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Nélson Hungria (súmula: vida e obra)

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18/10/2020 às 23:58
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Súmula da vida e da obra de Nélson Hungria (1891-1969), Ministro do Supremo Tribunal Federal: reputado, por unânime consenso dos doutos, o maior penalista brasileiro de todos os tempos.

Nélson Hungria (Súmula: Vida e Obra)

Discurso de Posse na Academia Brasileira de Ciências, Artes, História e Literatura (ABRASCI)

I. Exórdio

Excelentíssimas Senhoras e Senhores:

Membro recém-eleito desta prestigiosa Academia Brasileira de Ciências, Artes, História e Literatura (ABRASCI), corre-me satisfazer, liminarmente, à grave obrigação contraída para com aqueles que, dando de mão talvez aos conselhos da prudência, deliberaram entre si acolher em seu grêmio este obscuro candidato.

A presunção do mérito, que generosamente afirmastes a meu favor, interpreto-a por expressão da universal benevolência com que as sociedades culturais costumam incentivar os que lhes vêm bater à porta. Por inculcar magnanimidade, esse ato muito me desvaneceu e penhorou; recebo-o, pois, com profundo reconhecimento; trata-se de dívida que jamais poderei suficientemente resgatar; mas, visto não prescreve nunca (por ser dívida de gratidão), sempre achareis em mim uma alma agradecida.

Outra questão, que por sem dúvida estará alguém a agitar nesta augusta assembleia de intelectuais, diz com o motivo que induziu sujeito adiantado já em anos a pleitear assento em academia de tão larga e notória reputação.

Entro, pois, a declinar as razões por que requeri à vossa autoridade meu ingresso no sodalício. (Faço-o, escusava dizê-lo, sob o regime de estrita e sincera confissão).

Em primeiro lugar, cedi àquela força irresistível que a todos impele e exorta, de contínuo, a acrescentar os cabedais de espírito, isto é, a paixão do saber inerente à condição humana. Dados à lição da História, sabeis que o célebre Catão (o Antigo), rastejando embora pelos 80 anos, determinou consigo aprender a língua grega, para comprazer-se de ler no original a Ilíada e a Odisseia de Homero [1].

E não admira deitasse a barra tão longe, se atentarmos naquilo de Rafael Bluteau, glória das letras portuguesas: “Neste mundo, a maior bem-aventurança do homem, abaixo da graça de Deus, é o saber, porque saber é conhecer a verdade, e neste conhecimento se cifra a bem-aventurança da criatura intelectual” [2].

O outro móvel que sói atrair os profanos para os círculos das entidades culturais é o raro prazer da convivência com pessoas que, por mui particulares e invejáveis atributos, estão muito acima da craveira comum.

Quem, falando lisa e francamente, não disputaria a honra de pertencer a uma confraria onde pudesse privar do convívio de sujeitos que se abalizaram nas ciências, letras e virtudes?!

Haverá nada mais edificante e aprazível do que praticar com os integrantes de uma assembleia de doutos?!

Estou que não!

Figurai-vos, por um momento, meus amigos, entre os membros desta academia… Que é o que veríeis? Grãos expoentes das ciências e das letras, a uns — versados nas ciências médicas — ouviríeis que o homem (que Alexis Carrel apelidava de grande desconhecido) devia confirmar-se numa certeza: “A Humanidade jamais ganhou nada pelo esforço da multidão. É a paixão de alguns indivíduos, a chama da sua inteligência, o seu ideal de ciência, de caridade e de beleza que a fazem progredir” [3].

Entre os membros desta egrégia corporação encontraríeis ainda quem, tomando a palavra ao eloquente Cícero, repetisse, com enlevo, que a História é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mestra da vida e a mensageira da antiguidade [4].

Na esfera da Ciência Política e da Arte Literária também haveríeis de identificar, nessa alegoria de notáveis, alguns que, sob a inspiração do excelso Rui, verberassem:

“De tanto ver triunfar as nulidades,

de tanto ver prosperar a desonra,

de tanto ver crescer a injustiça,

de tanto ver agigantarem-se

os poderes nas mãos dos maus,

o homem chega a desanimar da virtude,

a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” [5].

À derradeira, não era improvável que, numa tertúlia tão comum aos cenáculos acadêmicos, um dos presentes ostentasse insígnias do Direito e da Justiça: a Lei das XII Tábuas, a balança e o gládio. E que, particularizando mais a hipótese, esse ente de razão pertencente à linhagem dos penalistas acertasse de declamar, com estilo próprio: “Quando grosseiramente inverossímil, a defesa do réu é mais um indício de sua culpabilidade” [6].

