receba apenas o equivalente às seis horas trabalhadas, por exemplo. Nessa lógica, destaca Mauricio Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado:

(...) a noção do salário sofre tentativa de desestruturação pela Lei da Reforma Trabalhista: conceituando como a parcela contra prestativa devida e paga pelo empregador a seu empregado em virtude da existência do contrato de trabalho, a verba salarial pode ser por unidade de tempo (salário mensal fixo – o tipo mais comum de salário), por unidade de obra (salário mensal variável, em face de certa produção por parte do obreiro), ou por critério misto (denominado salário-tarefa, que envolve as duas fórmulas de cálculo).

Lidos, apressadamente, e em sua literalidade, os novos preceitos jurídicos parecem querer criar um contrato de trabalho sem salário. Ou melhor: o salário poderá existir, ocasionalmente, se, e quando, o trabalhador for convocado para o trabalho, uma vez que ele terá o seu pagamento devido na estrita medida desse trabalho ocasional. (DELGADO; DELGADO, 2017, p.154/155)

Nesse aspecto, reforçam alguns autores a insegurança em que o empregado é colocado ao dispor de tal modalidade trabalhista, de maneira que, na maioria das vezes, em um mercado tão concorrido e precário como o atual, não se veem diante de outra opção, a não ser se submeter a essa prática que afronta diretamente seus valores, enquanto pessoa humana, digna do respaldo constitucional:

Há ainda o temor de que essa forma de contrato de trabalho precarize ainda mais o trabalhador de baixa renda por permitir que, dependendo das horas trabalhadas, esse empregado possa ganhar menos que um salário mínimo e que o período de inatividade se converta em tempo à disposição do empregador sem nenhuma remuneração, considerando que, no Brasil, muitas vezes o empregado só possui passagem de ida e volta do trabalho, o que o impede de voltar para casa nos períodos de inatividade e esse tenha que ficar nos arredores da empresa esperando o próximo chamamento. (SANTOS; FARIA; NETO, 2018, p.74)

Dessarte, o fato de o contrato intermitente não assegurar ao prestador de serviço nem mesmo o salário mínimo repercute em outras várias violações, pois o salário digno também é meio de alcance para diversos outros direitos fundamentais, como a propriedade, alimentação, vestuário, lazer, saúde, entre outros.

Outra observação deve ser feita, no que se refere à previsão de pagamento das férias proporcionais, pois conforme mencionado no tópico anterior, caso o pagamento das férias proporcionais acrescidas de 1/3 for efetuado a cada período laborado, tem-se grande risco dessas férias serem gozadas anualmente sem qualquer pagamento, o que acaba por violar frontalmente o disposto no art. 7°, inciso XVII, da Constituição Federal de 1988, que o gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal. (BRASIL,1988)

Assim, o artigo 452-A, parágrafo nono da CLT traz expressamente o direito ao gozo de férias anuais de 30 (trinta) dias, mas, no entanto, não existe gozo de férias sem a adequada remuneração acrescida de 1/3, conforme se vê na norma constitucional mencionada acima. Violação essa, podendo ser observada também pelo artigo 611-B, inciso XII da CLT, que menciona as férias anuais de 30 (trinta) dias, acrescidas de 1/3, no rol de direitos que não podem ser alterados nem por via da negociação coletiva.

Mais um elemento a se considerar é a transferência dos riscos do empreendimento do empregador para o empregado. Em oposição ao entendimento majoritário de que os riscos são transferidos ao empregado, o Senador Ricardo Ferraço diz:

Sem dúvida, uma das principais inovações desta proposta é a criação do trabalho intermitente, feita pelos arts. 443 e 452-A da CLT, na forma do projeto. Não concordamos com os argumentos colecionados pelos opositores da proposta de que ela transfere o risco da atividade econômica da empresa para o empregador, violando a função social da propriedade prevista na Constituição e tratando o trabalhador como um insumo qualquer. Pelo contrário, esta é uma medida destinada a reduzir nossos altos índices de rotatividade e a permitir a inclusão no mercado de trabalho de jovens, mulheres e idosos, que têm maior dificuldade de cumprir a jornada “cheia”. (FERRAÇO, 2017, p.72).

Entretanto, ao observar a realidade acerca da referida modalidade contratual, é possível concluir que o empregado somente prestará serviços se houver demanda, ou seja, rompe com a principal característica do empregador, prevista no art. 2º da CLT que dispõe que considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. (BRASIL, 1943)

Em outras palavras, segundo a CLT, é o empregador que deve assumir os riscos da atividade econômica. Assim, transferir o risco da atividade econômica do empregador para o empregado, que é considerado a parte hipossuficiente da relação, viola, mais uma vez, alicerces básicos do Direito do Trabalho e, porque não, viola também os princípios da dignidade da pessoa do trabalhador e do valor social do trabalho.

Invocando outro princípio, dessa vez Constitucional, importa registrar que o trabalho intermitente é avesso ao princípio da valorização do trabalho humano expresso na Constituição Federal, desde o preâmbulo, seguido do artigo 1, 3 e 170:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Artigo 1 - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

 I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (BRASIL, 1988) “

Consequentemente, o princípio da valorização do trabalho humano é um dos pilares da ordem econômica e social brasileira e é adotado com o intuito de garantir e promover a dignidade humana, bem como assegurar uma existência digna. Havendo violação aos direitos inerentes aos trabalhadores, como jornada de trabalho e salário-mínimo, não há como se falar em valorização do trabalho, tampouco a busca pelo emprego digno.