Ou então: “A pena traduz, primacialmente, um princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” [7].

Acabava de recordar a alta doutrina daquele que, segundo o voto de autores de grande suposição, passa pelo maior penalista brasileiro: Nélson Hungria, a quem escolhi por patrono de minha investidura acadêmica.

Assaz conhecidos são os títulos que o credenciaram a conspícuo lugar no panteão dos luminares do Direito.

II. Biografia do Patrono

Esse, que a comunidade jurídica reverencia e exalta sob o epíteto de “O Pontífice Máximo de nosso Direito Penal” [8], nasceu no dia 16 de maio de 1891, na cidade de Além Paraíba, em Minas Gerais[9].

Renunciando ao patronímico “Hoffbauer”, de seus maiores, adotou o nome vocatório ou regimental de “Nélson Hungria”.

Apenas colou grau de bacharel em direito, foi nomeado, em 1909, aos 19 anos de sua idade, Promotor Público de Rio Pomba (MG), cargo que exerceu por 11 anos. A seguir, passou a Belo Horizonte; aí, enquanto se desempenhava do ofício de Redator de Debates da Câmara Legislativa, dedicava-se ao árduo múnus da Advocacia. Veio, depois, para o Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, onde exerceu, por nomeação, as funções de Delegado de Polícia até o ano de 1922. Em 1924, aprovado em concurso no qual conquistou o primeiro lugar, ingressou na Magistratura, tocando-lhe a 8a. Pretoria Criminal. Foi então provido no cargo de Juiz de Direito das Varas de Órfãos e da Fazenda Nacional. Nomeado Desembargador do Tribunal de Justiça do ex-Distrito Federal em 1944, foi, por fim, em 1951, exaltado ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, por decreto do Presidente Getúlio Vargas.

Regeu ainda a cadeira de Direito Penal na Faculdade Nacional de Direito.

Foi coautor e principal elaborador do Código Penal de 1940, cuja Exposição de Motivos escreveu, posto que a assinasse o Ministro da Justiça Francisco Campos (cognominado “Chico Ciência”). Afirmou-o quem estava em condições de poder informá-lo, porque seu mais leal discípulo e amigo: Heleno Cláudio Fragoso [10].

Reputam-no os críticos o mais autorizado exegeta da Lei Penal, e os Comentários do Código Penal (sua obra-prima) um soberbo monumento de saber profundo e vasta erudição, que nenhum criminalista desconhece; para aqueles que ainda o não possuem cabe a recomendação de Cujácio a respeito de Paulo de Castro, jurista português: Quem o não tivesse, vendesse a camisa para comprá-lo [11].

Saíram também de sua pena bem aparada as seguintes obras: Fraude Penal (1934), Legítima Defesa Putativa, Questões Jurídico-Penais (1940), Novas Questões Jurídico-Penais (1945), Dos Crimes contra a Economia Popular, Crimes em Espécie, além de artigos (perto de uma centena) publicados em revistas especializadas.

Representou o Brasil, em 1940, no Segundo Congresso de Criminologia, no Chile.

Aposentado compulsoriamente (em 1961, que entrara na casa aritmética dos 70 anos), inscreveu-se na respectiva seção da Ordem e reencetou sua banca de advogado. Na gloriosa milícia de Justiniano continuou a despender, qual luz intelectual de seu tempo, inestimáveis tesouros de ciência jurídica, até que o veio buscar a morte, em 26 de março de 1969.

III. Formação intelectual de Nélson Hungria

Aliava dois predicados, que dificilmente concorrem num só indivíduo: consumado jurista e escritor exímio. Afora o grande Rui, que, por universal consenso, arrebatou a palma de o maior jurisconsulto e primaz entre os escritores brasileiros[12], e o Conselheiro Lafaiete[13], a quem os júris acadêmicos atribuíram o lisonjeiro epíteto de “mestre das definições perfeitas”, poucos houve, na área do conhecimento humano, em especial no âmbito jurídico-penal, que puderam rivalizar com este doutíssimo varão que dava pelo nome de Nélson Hungria.

Precocemente acordou em seu espírito a vocação para o estudo: aos dezesseis anos recebia a láurea de bacharel em direito e era despachado promotor público para a comarca de Rio Pomba (MG), onde por nove anos cumpriu à risca e animosamente as atribuições de seu cargo. Sem prejuízo dos graves deveres funcionais, antes no intento de melhor desempenhá‑los, achou de aprender (sem descurar do cultivo aturado da formosa língua portuguesa) alguns idiomas estrangeiros. Autores de boa nota afiançam que, nesse trato de tempo, aprendeu de raiz seis línguas [14], nas quais se exprimia com exação e elegância.

Da leitura de suas obras extrai-se, realmente, que não era hóspede em francês, italiano, espanhol, alemão, inglês e latim, idiomas que possuía em grau assinalado.

Foi, porém, à “última flor do Lácio” que consagrou culto mais acendrado, intenso e amoroso.

Os votos memoráveis que proferiu no Excelso Pretório e os livros com que aumentou os quilates à república das letras jurídicas descobrem-lhe a inteligência peregrina, os primores da linguagem padrão, a marca do escritor de força, as galas do estilo e, sobretudo, a invulgar ciência do Direito Penal.

IV. Lugares seletos de seus livros

“O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve”, pregou o genial Antônio Vieira [15].

Cai a propósito, por isso, trasladar aqui alguns relanços da extensa obra de Nélson Hungria, por onde se avaliarão, ao justo, os raros dotes de espírito daquele que, nas províncias do Direito, é chamado por antonomásia “O Penalista”.

Em sua fraseologia jurídica avultava o consórcio perfeito da ideia original com o rigor da fórmula escrita, sob o fino lavor da arte literária.

No introito do capítulo sobre os crimes contra a vida discursou desta guisa: “O homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinquência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada” [16].

Quanto à prova para condenação, sobretudo por homicídio, advertiu: “A verossimilhança, por maior que seja, não é jamais a verdade ou a certeza, e somente esta autoriza uma sentença condenatória. Condenar um possível delinquente é condenar um possível inocente” [17].

Não obstante sempre tivesse em muito o sagrado direito de defesa, observou, “ad cautelam”: “Quando grosseiramente inverossímil, a defesa do réu é mais um indício de sua culpabilidade” [18].

Ao ferir o tema da pena, externou estes conceitos:

a) “A pena é força de reserva na defesa da ordem jurídica” [19].

b) “Suprima-se a pena (quod Deus avertat) e o crime seria talvez a lei da maioria” [20].

c) A pena “traduz primacialmente um princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” [21].

d) “A lição, a experiência dos acontecimentos do mundo atual me levaram a uma revisão de meu pensamento, para renegar, para repudiar, de uma vez para sempre, a pena-castigo, a pena-retribuição, que de nada vale e é de resultado ineficaz. A pena-retributiva jamais corrigiu alguém” [22].

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Nisto de crimes contra a honra, pontificou: “Nenhuma contemplação merecem aqueles que, por ódio, despeito, rivalidade ou áspero prazer do mal, se fazem salteadores da honra alheia” [23].

Como quem preza e cultua a verdade, não se abstinha nunca de manifestar opinião sobre assuntos ainda os mais controversos e delicados, se era o ensejo propício para deitar raio de luz ao âmago da questão e prevenir as consciências.

Assim, num lugar de seu acatado magistério, escreveu acerca do terrível problema da eutanásia, estas palavras dignas de bronze: “O homem, ainda que irremediavelmente acuado pela dor ou minado por um mal físico, não é precisamente a rês estropiada, que o campeiro abate. Repugna à razão e à consciência humanas que se possa confundir com a prática deliberada de um homicídio o nobre sentimento de solidariedade e abnegação que manda acudir os enfermos e desgraçados”.

E, passos avante, num rapto de justa ira: “Defender a eutanásia é, sem mais nem menos, fazer apologia de um crime” [24].

Seu estilo, ou cunho especial de escrever, era, pelo comum, solene, severo e levantado. Nunca lhe esquecia empregar, de preferência, o termo próprio e mais ajustado à lição do Direito Penal. No intento de comunicar à expressão verbal o selo do decoro naqueles casos em que o exigia o licencioso do objeto ou melindre da matéria, apelava para a voz latina, em ordem a não profanar os olhos castos. Assim, embora soubesse que “não há palavra má, se a puserem em seu lugar” — conforme aquilo de um autor de prol [25] —, contudo, por amor da honestidade, suavizava o texto e calçava o coturno, elevando o estilo, máxime no título dos crimes contra os costumes.

Ao versar, “verbi gratia”, o homicídio passional por adultério — em que o marido, por funestas contingências, fora cooptado pela famigerada confraria de São Cornélio —, o emérito jurista redigia desta sorte: “Em face do novo Código, os uxoricidas passionais não terão favor algum, salvo quando pratiquem o crime em exaltação emocional, ante a evidência da infidelidade da esposa. O marido que surpreende a mulher e o tertius em flagrante ou in ipsis rebus venereis (quer solus cum sola in eodem lecto, quer solus cum sola in solitudine”) e, num desvario de cólera, elimina a vida de um ou de outro, ou de ambos, pode, sem dúvida, invocar o § 1º do art. 121; mas aquele que, por simples ciúme ou meras suspeitas, repete o gesto bárbaro e estúpido de Otelo, tem de sofrer a pena inteira dos homicidas vulgares” [26].