Outra precarização, diz respeito ao princípio da vedação ao retrocesso social que deve ser visto como uma forma de proteger os direitos fundamentais, visto que:

Não se trata, pois, de proibir um retrocesso social captado em termos ideológicos ou formulado em termos gerias ou de garantir em abstracto um status quo social, mas de proteger direitos fundamentais sociais sobretudo no seu núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade tem como limite o núcleo essencial já realizado, sobretudo quando o núcleo essencial se reconduz à garantia do mínimo de existência condigna inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. (CANOTILHO, 2003, p. 340)

Na defesa do princípio da vedação ao retrocesso social, dispõe Gabriela Neves Delgado:

[...] refletir sobre o trabalho é transgredir a ordem até então imposta, aprender a lançar um novo olhar sobre o trabalho no mundo contemporâneo. Reconhecer o Direito do Trabalho em sua incompletude é fundamento para poder transformá-lo. [...] Considera-se, todavia, que as mudanças jurídicas a serem implementadas devem fundamentar-se na lógica finalística originária do Direito do Trabalho. Ou seja, qualquer mudança legislativa deverá propor a melhoria das condições de trabalho em favor do obreiro, e não a precarização da prestação de serviços, desenvolvida conforme interesse privado e egoístico do mercado (DELGADO, 2006. p. 239.).

Desse modo, pode-se observar que, por não garantir direitos mínimos ao empregado, o contrato intermitente não deve ser visto como fundado na valorização do trabalho humano, não assegurando a existência digna, sendo ainda um desrespeito ao princípio da vedação ao retrocesso social, de forma a modificar direitos para diminui-los, não respeitando ditames mínimos expressos no texto constitucional. Essa precarização dos direitos fundamentais foi reconhecida pelo próprio Ministério Público do Trabalho, em nota divulgada, em janeiro de 2017, nos seguintes termos:

Em suma, a proposta contraria princípios basilares da Carta Magna de 1988, inscritos entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, consistentes na dignidade da pessoa humana ( artigo 1º, III); na valorização social do trabalho ( artigo 1º, IV e 170, caput); e na função social da propriedade ( artigo 170, III) [...] este modelo mostra-se perverso em relação à situação do trabalhador. Coisifica a pessoa humana, desconsidera a função social da empresa e ignora que os trabalhadores possuem necessidades vitais básicas para a sua subsistência.” (MPT, 2017, p. 8).

Portanto, tal contrato resulta na flexibilização dos direitos trabalhistas que fragiliza os direitos fundamentais do trabalhador, pois torna o trabalho precário, reduzindo o ser humano a uma mera matéria-prima da produção. Assim, menciona Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado:

[...] não há dúvida de que a nova fórmula jurídica poderá ter um efeito avassalador quanto ao rebaixamento do valor trabalho na economia e sociedade brasileiras. É que ostentando essa fórmula uma amplitude bastante extensa (vide a generalidade da regra constante do § 3º do art. 443 da CLT), ela tenderá a instigar os bons empregadores a precarizarem sua estratégia de contratação trabalhista tão logo os concorrentes iniciarem esse tipo de prática. Afinal, como a Sociologia e a Medicina explicam, as más práticas se deflagram e se generalizam epidemicamente, ao passo que as boas práticas levam longo tempo de maturação, aculturação, insistência e educação para prevalecerem. (DELGADO; DELGADO, 2018, p. 156)

No âmbito do Direito Internacional, abarcado pelas convenções, tem-se a Convenção de nº 95 da OIT - Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil desde 1957, em seu artigo 4, alínea “b”, nos seguintes termos:

Art. 4 - 1. A legislação nacional, as convenções coletivas ou as sentenças arbitrais podem permitir o pagamento parcial do salário em espécie nas indústrias ou nas profissões em causa. O pagamento do salário sob forma de bebidas alcoólicas ou de drogas nocivas não será admitido em caso algum. 2. Nos casos em que o pagamento parcial do salário em espécie é autorizado, serão tomadas medidas apropriadas para que: a) as prestações em espécie sirvam para o uso pessoal do trabalhador e de sua família e lhes tragam benefício; b) o valor atribuído a essas prestações seja justo e razoável. (BRASIL, 1957).

É possível observar que há uma violação constitucional, e também internacional, quanto à Convenção da OIT, quando o artigo 4º, menciona que o valor das prestações laborais deve ser justo e razoável. Dessarte, não garantir o salário mínimo, nem exigir a previsão de qualquer quantia fixa (garantia mínima de salário mesmo nos períodos de maior inatividade) fer o planejamento econômico do empregado e consequentemente o de sua família, além de infringir o conceito de trabalho digno previsto constitucionalmente.

Finda a primeira parte da discussão, será abordado, no capítulo seguinte, o contrato intermitente sob a perspectiva do direito estrangeiro. Serão descritos os modelos de países como Itália e Portugal, enquanto influência e impulso para o legislador brasileiro.

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Sobre a autora
Ana Carolina Ávila Cavalcante

Advogado, Correspondente jurídico

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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