Até aqui, breve amostra do estilo jurídico alto, escorreito e incisivo do preeminente Jurista.

Não lhe era estranho, porém, o linguajar pedestre, e ainda incivil e tosco, se podiam favorecer a clareza do ensino doutrinário.

Vem a lanço referir a anedota que ilustra o tipo penal da conjunção carnal violenta ou estupro. Ao pé da página 113 do volume VIII de seus eruditos Comentários lê-se o que entro a narrar, alcançada antes a vênia do polido auditório ou do pio leitor: “Conta-se de um juiz que, ao ouvir de uma pseudoestuprada que o acusado, para conter-lhe os movimentos de defesa, se servira, durante todo o tempo, de ambas as mãos, indagou: Mas quem foi que conduziu o ceguinhoE a queixosa não soube como responder…” [27].

Não desdenhava a graça nem os lances agudos; recorria amiúde aos tropos de linguagem e às frases de espírito.

Na exposição da matéria sobre o crime de estelionato, ocupa-se primeiro da fraude, seu traço mais relevante, exprimindo-se por este feitio: “Fraude é o mimetismo dissimulado do camaleão (de cujo nome latino stellio derivou, precisamente, o vocábulo estelionato), a ardilosa mise-en-scène da aranha na caça aos insetos, o comodismo solerte do cuco, que deposita os próprios ovos, para a incubação, nos ninhos de outros pássaros” [28].

Ao explanar o delito de sedução (art. 217 do Código Penal), que o espírito do tempo induziu à revogação — o que se operou também no tocante ao adultério (art. 240) —, o preclaro Jurista, apurando o estilo, pôs em escritura: “A respeito da promessa de casamento (como meio de sedução) há um velho ensinamento no sentido de sua irrelevância, quando feita aestuante libidine. O princípio, porém, não deve ser aceito incondicionalmente. Sem dúvida, considerada isoladamente, não pode ter valia, por evidentemente insincera, a promessa feita no momento erótico, com a voz empastada da libido estuante, pois, em tal caso, o agente promete um anel de casamento como prometeria, se fosse pedido, o anel de… Saturno” [29].

Os ditos espirituosos afluíam abundantes de seus escritos. Cito-vos este exemplo: não se descomedia imputando a nota de feias às mulheres que o fossem; para designá-las afiava o epigrama: eram “um interdito proibitório contra a luxúria” [30].

Entendem alguns que não levava a bem a instituição do Júri, pois que a ele se referia com patente acrimônia. Ao invés de Magarinos Torres — que disse: “O júri é a melhor forma de justiça que eu conheço[31] —, tachava-o Nélson Hungria de “apêndice infeccioso da justiça[32] e, sobre isto, “osso de megatério”: “(…) o famigerado Tribunal, osso de megatério que persiste em ligar repressão penal e regime democrático, redundou, pela incompetência e frouxidão, em fator indireto de criminalidade” [33].

Para gáudio, entretanto, dos advogados que atuam à barra do Tribunal do Júri, a antipatia que lhe votava o provecto Mestre como que ultimamente se aplacara e remitira. É o que revela a carta-prefácio, publicada no pórtico do livro de Carlos de Araújo Lima (Os Grandes Processos do Júri, 1955, vol. II): “Sinto-me tão envaidecido com isso que quase chego a me reconciliar com o tribunal do povo…”.

Sua vida pública não foi estreme de ingratas surpresas; uma está relacionada com sua candidatura a deputado, em Minas Gerais. No dia da eleição, prestes a encerrar-se a votação, eis que chegam dois eleitores, seus conterrâneos, provenientes dos remotos grotões das Alterosas… Tão seguro estava Hungria da vitória no pleito, que lhes falou com brandura e sem rebuço: “Vocês nem precisam votar. Já ganhei disparado. Vamos tomar uma cerveja”. (Por essa época não era obrigatório o voto, nem imperava a lei seca, adversária inflexível dos devotos de Baco!).

Após o escrutínio e já apurados os sufrágios, verificou-se, para espanto geral, que o promissor candidato “havia perdido as eleições pela diferença de um voto. Nunca mais quis saber de política” [34].

Foi assim que mofino incidente de urna — ou o acaso, que alguém já chamou de “pseudônimo da Providência[35] —, deparou à Ciência Penal, ameaçada de perder para a grei política seu mais auspicioso baluarte, aquele que lhe haveria edificar o mais suntuoso e perene monumento de glória!

V. Formação jurídico-penal do Mestre

À ciência que o havia de empinar à culminância de Oráculo do Direito Penal consagrou Nélson Hungria, desde a juventude, a máxima parte de sua vida.

Dedicou-lhe, sem reserva, horas intermináveis de solitário estudo e forrageou nos mais reputados livros de doutrina de que se ufana a literatura jurídica universal. Nenhum autor clássico de Direito Penal lhe foi estranho, que todos conversou com mão diurna e noturna. Logrou, destarte, amealhar copiosíssimo cabedal científico e informativo, com que pôde enriquecer e consolidar, em sumo grau, seu vasto saber especializado. Arrolou as Escolas Penais, perscrutou-lhes as bases e princípios, encareceu o que nelas havia de certo e judicioso, emendou e corrigiu os defeitos que ostentavam e, com feliz intuição e clarividência, proferiu solene veredicto, no qual assentou, com rigor de lógica jurídica e dialética poderosa, aquela que, a seu aviso, respondia deveras ao objeto último da Ciência Penal.

Assim, detendo-se na Escola Clássica ou Tradicional (Cesare Beccaria, Carmignani e Carrara), advertiu que “o postulado da responsabilidade moral”, fundado “no pressuposto do livre arbítrio e na sua ideia abstrata de justiça”, deixava “fora do direito penal grande número de delinquentes, precisamente os mais perigosos (os anormais)” [36].

Pelo que respeita à Escola Positiva, que entre seus corifeus conta Enrico Ferri, Lombroso e Garófalo, ponderou que, “com a sua fórmula de responsabilidade legal, aliada ao critério da temibilidade, atende muito mais eficazmente ao colimado objetivo da defesa social, legitimando não só a amplitude da órbita da repressão como a multivariedade da prevenção[37].

Muito a seu pesar, no entanto, chasqueou: “As escolas penais não passam, afinal de contas, de inócuas vaidades lítero-científicas” [38].

Tomando sobre si o encargo de patentear o caráter distintivo da Ciência Penal, enunciou: “A ciência penal parte de premissas certas, que são as normas jurídicas, para chegar, logicamente, a conclusões certas. Não comporta escolas, uma vez que não pode haver diversidade de métodos na interpretação e aplicação das regras ditadas pela vontade soberana do Estado. Seu único método possível é o dedutivo, o lógico-abstrato, o técnico-jurídico” [39].

Fechando a abóbada de seu valente arrazoado, emitiu a declaração: “O tecnicismo jurídico não é uma tendência do direito penal: é a condição sine qua non da realidade de uma ciência jurídico-penal. Só ele pôde imprimir ao direito penal a admirável unidade, harmonia e coesão com que se apresenta na atualidade”.

Numa palavra, não se deve ocupar a ciência do direito senão de definições, catalogações e sistematização de conceitos latentes no corpo das leis que se propõem o combate à delinquência. É a dogmática jurídico‑penal” [40].

VI. Polemista de primeira plana

A par da intensa atividade intelectual, que lhe imprimia na figura austera admirável relevo, imperavam em Nélson Hungria duas forças incoercíveis, que nunca se atrofiaram nem conheceram desmaios: uma, sua permanente disposição de luta pelas ideias que reputava próprias de varão esclarecido, justo e sensato; outra, o horror visceral a todo tipo de fraude ou tibieza de caráter.

Nos debates judiciais que se feriam entre os ministros da Suprema Corte de Justiça, durante os julgamentos dos processos, mostra-se bem a presença do consumado dialeta e implacável argumentador: sua linguagem, conquanto ajustada à praxe forense, era veemente e aniquiladora; brotavam-lhe dos lábios as palavras com a vibração dos estouros das catadupas, prodígio que somente se opera com as individualidades privilegiadas e os espíritos de eleição, pois pressupõem talento oratório e domínio absoluto do assunto.

Da intrepidez com que defendia suas opiniões discorre estrênuo cronista: “(…) apaixonava-se pelos temas e, então, ia a todas as consequências, num tom de valente brigador” [41].

A bravura com que se empenhava no debate da lide “sub judice” é constante em suas intervenções, como se extrai deste relanço: “(…) persisto no meu ângulo de vista e por ele batalharei enquanto me restarem forças, todas as vezes que por aqui aparecerem casos idênticos” [42].

A acerada polêmica judicial, que a propósito do crime de receptação entreteve com o Desembargador José Duarte, do antigo Tribunal de Apelação do Distrito Federal, pode constar sem falta em antologia como um dos melhores textos de disputas jurídicas e críticas literárias que ainda vieram a público. Tudo nela conspira a esse título honroso: a força do argumento, a excelência da doutrina, a relevância do assunto, a riqueza do saber, a boa exação e apuro da linguagem, a elegância do estilo, a estudada urbanidade, em suma, os atributos intelectuais que são a pedra de toque do polemista exímio, da progênie de Rui, Laet, Herculano e Camilo.

Em prova desta verdade, trarei à colação alguns lugares da controvérsia que Nélson Hungria sustentou a pé firme com aquele seu colega e amigo, extraídos da obra, nunca assaz louvada, Comentários ao Código Penal (1980, vol. VII, pp. 307-318), imperecível arca de tesouros jurídicos e literários: “Dissentiu do meu voto, porém, o Desembargador José Duarte, que é, sem favor algum, um dos mais destros penalistas pátrios, e, na sua dissidência, chegou a pôr em dúvida o meu testemunho acerca do apontado erro. Abespinhei-me e dei-lhe a seguinte réplica, que se ressente de certa exaltação, mas sem o mais remoto intuito de negar o alto mérito do meu contendor” (p. 307).

E logo abaixo: “Seja-me lícito ponderar que a deslealdade do meu preclaro colega foi tanto mais censurável quanto ele achou de impugnar o testemunho que eu prestara a respeito de um erro de cópia na redação do art. 180 do Cód. Penal (de cuja elaboração fui minima pars) e me alfinetou com a sua ironia, asseverando que, a crer-se no apontado erro, o copista fora, sem o pressentir, mais sábio que o legislador. Não é positivamente louvável que um juiz de tribunal colegial evite debate facie ad faciem, para ulteriormente, na solidão do gabinete, desafogando-se sobre a passividade do papel, emitir conceitos desamáveis aos companheiros de quem discorda”.

Na mesma página escreveu ainda: “Deixemos, porém, de lado a deselegância (tão de estranhar da parte de quem sempre encontrei airoso cavalheiro) e vamos ao voto vencido, onde há muito que respigar. Usarei nesta minha réplica o mesmo sistema do meu caro colega: amigos, amigos, direito penal à parte. Não é fácil tarefa deslindar os pontos de chegada do Sr. José Duarte. Dispondo de vasto cabedal de leituras, tem ele o prazer das digressões e das citações eruditas, inteiramente esquecido da austera singeleza de que deve revestir-se a literatura dos arestos. A cada passo, perde de vista os temas nucleares, para discorrer de omni re scibili et quibusdam aliis. Dir-se-ia que ainda não se libertou da mania dos juízes noviços, que, condoídos da pressuposta ignorância alheia e ávidos de renome, entendem de bordar suas sentenças com difusas lições doutrinárias, em sete línguas diferentes” (p. 308).

Por último, este passo do brioso esgrimista da palavra: “É interessante como o aferro a um ponto de vista unilateral leva um espírito lúcido, como o do Sr. José Duarte, a descaídas tão chocantes” (p. 317).

Essa vivaz disposição de ânimo, que avaliada por miserável estalão poderia confundir-se com teimosia de espírito, não era outra coisa que expressão típica de sentimento de justiça, apanágio primordial do paladino do Direito.

VII. A rica personalidade do excelso Jurista

Filiado à escola da sã doutrina e da preeminência do Direito, deu Nélson Hungria provas plenas e inconfutáveis de amor à Justiça, e de intransigência com o arbítrio. Na defesa tenaz dos direitos e garantias do homem punha sempre a mira de sua atuação. Não desconhecia, por certo, a enérgica exortação de Rui tocantemente ao assunto: “Não há sofrimento mais confrangente que o da privação da justiça” [43].

Foi assim que, de moto próprio, com seu nome aureolado, patrocinou causa de foro internacional: levantou a voz a favor de Caryl Chessman, de alcunha Bandido da Luz Vermelha, condenado à pena capital em câmara de gás mortífero no estado norteamericano da Califórnia, sob a acusação de rapto e estupro de duas jovens.

Em memorável conferência que pronunciou nesta Capital, no Centro Acadêmico XI de Agosto, em maio de 1959, afirmou: “Para erradicar o mal, não é preciso erradicar o homem. O que cumpre fazer não é matar o homem criminoso, mas o criminoso no homem. A criminalidade não se extingue ou declina com a pena de morte. Ao invés de irrogar-se arbitrariamente o direito de matar, ao Estado incumbe promover a remodelação da própria sociedade, para que se apresentem melhores condições políticas, econômicas e éticas, eliminadoras das causas etiológicas do crime[44].

O brado enfático a prol da humanização do Direito Penal — que nisto se resumiu a cruzada pela revisão do processo de Chessman, réu de morte, para que lhe fosse comutada a pena — interpreta-se por grandeza de alma de quem sempre anteviu a majestade da Justiça na boa aplicação da Lei às relações da vida em sociedade. Assim como Rui — que, em páginas eloquentes verberou a ignomínia do processo do “Capitão Dreyfus” [45] —, lembrou a Nélson Hungria, estribado em razões de peso e tomo, lançar pregão de repúdio à execução capital, pela considerar inconciliável com os nobres sentimentos em que se extremam os povos civilizados.

O seu toque de rebate pela abolição da pena de morte não foi, certamente, baldia mensagem às pedras do deserto, mas oportuno e autorizado protesto lavrado à face dos grandes do mundo, para que extirpassem de suas legislações “esse resíduo de barbaria incompatível com o mais elementar espírito de solidariedade humana” [46].

Além dos predicados de inteligência, rigidez de caráter e largueza de alma, dominava Nélson Hungria uma invulgar paixão pela Magistratura, à qual serviu sempre com incontestável fidelidade.

Com indescritível surpresa e mágoa, por isso, receberam os seus amigos e admiradores perturbadora notícia, que lhe arguia desprimores no exercício do grave ministério.

Foi o caso que, segundo conhecido literato, o conspícuo Magistrado, por lassidão, pusilanimidade ou coação (moral, ao menos), ter-se-ia omitido em ato de seu ofício, para satisfazer a interesse do jornalista Assis Chateaubriand.

Juiz de Direito da 4a. Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, Nélson Hungria — de acordo com o libelo infamante — reformara, por mera condescendência, decisão proferida nos autos da ação de destituição de pátrio poder que o citado jornalista e empresário intentara contra a mãe de sua filha [47].

As razões que fundamentaram a decisão — que o olhar penetrante do biógrafo quis tratar à má parte — mostram-se, ao aviso, jurídicas e convincentes. Transcrevo-as, ao pé da página, por seu inteiro teor literal, como se leem na causticante biografia do instituidor da Ordem do Jagunço [48].

Vem a ponto notar que, nas questões de família deduzidas perante a Justiça, quando concorrem interesses de menores — “verbi gratia”, guarda dos filhos —, a estes em especial haverá de cobrir a toga do magistrado, que saberá antepô-los à mera vontade dos pais, a qual muita vez assume o relevo de capricho ou vaidade pessoal.

É neste critério que se esforça o instituto [49].

Aquela que proferiu Nélson Hungria, sobre ter sido, porque assim o diga, uma decisão salomônica, representou, no particular, solução “extrema ratio”, ou prática da virtude em grau heroico. É que, pondo o fito na salvaguarda dos direitos e interesses de uma criança, não trepidou em determinar com inusitada veemência: “fique hospedada em minha própria casa”.

O juiz da causa — e isto se aprende à porta do fórum — presta sua jurisdição conforme a prova do processo. Os elementos de convicção, que o estudo dos autos lhe patenteia, são os que o credenciam a julgá-la segundo o melhor padrão.

Não resisto ao prazer (ia dizendo encanto) de trasladar para aqui este pedacinho de ouro incrustado numa obra de Hélio Tornaghi: “Na verdade, os homens dependem mais da justiça que da lei, muito mais do juiz que do legislador. É utilíssimo para um povo ter boas leis; mas é melhor ainda ter bons juízes. O bom juiz resiste às leis manifestamente iníquas, corrige as imperfeitas, dá polimento e vida às excelentes e põe em prática a norma que se aproxima do ideal. E, sem arranhar as garantias do jurisdicionado, encontra meios de fazer justiça” [50].

Ora, como é a prova a luz que esclarece o espírito do julgador na solução do litígio, e tendo consideração a que a espécie dos autos constituía verdadeira “vexata quaestio”, ou questão muito controvertida e tormentosa, não estranha proferisse o circunspecto Juiz, com sabedoria e audácia, insólita decisão, averbada não obstante de parcial pelo crítico implacável.

A divulgação do episódio nas páginas do livro biográfico meteu em perplexidade e inquietação numerosos expoentes do vasto circuito forense. Passando em silêncio outros muitos, por não estirar demasiado as raias deste discurso, invoco o testemunho de Walter Ceneviva, respeitado jurista e escritor prestigioso.

Na seção Letras Jurídicas, em que a preceito e discretamente se ocupara do caso numa folha desta Capital, revelou ter-lhe sido (e para um sem-número de pessoas) motivo de surpresa e desapontamento “ver o nome de Hungria ligado ao de Assis Chateaubriand, num episódio marcado por muitas dúvidas éticas” [51].

Logo mais abaixo, acrescentou o esmerado articulista: “Nélson Hungria está na história do direito brasileiro como uma de suas figuras exponenciais. Por seu lado, o trabalho de Fernando Morais é daqueles cuja seriedade tem de ser respeitada e aplaudida” (ibid.).

Mas, porque o silêncio fala a favor dos mortos — que por si já se não podem defender —, reconheçamos a Nélson Hungria ao menos o benefício da dúvida: suspendamos, em nome da notória falibilidade dos juízos humanos, o golpe que lhe desferiu o inexorável censor.

Será ato de prudência em matéria difícil, em que tivera parte uma de nossas mais primorosas organizações mentais, verdadeira luz intelectual do País.

Se tão grande, contudo, for nossa desgraça que o Tribunal da Crítica rejeite os embargos opostos à sentença do laureado biógrafo, então é resignar-se à verdade que encerra a cruel parêmia: “Andar sem tropeçar é privilégio do Sol” [52].

Imperfeições e defeitos são inerentes à natureza humana [53].

Alguma censura, que a ordem moral pública houvesse acaso de irrogar ao célebre Penalista, não era decerto poderosa para depreciar-lhe os créditos, que no geral consenso dos doutos passam por excepcionais e inestimáveis, atenta sua prodigiosa contribuição à cultura jurídica do Brasil.

VIII. Nélson Hungria no juízo de graves autores

Conceituadas autoridades em várias províncias do saber humano deram testemunho acerca da vida, obra e personalidade de Nélson Hungria. Foram unânimes na altíssima opinião em que o haviam.

I. Heleno Cláudio Fragoso, Professor-titular de Direito Penal da Faculdade de Direito Cândido Mendes e “discípulo fiel do Mestre”: “Nélson Hungria foi um dos mais notáveis penalistas de todos os tempos”[54].

II. René Ariel Dotti, Professor-titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná: “(…) o maior penalista brasileiro de todos os tempos, a transmitir lições de humanidade, Direito e Justiça para as gerações de seu tempo e do futuro[55].

III. Evandro Lins e Silva (1912-2002), Ministro do Supremo Tribunal Federal, advogado e escritor de alto merecimento: “Não há favor nem lisonja quando se proclama que Nélson Hungria é o maior penalista brasileiro de todos os tempos” [56].

IV. Hugo Mósca, Diretor-Geral da Secretaria do Supremo Tribunal Federal: “No campo do Direito Penal brasileiro, ninguém, até hoje, o sobrepujou…” [57].

V. Francisco Léo Munari, Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito Mackenzie: “Sua magnífica obra, desde o Tratado sobre a Fraude, até os Comentários ao Código Penal, é insubstituível nas bibliotecas jurídicas do Brasil e da América, demonstrando irretorquivelmente a profundidade de sua inteligência dos fenômenos jurídicos e seu extenso e variado saber” [58].

VI. Mário Hoeppner Dutra (1914-1997), Desembargador, membro da Academia Paulista de Direito, do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São Paulo, etc. Autor de Delito de Rixa, A Evolução do Direito Penal e o Júri, Furto e Roubo, Perfis, etc.: “Nélson Hungria faleceu no dia 16 de março de 1969. Foi o Pontífice Máximo de nosso Direito Penal, e até hoje, decorridos que são quase dois lustros daquele infausto acontecimento, nenhum outro lhe tomou o lugar. A ninguém foi dado coroar-se com a tiara que cobriu a sua fronte de mestre inigualável” [59].

No juízo dos doutos, que lhe examinaram com pontual diligência a grandiosa obra nas profundezas do Direito Penal e os trechos de sua vida na Magistratura, Nélson Hungria, pela fulguração do talento, amplo saber e trabalho ímprobo e fecundo, inscreveu seu nome, com caracteres de ouro, no frontão do templo da eterna glória.

Eis por que o preferi, entre os maiores juristas brasileiros, para patrono de minha cadeira nesta Academia e, naturalmente, como homenagem especial a todos os seus membros.

Ao excelso patrono, portanto, e aos distintíssimos confrades declaro o meu sincero afeto e perene gratidão!

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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Nélson Hungria (súmula: vida e obra). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6318, 18 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86068. Acesso em: 4 out. 2024.

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